O quente Mundial de uma nova era com Portugal à espreita - TVI

O quente Mundial de uma nova era com Portugal à espreita

Mundiais atletismo: o estádio de Doha

Isto vai aquecer muito para o atletismo. Vem aí o primeiro Campeonato do Mundo sem Usain Bolt, a última estrela planetária de uma modalidade que anda além disso a tentar lidar com o estigma do doping. Portugal está no Qatar com uma das delegações mais curtas de sempre

Isto vai aquecer muito para o atletismo, mesmo. O 17º Campeonato do Mundo, que começa nesta sexta-feira e termina a 6 de outubro, terá como palco Doha, no Qatar. Quente, num cenário inédito e com muitos outros desafios pela frente. São os primeiros Mundiais sem Usain Bolt, a última estrela planetária de uma modalidade que anda além disso nos últimos anos a tentar lidar com o estigma do doping. Portugal está no Qatar com 15 atletas, uma das delegações mais curtas de sempre, mas com algumas ambições.

O cenário destes Mundiais é a primeira grande questão. Mesmo tendo sido adiado para final de setembro, para lá do ritmo habitual de gestão da época dos atletas, as temperaturas e humidade em Doha são muito altas nesta altura. Acima dos 38 graus de máximas durante o dia, humidade superior a 70 por cento. E não melhora muito à noite. Para tentar minimizar esse impacto, o estádio que receberá a maior parte das provas, o Khalifa International Stadium, foi equipado com um sistema gigante de ar condicionado que procura reduzir a temperatura junto ao relvado para uma média de 26 graus. E não haverá competição de manhã, as provas começam apenas a meio da tarde.

Ar condicionado no estádio em «condições terríveis»

Mas além disso há todo o trabalho que os atletas terão de fazer para lá da competição. E há as provas de estrada, onde é impossível minimizar o calor. As maratonas e as competições de marcha serão à noite, precisamente para tentar diminuir esse impacto, mesmo assim com temperaturas bem acima dos 30 graus. E com impacto difícil de prever no ritmo biológico dos atletas.

Jorge Vieira, presidente da Federação Portuguesa de Atletismo, está em Doha desde o início da semana e já sentiu na pele, literalmente, o peso do clima. «As condições aqui são terríveis para todos os atletas. O futebol também vai passar por isto. Não é imaginável. A combinação da humidade e do calor é terrível. À noite estão 35/36 graus», diz o responsável pela delegação nacional ao Maisfutebol: «Não sei como vai ser a maratona e muitas das provas, porque isto é extremo em termos de stress climatérico.»

O calor e a humidade vão necessariamente afetar as performances, acrescenta Jorge Vieira: «Vai ser um totobola para todos os atletas. Haverá alguns um bocado mais habituados, como os japoneses por exemplo, mas vai ser muito duro. Para quem se adaptar aqui, Tóquio provavelmente já será uma brincadeira de crianças.»

Ainda assim, o Qatar foi escolhido para receber os Mundiais. Tal como foi eleito para organizar o Mundial de futebol em 2022, dois processos envoltos em muita polémica. Jorge Vieira evita entrar em considerações sobre a escolha: «Todos sabemos porque é que se coloca aqui um Campeonato do Mundo de atletismo ou um Campeonato do Mundo de futebol.»

Nélson e Pichardo nas apostas portuguesas

É nestas condições que todos os atletas vão ter de competir. Portugal incluído, um dos 209 países que estarão representados em Doha, com quase dois mil atletas em competição. Com uma delegação curta, que Jorge Vieira atribui às exigências do apuramento. «Tem a ver com os processos de qualificação atuais, que resultam das marcas mas também da participação em competições internacionais e nacionais. Mas, de qualquer modo, são poucos mas bons», defende.

Quanto a expectativas, a principal aposta de Jorge Vieira é no triplo salto masculino, onde Portugal tem Nélson Évora e Pedro Pichardo. «Temos sobretudo esses dois candidatos às medalhas», diz o dirigente, colocando o enfoque no estatuto dos dois atletas.

Évora, campeão do mundo em 2007, campeão olímpico em 2008, chega aqui aos 35 anos, o mais velho atleta no triplo salto. Pichardo já foi duas vezes medalha de prata, quando ainda representava Cuba, antes de se naturalizar português. Os dois atletas, Nélson agora no Sporting e Pichardo no Benfica, têm alimentado uma rivalidade intensa, e ainda que não cheguem aos Mundiais com as melhores marcas do ano, as ambições são altas.

Jorge Vieira alimenta a expectativa de mais bons resultados para os portugueses, mas há que esperar para ver: «Também há o triplo salto feminino, o lançamento do disco, mas é tudo muito imprevisível.»

Portugal tem ainda três atletas no triplo salto feminino - Patrícia Mamona, Susana Costa e Evelise Veiga –, e duas no lançamento do disco - Irina Rodrigues e Liliana Cá. Mais os veteranos João Vieira, o marchador que vai para a 11ª presença em Mundiais, e Inês Henriques, que defende o título nos 50km marcha femininos. Ana Cabecinha e Mara Ribeiro (marcha), Salomé Rocha (maratona), Lorène Bazolo (100m), Cátia Azevedo (400m) e Francisco Belo (peso) são os atletas que completam a delegação nacional.

