Mentiras e traições: os bastidores polémicos de «The Last Dance» - TVI

Mentiras e traições: os bastidores polémicos de «The Last Dance»

Isiah Thomas e Michael Jordan, em 1992 (AP)

Das acusações de Horace Grant às garantias dadas pelo realizador Jason Hehir. O que é falso e o que é verdadeiro? O que ficou por contar? Uma viagem com dez paragens obrigatórias

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«Bem ou mal, o importante é que falem de mim.» É provável que Michael Jordan tenha assumido a velha máxima antes de aceitar gravar The Last Dance. As 500 horas de filmagens foram espremidas e reduzidas a dez, divididas salomonicamente por dez episódios. Ficou, diz o realizador Jason Hehir, «o melhor». Mas «o melhor» nem sempre é inofensivo.

A crítica da especialidade está rendida, os espetadores foram conquistados, a ESPN e a Netflix esfregam as mãos em dólares, milhões de dólares. O negócio é bom para todos, menos para os que se sentem ofendidos ou, no caso dos apologistas do eufemismo, mal retratados.

A grandeza de Michael Jordan é inabalável, absoluta, pelo menos a desportiva. Não é possível, porém, glorificar até à obsessão os animais competitivos, como Jordan sempre foi, e esperar que essa obsessão não destape traços menos civilizados. Paranóia, insensibilidade, até alguma sociopatia.

Por mero interesse comercial ou verdadeira vontade em viajar no tempo e acertar contas passadas, Michael Jordan fez um arremedo de consciência e falou de tudo sem tabus. Despido de preconceitos, como se avançasse pela última vez em modo Air na direção do cesto contrário.

Pelo caminho, vítimas de uma perspetiva que não é unânime nem conciliadora, ficaram as acusações de antigos colegas e adversários. Algumas entraram no Final Cut, outras pareciam enterradas nos bastidores da polémica. Mas estão, afinal, vivas. 

O Maisfutebol organiza-as em dez pontos diferentes, para que se perceba que Michael Jordan será para sempre escravo das expetativas alheias. Que necessidade tinha Jordan de se expor e sujar uma imagem até agora imaculada? The Last Dance. Vai um pezinho de dança?

1. HORACE GRANT: colega de equipa nos Bulls de 1987 a 1993

A acusação mais grave a Michael Jordan veio do antigo extremo. Grant detestou que Jordan o tivesse chamado de «bufo», acusando-o de ser ele a fonte que alimentou o jornalista Sam Smith para o livro Jordan Rules. A obra, é bom recordar, revelou a atmosfera tensa no balneário dos Chicago Bulls durante a época do título de 1991/1992.

Grant desabafou aos microfones da ESPN 1000’s Kap and Company. «Somos grandes amigos, mas isso é mentira e fere a sensibilidade do balneário. O Sam Smith era um jornalista de investigação e teria de haver várias fontes. Não é correto que o MJ me aponte o dedo só a mim. Isso destrói o meu carácter em público», disparou Horace Grant, um dos homens de confiança de Jordan – e terceiro na hierarquia, só atrás de MJ e Scottie Pippen – e atleta dos Bulls entre 1987 e 1994.

«Mentira, mentira, mentira. Se o MJ tem algum problema comigo, vamos resolver isso como homens. Vamos falar sobre isso ou tratar das coisas de outra maneira.»

Durinho.

Jordan e Grant quando já eram adversários (AP)

2. SCOTTIE PIPPEN: colega de equipa nos Bulls de 1987 a 1993 e 1995 a 1998

A revelação surgiu também na ESPN. Pippen, o wing man de Michael Jordan, amigo e confidente, ficou «magoado e desapontado» pela forma como o documentário o retrata.

Pippen tem mantido o silêncio em público, mas o jornalista Jack McCallum assegura que o homem que esteve nos Bulls de 1987 a 1998 ficou perplexo pela opção do realizador em focar-se nas «situações negativas» que o envolveram no passado.

