A Taça é uma tia «hippie» com muito para contar - TVI

A Taça é uma tia «hippie» com muito para contar

Taça de Portugal

A propósito das alterações introduzidas pela FPF e da nossa falta de paciência para ouvir

A indiferença com que foram acolhidas as mudanças de figurino na Taça de Portugal, anunciadas pela FPF numa altura em que a luta pelo título da Liga estava ao rubro, ilustram bem o maior problema deste modelo de competição: no fundo, já ninguém está muito interessado em saber o que acontece antes de a final ficar definida. Nessa altura, como é hábito, os finalistas embrulham-se num manto de respeito pela história e tradição. Todos os outros fazem como a raposa da fábula e encolhem os ombros para desdenhar das uvas.

Entendamo-nos: o problema não é exclusivo de Portugal, longe disso. É bem real, em todo o lado. Mesmo em Inglaterra, onde mora a mãe de todas as taças, o debate tem anos: como se evita o definhar de uma prova cercada pela máquina promocional da Premier League e pelo canto de sereia elitista entoado, semana sim semana não, pela Liga dos Campeões? Como se evita, num contexto em que frequência de jogos, multiplicação de clássicos e receitas garantidas são os argumentos que atraem patrocinadores fortes e contratos de TV - as bases atualmente indispensáveis ao sucesso de qualquer competição?

No fundo, a Taça – qualquer Taça, não apenas a nossa - é um delicioso anacronismo, uma herança do tempo em que o futebol profissional começava a expandir-se e precisava de conquistar território para a causa. Nesse tempo, a raridade com que as grandes equipas eram vistas no país profundo e com que este se dava a conhecer aos grandes centros urbanos davam força ao conceito de «festa» e faziam da Taça um manancial de histórias por descobrir. Além disso, a ideia de um favorito ser afastado à primeira, num qualquer pelado, era vista como um aliciante, uma ilusão ingénua de igualdade, e não como uma espinha cravada no potencial de receita da prova. O futebol era uma família harmoniosa onde todos os membros nasciam com os mesmos direitos,  sussurrava-nos a Taça ao ouvido.

Claro que depois disso abrimos os olhos à força. Os anos tiraram-nos inocência. E, na chamada família do futebol, a Taça faz, hoje em dia, figura daquela tia que, na década de 60, andou pelas comunidades «hippies» a praticar o amor livre e a fumar cenas esquisitas. Atualmente não usa telemóvel, nem internet, não conduz e veste-se de maneira esquisita. Tem centenas de histórias para partilhar nas reuniões de família, mas cada vez temos menos paciência para escutá-las. E deixamo-la quase sempre a falar sozinha. A menos que o nosso clube chegue à final: aí, a atenção desperta por momentos, como a ténue promessa de uma herança no dia em que a velhota for conjugar o verbo no infinito.

PS 1: Concordo, no geral, com as alterações introduzidas pela FPF, embora ache que poderiam ter sido um pouco mais profundas, «protegendo» as equipas dos escalões inferiores em mais uma eliminatória. Tenho dúvidas sobre o modelo das meias-finais a duas mãos – e não foram os 16 mil espectadores em Alvalade, no decisivo Sporting-Nacional deste ano, a convencer-me do contrário. Gostaria, por exemplo, de ver testado um modelo à inglesa, com meias-finais em jogo único, em campo neutro, ao fim de semana, já como preâmbulo à grande festa da final. Mas percebo que há problemas de calendário, acentuados pelo absurdo de uma Liga com 34 jornadas. E também percebo que a cosmética não chega para mudar a nossa relação com a tia.

PS 2: Gosto de tias «hippies». Gosto das histórias que a Taça me conta. Concordo que a final tenha um palco permanente e, como ela, exótico. Neste caso, o do Jamor. O que não invalida as preocupações com as condições de segurança e com as dificuldades de organização, acentuadas pela memória dos momentos angustiantes que se viveram há um ano. Lembrá-los é o primeiro passo para evitar que se repitam.
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