O facto de Portugal ter uma delegação pequena não significa, defende Jorge Vieira, menor interesse ou foco no atletismo nacional de alto nível, ainda que esta presença esteja longe das dimensões de outros tempos, nomeadamente no fundo.

«De todo, não quer dizer isso. Temos uma base muito semelhante à dos últimos anos. Mas a qualificação foi afetada pelo sistema atual. Tornou o processo muito mais difícil. E nós estamos na periferia, não temos o mesmo acesso a competições», afirma, admitindo que é sempre desejável ter o maior número de atletas possível a participar em grandes competições. Mesmo que sem ambições altas: «A participação é muito importante, não só para os atletas de elite mas para os que estão no processo de elitização. Não me esqueço que o Nélson Évora nos Jogos Olímpicos de 2004 não se qualificou para a final, e quatro anos depois em Pequim foi campeão olímpico. Atenas foi fundamental para ele, para perceber tudo o que envolve uma competição destas. É muito importante para atletas mais jovens participarem. Nenhum atleta se faz só com vitórias.»

De Bolt a Semenya, as grandes ausências

Em termos competitivos, estes Campeonatos do Mundo de 2019 marcam também uma nova era. São os primeiros desde a retirada de Usain Bolt, o multi-campeão da velocidade, recordista mundial dos 100m, 200m e 4x100m, vencedor de 11 medalhas de ouro em Mundiais. O adeus de Bolt deixou um vazio óbvio.

Mas há mais ausências de peso. Como Mo Farah, outra das referências do desporto nos últimos anos, que também se retirou. Ou alguns dos principais maratonistas, que abdicaram do Mundial para se prepararem para as maratonas do outono. Ou ainda, por razões muito diferentes, Caster Semenya, tripla campeã do mundo dos 800 metros. A sul-africana perdeu para já a batalha legal com a Federação Internacional de Atletismo (IAAF) em que contesta a obrigatoriedade de tomar medicamentos de controlo da produção de testosterona para poder competir. A luta de Semenya continua, com os Jogos Olímpicos de Tóquio no horizonte, mas para já não estará em Doha.

Depois há a questão macro do doping. Estes são os segundos Mundiais em que a Rússia foi excluída de participar, depois de investigações que levaram a Agência Mundial Antidopagem a acusar o país de ter montado um esquema generalizado de dopagem. Os atletas russos que foram autorizados a estar em Doha vão competir como Atletas Neutros.

Doping: a Rússia, o «talento aditivado» e o futuro do atletismo

A luta do atletismo contra o doping nos últimos anos não se restringe à Rússia, numa modalidade em que têm sido revelados inúmeros casos, envolvendo muitos deles atletas de topo. Com consequências práticas: a portuguesa Naide Gomes, por exemplo, está em Doha para receber a medalha de bronze do salto em comprimento relativa aos Mundiais de… 2009. Naide ficou em quarto lugar, mas a russa Tatyana Lebedeva, que tinha ganho a prata, foi desclassificada. É aliás a segunda vez que Naide Gomes ganha uma medalha com retroactivos: em 2018 foi-lhe atribuída a prata dos Mundiais de pista coberta de 2006, também por desclassificação de uma atleta russa.

Tudo isto deixou marcas na imagem do atletismo, admite Jorge Vieira. «Não anda a fazer bem à modalidade. Mas também é um reflexo do esforço que a modalidade está a fazer. Os problemas de doping na Rússia não existem apenas no atletismo. Todo este esforço é em prol da limpeza. Há outros que varrem o lixo para debaixo do tapete», defende: «Há modalidades com muito menos controlo, ou sem controlo nenhum. Não é apenas no atletismo, é comum a todos os desportos, comum a toda a sociedade. Só que o desporto controla. Provavelmente o desporto também tem que ser visto como a área mais limpa da sociedade. O desporto tem provavelmente a maior percentagem de pessoas limpas de fármacos na sociedade.»

O presidente da Federação portuguesa defende que este é o caminho para um desporto mais justo: «Temos andado nesta luta contra os batoteiros. Não temos dúvidas de que o atletismo é agora muito mais limpo do que era. Os nossos atletas têm muito mais possibilidades agora. O intervalo entre os melhores e os piores está a encurtar, está mais estreito. Havia muito talento que era aditivado.»

Jorge Vieira admite que este processo tem um custo, mas defende a popularidade do atletismo e acredita que pode ganhar ainda mais com este esforço de «limpeza». «Quer em Campeonatos do Mundo, quer Jogos Olímpicos, o atletismo é absolutamente popular em termos mundiais, vemos sempre os estádios cheios. Mantém uma atração muito grande, não perdeu a esse nível de maneira nenhuma», diz. «E julgo até que ganha credibilidade com este esforço.»

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