Scottie Pippen estará a pensar na sua opção em não ser operado ao tornozelo em 1997, adiando a cirurgia para não perder as férias de verão, ou do instante «infeliz» em que recusou entrar em campo nas meias-finais de 1994, por o treinador Phil Jackson optar por Toni Kukoc para o último lançamento da partida.

Nos episódios em que essas histórias são narradas, tudo é devidamente enquadrado. Michael Jordan, o protagonista-mor, considerou Pippen «egoísta» pelo adiamento da operação e isso não terá caído bem no amigo.

The Last Dance mostra ainda os constantes problemas físicos de Pippen em momentos determinantes. Todos verdadeiros mas, segundo fonte familiar do ex-atleta, «sobrevalorizados no documentário».

«Nunca vi um gajo número dois, como o Scottie, a ser tão mal retratado», disparou o desbocado Dennis Rodman nos últimos dias.

Pippen foi sempre o fiel escudeiro de Jordan (AP)

3. GARY PAYTON: adversário nos Play-offs de 1996

O antigo base dos Seattle Supersonics tinha tanto de bom jogador como de mau feitio. Payton quis marcar Jordan no jogo decisivo dos Play-offs de 1996, até por ser um dos melhores defesas da NBA, mas MJ relativizou a sua qualidade no documentário. «O Payton nunca foi um problema.» Os Bulls ganharam esse jogo com autoridade e conquistaram o quarto anel de campeões.

«Fiquei lixado e pensei em ligar ao MJ», disse Gary Payton numa conversa com uma rádio norte-americana na passada semana. «Sinceramente, vindo dele não me surpreende nada. Eu, se calhar, faria o mesmo, nunca admitiria que um gajo me tinha marcado bem. Mas querem saber a verdade?», questionou Gary Payton.

«Ao longo da minha carreira, nenhum adversário me criou grandes problemas. Há uma exceção e chama-se John Stockton [base dos Utah Jazz de 1984 a 2003]. Não estou muito chateado com o MJ porque não tive muitos duelos com ele, essa é a verdade.»

4. CRAIG HODGES: colega nos Bulls de 1988 a 1992

Nunca ouviu este nome? É normal. Hodges não foi uma única vez mencionado em The Last Dance, apesar de ter sido um elemento relevante nos dois primeiros títulos de Michael Jordan na NBA.

Hodges era um atirador temível, especialista em triplos, e esteve nos Bulls de 1988 a 1992. Aos 32 anos, e depois de ser bicampeão, abandonou a NBA. Porquê? Há versões para todos os gostos. A mais polémica coloca Michael Jordan no centro da decisão e acusa-o de ser o responsável pelo afastamento do colega.

Craig Hodges era (e é) um homem de fortes convicções políticas e religiosas. O oposto de Jordan. O seu posicionamento e o desejo de influenciar Michael Jordan condenaram a relação entre ambos e a corda quebrou pelo lado mais fraco.

Na visita dos campeões Bulls à Casa Branca em 1992, Craig Hodges vestiu um dashiki – traje popular nos países do oeste africano –, acertou uns triplos num cesto improvisado no jardim e entregou uma carta ao então presidente George Bush, onde expressava o seu descontentamento com as políticas norte-americanas. Foi a gota de água para os Bulls e Jordan.

Nas mais de 100 entrevistas feitas pela equipa de The Last Dance, nenhuma mencionou o nome de Craig Hodges.

5. ISIAH THOMAS: base dos Pistons e adversário entre 1984 e 1993 

The Last Dance recupera a grande rivalidade entre os Chicago Bulls e os bad boys dos Detroit Pistons no início dos anos 90. Mais do que isso, recupera a fricção entre Michael Jordan e Isiah Thomas. Uma fricção que custou um lugar a Thomas no Dream Team dos Jogos de 1992.

