Quem disse que não vale a pena lutar? - TVI

Quem disse que não vale a pena lutar?

  • António Garcia Pereira
  • 20 jun 2019, 12:06
Venda de crédito: “Os métodos utilizados ultrapassam os limites do admissível”

Opinião

Verificaram-se esta semana dois acontecimentos de particular importância na luta pela defesa da dignidade da pessoa humana, em particular das pessoas mais vulneráveis e mais massacradas, como sejam as crianças e jovens sujeitos a processos de acolhimento e/ou adopção e as mulheres (e também os homens) vítimas de violências sexuais.

Fruto da luta persistente de um punhado de pessoas corajosas – de que não posso deixar de citar aqui, naturalmente sem qualquer menosprezo para todas as outras, Ana Piedade, Ana Maximiano, Paula Sequeira, Francisca Magalhães de Lemos, Rita Cássia, Gameiro Fernandes, Dulce Galvez, as mães e pais que ousaram denunciar as ilegalidades e irregularidades e as jornalistas Alexandra Borges e Judite França, que as investigaram – e de organizações como Amarca (Associação e Movimento de Alerta à Retirada de Crianças e Adolescentes), Dignidade (Associação para os Direitos das Mulheres e Crianças), #Não adoto este silêncio (Movimento), APMJ (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas), APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) e UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta), foi finalmente publicada na passada terça-feira 18/6 a lei[1]que estabelece inibições no acolhimento de crianças e jovens. Lei esta que resultou de um projecto de lei do PCP apresentado em Julho de 2018 e que apenas 9 meses depois (mais exactamente em 26/4/19) foi aprovado no Parlamento com a inacreditável abstenção do Partido Socialista e os votos favoráveis de todos os outros partidos.

Nos termos dessa mesma lei – que entrará em vigor no prazo de 30 dias a contar da sua publicação, ou seja, em 18 de Julho próximo –, “a participação de membro de órgão social de uma pessoa coletiva de direito privado, que promova o acolhimento de crianças e jovens, num processo administrativo ou judicial que determine o acolhimento, implica a inibição de essa pessoa coletiva ser ou ficar envolvida, a qualquer título, no acolhimento que resultar da decisão”[2]. E se se verificar o desrespeito por essa inibição, a consequência[3]é a irremediável nulidade da decisão.

Significa isto que, finalmente, fica absolutamente clarificado que não pode haver mais juízes, procuradores, assistentes sociais, psicólogos, advogados, dirigentes religiosos ou outros que, sendo membros dos corpos sociais (sejam eles a direcção, a mesa da assembleia geral, o conselho fiscal, o conselho consultivo, a comissão de honra, etc., etc.) de qualquer lar, instituição ou casa de acolhimento, tenham qualquer tipo de intervenção nos procedimentos administrativos (com informações, relatórios, pareceres, petições) ou nos processos judiciais em que se discuta e decida esse mesmo acolhimento.

Trata-se de um princípio básico de “separação de águas” e de um instrumento elementar de combate à promiscuidade de interesses que há muito deveria estar consagrado e que, se ao tempo já existisse, teria decerto impedido, ou pelo menos grandemente dificultado, uma grande parte das adopções de crianças colocadas no Lar Universal da IURD e que foram denunciadas, mas não adequadamente investigadas pelo Ministério Público, no chamado “processo das adopções ilegais”.

É certo que – tal como aliás o próprio Presidente da República assinalou quando a promulgou, com essa ressalva, em 27 de Maio último – se podia, e devia, ter ido mais longe, abrangendo também, para além dos membros dos órgãos sociais, “os técnicos das instituições visadas, que são quem frequentemente está em contacto directo com as situações em análise”.

Mas para se chegar aqui foi, na verdade, precisa muita persistência e muita coragem, inclusive enfrentando quer ameaças, designadamente de morte, quer sucessivos processos judiciais instaurados contra quem fez e contra quem divulgou as denúncias, numa luta muito difícil e profundamente desigual.

Mas, como se vê, valeu a pena travá-la e agora vale seguramente a pena continuá-la para passar a abranger também nas inibições legais toda e qualquer instituição quando uma pessoa a ela ligada, a qualquer título, designadamente como técnico, tiver de algum modo participado no processo administrativo ou judicial da decisão do acolhimento da criança ou jovem!

E é por tudo isso que aqui fica a minha sentida e grata homenagem a todas e a todos os combatentes desta causa.

Por outro lado, foi também esta semana conhecido um justíssimo e muito importante acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12 de Junho, e relatado pela juíza desembargadora Teresa Féria[4].

Tal acórdão decidiu um recurso interposto pelo arguido de uma decisão de 1ª instância que o condenara, pela prática de um crime de violação agravada, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão efectiva, tendo a condenação inicial sido agora confirmada.

A síntese do acórdão é a que a seguir se transcreve, pedindo desde já desculpa pela violência e brutalidade de alguns dos factos dela constantes, mas a verdade é que cremos que tal referência se mostra indispensável à compreensão integral da razão de ser da condenação:

(…)

II – A inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência. 

III – Vítimas há em que o medo lhes impede a demonstração de qualquer reação, é a chamada imobilidade tónica, outras em que se opera uma dissociação da realidade, como se a agressão de que estão a ser vítimas não se passasse com elas e apenas estivessem a observá-la e outro grupo de vítimas decide não resistir para evitar ferimentos ou morte. 

IV – A ausência de resistência física por parte de uma vítima de um crime de violação não pode ser considerada como uma forma de aceitação ou consentimento da agressão, mas pelo contrário expressa apenas o desejo de sobreviver a uma situação cujo controle não detém e relativamente à qual experimenta um sentimento de completa impotência. 

