Diário da Taça: «Há dois meses estava nos distritais, agora vou ao Jamor» - TVI

Diário da Taça: «Há dois meses estava nos distritais, agora vou ao Jamor»

Rodolfo Castro (Arquivo pessoal)

Rodolfo Castro é lateral esquerdo do Montijo, tem um passado ligado ao Sporting e é um nome a seguir no jogo contra o Sp. Braga. Jogou dez anos nos leões, foi a um Europeu de Sub17 e recorda as muitas brincadeiras na Academia de Alcochete. «Um dia pusemos laxante no copo de água da professora Ana. Desculpe, professora!»

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O Olímpico do Montijo prepara o duelo contra o Sp. Braga na Taça de Portugal. Ao longo da semana, os protagonistas da prova rainha escrevem na primeira pessoa no Maisfutebol. Como são estes dias para atletas semi-profissionais e para plantéis que andam longe do foco mediático? A essência da Taça de Portugal nas palavras dos candidatos a heróis.

RODOLFO CASTRO: 27 anos, lateral esquerdo do Montijo

. 9 de dezembro de 2020, a cinco dias do Montijo-Sp. Braga no Jamor

«Estamos a cinco dias do grande jogo contra o Sp. Braga, uma das melhores equipas portuguesas. Nesta altura da minha vida, dedico-me quase em exclusivo ao futebol. Treinamos sempre de manhã no Montijo e à tarde complemento o trabalho com um preparador-físico do clube, o Ricardo Guerra. Ao mesmo tempo estou a acabar os estudos e pretendo no futuro conciliar o futebol com outra profissão. Cometi um erro grande ao abandonar a escola cedo e agora estou a recuperar os anos perdidos e a completar o 12º ano de escolaridade. O Sindicato de Jogadores tem um programa ótimo e ajuda futebolistas na minha situação. Saí de casa dos meus pais aos 12 anos e nunca tive estabilidade para me concentrar na escola. Agradeço ao Sindicato por esta oportunidade. 

Levanto-me todos os dias às oito da manhã, às nove chego ao campo do Montijo e às 9h45 começa o treino. Por volta do meio-dia acaba a sessão de trabalho e depois almoçamos todos no restaurante do clube. A minha vida mudou radicalmente nos últimos tempos. Há dois meses estava nos distritais de Leiria [Portomosense] e agora vou jogar contra o Sp. Braga no Jamor. Na época passada joguei no histórico Beira-Mar, mas no verão o telefone não tocou e decidi ficar perto de casa. Vou ser pai dentro de duas semanas, do Lourenço, e vivo em Leiria, ao lado de Porto de Mós. Por isso aceitei o convite e comecei lá a época, até que em outubro o mister Rui Narciso me desafiou a vir para o Montijo. O mister confiou em mim e deixou-me mostrar o meu valor num patamar superior. Só lhe posso agradecer. Vivo um momento feliz da minha vida.

Na época passada eliminei o Marítimo ao serviço do Beira-Mar e há dois anos o Felgueiras, onde eu estava, ficou muito perto de afastar o Sp. Braga do mister Abel Ferreira, com quem trabalhei no Sporting. Um golaço do Dyego Sousa matou-nos o sonho. Espero jogar agora contra o Sp. Braga e apanhar pela frente dois grandes amigos e ex-colegas de equipa no Sporting: o Ricardo Esgaio e o Iuri Medeiros. O Montijo é um clube histórico, com condições modestas, e tem cumprido comigo de forma exemplar. Pagam antes da hora, temos tudo o que precisamos, estou muito satisfeito. 

Rodolfo é o primeiro em baixo, à direita, nesta equipa do Sporting 

Sou de Condeixa-a-Nova e joguei dez anos no Sporting. Assinei pelo Sporting com sete anos e meio e comecei aos oito a jogar pelo clube. Comecei aos seis anos no Condeixa e tínhamos um adversário muito forte no distrital, a Naval 1º Maio. O senhor Aurélio Pereira veio analisar a Naval num jogo contra o meu Condeixa, mas aos 15 minutos já ganhávamos 3-0. Eu era ponta-de-lança na altura e fiz os três golos. Fiquei no radar do Sporting e em abril fui fazer testes a Alcochete, eu e o meu amigo Jorge Simão, que hoje é médico. Eu fui escolhido e ele não, infelizmente. 

Durante quatro anos, a minha família fez sacrifícios enormes para eu poder realizar o meu sonho. Ia três vezes por semana a Lisboa. Tinha a escola em Condeixa, almoçava e por volta das duas ia para Lisboa e treinava no Sporting. Estamos a falar de cerca de 300 quilómetros, ida e volta. Chegava a casa dos meus pais perto da meia-noite. Eu costumo dizer que o meu pai tinha mais força de vontade do que eu, acompanhou-me e nunca me deixou desistir. Ao fim-de-semana lá ia ele levar-me aos jogos do Sporting, para eu nunca falhar. 

Tenho de prestar esta homenagem aos meus pais. O meu pai é sub-chefe numa empresa de segurança e faz um trabalho de comercial. Entrega fardas, controla turnos, gere as pessoas. A minha mãe também trabalha na área da segurança. Até há pouco tempo esteve numa escola de enfermagem e agora está numa universidade. O meu beijinho e o meu obrigado a eles por tudo o que fizeram por mim. 

Com 12 anos saí de casa dos meus pais e fui viver para a Academia de Alcochete. A minha mãe diz-me que ficava muitas vezes a chorar agarrada às minhas fotografias. Eu também chorei muito, claro. Fui-me habituando a esta vida e os meus pais também. Outro dia dizia à Rita, a minha namorada, que não sei o que é celebrar a Páscoa, celebrar a Passagem de Ano, o futebol sempre me afastou dessas festas familiares. Foi a vida que escolhi. 