Num dos episódios, Michael Jordan é confrontado com esta acusação e nega-a. Garante nunca ter vetado o nome de Isiah Thomas para o grupo de 12 basquetebolistas que estiveram em Barcelona. «Respeito o Isiah. Para mim, o melhor base de sempre é o Magic Johnson e a seguir está o Isiah Thomas.» Thomas nunca se acreditou na palavra de MJ e, pelos vistos, tinha boas razões para isso.

Nos últimos dias começou a circular um áudio, revelado pelo jornalista Jack McCallum, que confirma a versão do antigo base dos Pistons. A conversa ocorreu durante uma antiga entrevista. «O Rod Thorn [vice-presidente da NBA] telefonou-me e eu disse-lhe ‘Rod, não contes comigo em Barcelona se o Isiah Thomas estiver na equipa’. E o Rod disse-me ‘não te preocupes, Michael, o Chuck Daly [treinador] não quer o Isiah, por isso ele não estará na equipa’.»

6. A PIZZA ENVENENADA: Salt Lake City, 1997

No nono episódio de The Last Dance, o famoso jogo da gripe de Michael Jordan é um dos temas centrais. Jordan jogou o duelo da final da NBA em 1997 com os Utah Jazz muito doente e no documentário diz que a gripe foi, afinal, uma intoxicação alimentar.

Jordan conta que estava no hotel dos Bulls em Park City, uma cidadezinha perto de Salt Lake City, e que encomendou uma pizza já bastante depois da meia-noite. Essa pizza estaria, na versão de Jordan, «envenenada».

Ora, após a exibição deste episódio, o homem que confecionou e entregou a pizza a Jordan diz que tudo isso é mentira, numa conversa com a rádio 1280 The Zone. Craig Fite diz, de resto, ser um adepto de longa data dos Chicago Bulls.

«Eu era o único adepto dos Bulls na loja. Lembro-me de ter dito: 'Vou fazer eu a pizza, porque não quero que lhe façam nada'. (…) Podem ter-lhe levado comida de outro sítio qualquer e ter sido mesmo uma intoxicação. Mas aquele pizza foi bem feita. Eu segui as normas.»

Resta dizer que Jordan, mesmo doente, fez 38 pontos e foi o melhor em campo na vitória por 90-88 dos Bulls em casa dos Jazz.

7. JORDAN, O «PRODUTOR»

Que influência teve Michael Jordan nas opções editoriais de The Last Dance? Ken Burns, respeitável documentarista norte-americano, faz uma acusação grave. A produtora Jump 23, que pertence a Michael Jordan, é uma das responsáveis pelo projeto, mas nunca é mencionada nos créditos finais. A Jump 23 foi, pura e simplesmente, omitida.

«Se alguém tiver a capacidade de influenciar, então alguns aspetos que não são assim tão agradáveis podem ser apagados do documento final. É assim, ponto final», disse Burns ao Wall Street Journal. «Não é assim que se faz bom jornalismo e não é assim que se conta uma boa história. O Michael teve, certamente, uma palavra a dizer nas escolhas editoriais.»

8. WILL PERDUE: colega nos Bulls de 1988 a 1993

Will «Big Man» Perdue esteve nos Chicago Bulls de 1988 a 1995 e não teve vida fácil com Michael Jordan. O documentário omite algumas das críticas de Perdue a MJ, apesar de o atual comentador televisivo ter passado a respeitar «com o tempo» o antigo colega.

«O Michael envergonhou-me em frente aos nossos colegas desde o início. Tinha a ver com a universidade de onde eu vinha e com a minha falta de qualidade para jogar nos Bulls, no entender dele», disse Perdue a CNBC na passada semana. «Ele começou a chamar-me Will Vanderbilt, que era um trocadilho com a minha antiga universidade. Nunca me tinha visto a jogar, não sabia como eu era como pessoa, mas desancou-me logo nos primeiros treinos.»