V – A prática de um crime de violação não está relacionada com o desejo sexual nem resulta de qualquer impulso sexual irresistível, mas antes constitui apenas e tão só uma afirmação de poder do agressor sobre a sua vítima. 

VI – Ao introduzir os dedos na boca da ofendida, fazendo com que ficasse engasgada e com vómitos e posteriormente, ao a agarrar, colocando-a junto de uma mesa e baixando-lhe os calções que vestia, é utilizada a violência adequada a impedir a resistência da ofendida, assim impondo o agressor a sua vontade para a sujeitar e obrigar a sofrer um coito oral e um coito anal. 

VII – A conduta de imposição a que a ofendida sofra a prática de uma acto não querido nem consentido consubstancia o elemento típico violência do crime de violação. 

VIII – A centralidade da ilicitude da conduta típica do crime de violação reside no ato de forçar a vontade de outrem, e não no concreto ato de coação sexual, que se é contrangida/o a sofrer. 

IX – As consequências nefastas de uma violação para o desenvolvimento da personalidade de uma jovem são factos notórios, pelo que nos termos do artigo 412º nº1 do CPC não carecem da produção de qualquer elemento de prova.

E trata-se de uma decisão absolutamente notável, porquê? Desde logo porque, contrariando os estereótipos e preconceitos retrógrados e machistas que, pela pena de juízes como Neto de Moura e Manuel Soares, vinham sendo frequentemente produzidos e reproduzidos nas decisões dos Tribunais superiores do nosso País, este acórdão vem consagrar, correcta e claramente, que a ausência de gestos ou movimentos de resistência física por parte da vítima de uma violência sexual (como uma violação) não pode de todo ser entendida como uma qualquer forma de aceitação ou consentimento tácito, mas apenas como a manifestação quer do mais básico dos desejos ou instintos, o de sobrevivência, quer do sentimento de completa impotência em que a vítima é propositadamente colocada pelo agressor.

O acórdão põe também a nu o preconceito sexista de certa doutrina e de certa jurisprudência que tranquilamente consideram, num crime de roubo, que a não manifestação, por parte da vítima, de qualquer reacção à agressão não tem qualquer significado de consentimento, mas, já quando se chega aos crimes de violências sexuais, logo tratam de entender exactamente o oposto…

Mas há ainda e pelo menos outros dois pontos deste magnífico acórdão que se revelam de incontornável importância:

O primeiro consiste em deixar muito claro que o crime de violação não é de todo justificável ou sequer explicável pelas cavernícolas teorias do “impulso sexual irresistível” (ou, noutras formulações, de “contribuição da vítima” para o crime por se passear de calções em plena “coutada do macho ibérico”[5], ou ainda pelo facto de a violação ocorrer numa noite de “muito álcool e sedução”[6]), antes consubstancia, acima de tudo, uma afirmação de poder do agressor sexual sobre a sua vítima. 

O segundo é o de que a prática da violação, para mais de uma menor de 14 anos à data dos factos, assume uma extrema gravidade no livre desenvolvimento da personalidade da vítima, sendo do conhecimento comum – ou, como se diz em linguagem jurídico-formal, constituindo um “facto público e notório” que não carece por isso da produção de prova – que a mesma vítima “experimenta, como norma, os mesmos estados emocionais que aparecem em outras crises profundas. O medo, a vergonha, a humilhação são os sentimentos mais comuns que se manifestam em estados de extrema ansiedade, que perduram ao longo da sua vida”.

Trata-se – note-se bem – de consagrar, e muito justamente, de dispensar a vítima da autêntica tortura de, após todo o tormento por que passou, ter ainda de vir fazer prova (médica, psicológica ou outra) do intenso sofrimento por que passou e por que continua a passar, bem como dos graves danos morais que a agressão sexual lhe causou e ainda hoje lhe continua a causar.

Uma vez mais consagrando aquilo que, para todos os espíritos despidos de preconceitos, constitui uma incontornável evidência, este acórdão reduz a pó as teorias de outras tantas boçais decisões jurisprudenciais no sentido de que o sofrimento da vítima não teria sido assim tão grave visto que, por exemplo, a mesma até teria tido a presença de espírito de anotar a matrícula da viatura do violador[7].

Perante uma jurisprudência dos Tribunais superiores largamente sexista e reaccionária, em particular nesta matéria das violações sexuais, o acórdão relatado pela desembargadora Teresa Féria constitui assim uma verdadeira lufada de ar fresco nesta matéria e também demonstra que vale a pena lutar contra o que é errado, mesmo que, num primeiro momento, pareça todo-poderoso e até invencível.

Há ainda, é certo, um longo caminho a percorrer – até porque deste acórdão ainda provavelmente irão ser interpostos novos recursos –, mas um primeiro e importante passo está dado.

A que agora se têm de seguir outros. E porventura o mais importante deles é – precisamente nesta altura, em que os defensores da teoria da “alienação parental”, recauchutada e “modernizada” sob a capa da “igualdade parental”, mostram ter todos os apoios políticos e judiciários e dispor de todos os recursos financeiros para uma gigantesca campanha publicitária em torno da imposição legal, como regra, da guarda partilhada e da residência alternada dos filhos menores mesmo em casos de reconhecida violência doméstica – tratar de clarificar que aquele que espanca violentamente o cônjuge perante os filhos, ou com o conhecimento destes, não está em condições nem de educar essas crianças nem de voltar a contactar com a vítima.

Não podemos continuar, impávidos e serenos, a assistir à escandalosa tragédia da violência doméstica que “só” este ano já ceifou a vida a 16 mulheres, a um homem e a uma criança! Se há algo que as duas importantes vitórias que aqui referi nos provam, é que vale sempre a pena lutar! 

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