No Sporting os dias eram bastante recheados. De manhã tinha aulas na Secundária de Alcochete, voltava à tarde para treinar e ainda havia mais atividades. No meu quarto estavam sempre quatro rapazes. Tive vários colegas de quarto, mas o Betinho [agora no Sp. Espinho] foi o meu parceirão. Tive também o Esgaio, o Eric Dier, o João Carlos Teixeira, o Mateus Fonseca, era uma geração maravilhosa. Vivi seis anos em Alcochete. 

A geração de 93 tinha também o João Mário, o Ricardo Pereira, o Tobias Figueiredo, o William Carvalho, o Bruma, o Carlos Mané, o Alexandre Guedes, o Luís Cortez, o Rúben Semedo... a nossa equipa de juniores era impressionante. Os melhores? Há um que achávamos que seria um génio e que, infelizmente, não conseguiu atingir o patamar esperado: o Altaír Júnior. Andou pela Hungria, passou pelo Real Massamá, Atlético, Barreirense e acabou no Sintrense em 2018. Agora trabalha numa empresa de agenciamento de atletas [Proeleven]. Ele era a grande promessa da minha geração. 

Rodolfo e o amigo João Mário nos dias de Sporting

Nunca vimos o João Mário a jogar mal. A maturidade dele em campo era impressionante. Era um veterano de 16 anos. Acredito que a influência do Wilson Eduardo o ajudou a crescer depressa. Mas eu adorei viver em Alcochete e não faltam histórias engraçadas.

A melhor? Bem, há uma que é mítica entre nós. Certo dia lembrámo-nos de minar as bebidas de algumas pessoas com laxante. As vítimas? Um colega de equipa mais novo e a professora Ana. Poucas pessoas sabem disto, mas esta é uma boa altura para lhe pedir desculpa. 'Desculpe, professora Ana!'. Ela lá nos disse que estava mal da barriga e a aula acabou. Aquilo na altura deu alguma confusão, eu acho que fiquei dois dias sem treinar, mas não sei se a professora soube de alguma coisa. Era uma pessoa super querida e que tratava de todas as atividades na academia. Ana Ribeiro, tínhamos grande carinho por ela. 

É a primeira vez que vou jogar contra os meus amigos Esgaio e Iuri Medeiros. Quando os vir no relvado, a primeira coisa que lhe vou dizer é 'tenham cuidado' (risos). Eles sabem que não é fácil passar por mim. Vamos desfrutar os três deste reencontro. Será marcante, claro. Será um bom teste para mim, porque eu nos seniores joguei sempre no Campeonato de Portugal. Vou, finalmente, testar-me contra futebolistas com quem me formei. Tive a melhor formação possível, prepararam-me para jogar no topo, mas nunca atingi esse nível. A Taça de Portugal vai mostrar-me se estou preparado ou não para a I Liga. Tenho o objetivo de jogar lá e de voltar a vestir as cores da Seleção Nacional. 

Rodolfo (em baixo, 2º a contar da direita) nos infantis do Sporting

Joguei uma vez pela equipa principal do Sporting. Foi em Angola, num amigável contra a seleção, e o treinador era o Domingos Paciência. Curiosamente, o primeiro treinador a chamar-me aos treinos dos seniores foi o Carlos Carvalhal, que será meu adversário agora no Jamor. Eu tinha 17 anos e isso foi na época 2009/10. Sonhei com mais, em fazer mais de 100 jogos pelo clube da minha vida, mas não foi possível. 

Em 2012 o meu contrato com o Sporting acabou e não transitei para a equipa B. O clube optou pelo Mica Pinto e o Atila Turan para laterais esquerdos. Não estava mentalmente preparado para a dispensa, para o insucesso. Foi complicadíssimo. Tive sempre do bom e do melhor no futebol e ali perdi o chão. Não sabia o que fazer. Disseram-me que a minha dispensa não foi assinada pelo Abel Ferreira [treinador da equipa B], nem pelo Sá Pinto [da A]. Eu era bem visto pelos treinadores, mas alguém na estrutura optou por ficar com o Mica e um lateral francês, que não tinha provas dadas no Sporting. Fiquei magoado porque dediquei uma década da minha vida ao clube e quis mesmo deixar o futebol, disse isso aos meus pais. 

O senhor Aurélio Pereira, o meu anjinho da guarda, deu-me a mão e convenceu-me a ir para Viseu, para o Académico. O treinador de lá era amigo dele e aceitei. Tive o meu melhor e o meu pior ano desportivo na mesma época. Era o mais novo da equipa e em dezembro era o mais utilizado. Tive convites do V. Guimarães e do Betis e, infelizmente, em janeiro fiz uma rotura de ligamentos. Subimos de divisão, mas só voltei a jogar no último jogo. As propostas morreram todas.  

Fui sempre um dos melhores laterais do meu escalão e fui convocado para o Europeu de sub17 em 2010. Joguei contra a França. Fica alguma desilusão por ainda não ter jogado nas ligas profissionais. O Montijo-Sp. Braga é um bom jogo para fazer história. Se fosse no Campo da Liberdade, no Montijo, teríamos mais possibilidades para vencer. A taça é isto, jogar em campos pequenos. Sendo assim, prometemos muita entrega e ambição no Jamor contra uma grande equipa. Temos tudo a ganhar e uma equipa cheia de jovens com valor.»

De casaco vestido, Rodolfo no Europeu de Sub17 em 2010

 

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