Will Perdue elogia a qualidade de The Last Dance - «um extraordinário produto de entretenimento» -, embora não compreenda a tentativa de amolecer o seu discurso, até porque acabou por ter uma boa relação com MJ.

«Trabalhei muito e ele percebeu que eu era um tipo com ética. Ele ia para o ginásio e lá estava eu, a dar no duro. Aceitei a provocação dele e pouco a pouco ganhei a confiança do Michael Jordan.»

Will Perdue foi campeão com os Bulls em 1991, 1992 e 1993 e com os San Antonio Spurs em 1999.

Perdue foi uma das 'vítimas' do feitio de Jordan (AP)

9. SCOTT BURRELL: colega nos Bulls na época 1997/1998

Scott Burrell é uma das personagens mais interessantes em The Last Dance. O antigo extremo só jogou um ano nos Chicago Bulls (1997/98), mas cedo se tornou o alvo preferido do bully Michael Jordan.

Há várias cenas em treino e em momentos de descontração onde Jordan desanca o pobre Burrell, com este a manter sempre a compostura e o sorriso. Scott Burrell deu «mais de 200 entrevistas» nas últimas semanas e garante que tem uma «amizade profunda» com Michael Jordan, até hoje.

«O Michael era um bully? Não, não. É essa a imagem que passa, mas o Michael só achava que eu podia ser melhor do que era. Encaro isso como uma honra. O melhor jogador de todos os tempos estava a puxar por mim. Era disso que eu precisava e era disso que eu gostava. Eu precisava de ser desafiado e encontrei esse desafiador no Michael Jordan. Todos os dias. Isso não era bullying, isso era amor duro. Ele exigia que todos fossem um bocadinho melhores. Sinceramente, eu adorava o gajo.»

Burrell era um dos suplentes da equipa e Jordan sentia que o colega tinha capacidade para fazer mais e melhor. «O Michael dava cabo da cabeça a todos os que falhavam, não era só a mim. Na montagem final eu sobressaio, talvez por ser o puto novo da equipa, mas o MJ era muito duro também com o Toni Kukoc, por exemplo.»

Scott Burrell (nº 24) olha para Jordan a ganhar um ressalto (AP)

10. JASON HEHIR, O REALIZADOR

Jason Hehir, o realizador de The Last Dance, conheceu Michael Jordan em setembro de 2017 e ainda se lembra do que pensou ao apertar a mão ao ex-basquetebolista.

«Uau, foi com estas mãos que o MJ derrotou Georgetown e foi com estas mãos que afundou a partir da linha de lançamento livre em 1988. Foram estas mãos que ganharam a final de 1998. Estou com História viva à minha frente», afirmou à NBC Chicago.

Um ano depois, Hehir reencontrou Michael Jordan na primeira das três entrevistas presenciais que fez a His Airness para o documentário mais falado do momento. «Disse aos meus irmãos que estar à frente dele foi como conhecer o Pai Natal. Nós pensamos que aquela personagem tão grande não é real, mas ali estava ele.»

Jason Hehir garante não ter recebido quaisquer restrições da parte de Jordan e dos seus agentes. O problema com as apostas, a morte do pai, nada foi um entrave e o realizador assegura que Jordan respondeu «a tudo» o que lhe foi colocado.

Mas é tudo verdade no discurso de Jordan? Hehir diz que sim, pelo menos «na perspetiva de uma pessoa». Michael Jordan, claro. «Posso garantir que ele não nos pediu para apagar nada. Conversámos na parte da montagem, claro, e considero normal ele sugerir para ‘escolher isto ou aquilo’, mas nada mais do que isso.»

Hehir sai do documentário com «uma boa imagem» de Michael Jordan e a certeza de ter subido «ao Olimpo do documentário desportivo». «Ter o tempo, o acesso e os recursos que tivemos é muito raro. Cumpri um sonho.»

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