PLAY: o vício que nos suga a vida - TVI

PLAY: o vício que nos suga a vida

Championship Manager

O Football Manager, o senhor Apocalypse Now, Manic Street Preachers, Philip Selway e um romance que começa e acaba com um golo falhado de Pelé

Relacionados
PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«AN ALTERNATIVE REALITY: THE FOOTBALL MANAGER» - de Louis Myles
Naquele Natal perdemo-nos por completo. Tínhamos 14 anos e um punhado de boas práticas. Fazíamos corridas de bicicletas em empedrado, jogávamos futebol em empedrado, ensaiávamos uma versão rudimentar de hóquei em campo em empedrado.

Rompíamos os joelhos, rebentávamos os cotovelos, mas nada nos preparara para aquele vício.

1992, poucos meses depois de um Europeu na Suécia. Lá em casa já morava um Commodore Amiga. Branco, pesado, caríssimo. Experimentávamos jogos, trocávamos disquetes, a pirataria era uma salutar forma de amizade.

Juntávamo-nos em quartos escuros, salas de família, até nas zonas da lavandaria. Qualquer sítio, por mais frio ou esconso, servia. Sensações novas, olhares colados, embebidos em curiosidade e euforia. Passámos a ser capazes de cometer verdadeiras loucuras. Proezas que nos elevavam à condição de heróis entre os nossos pares.

Num período em que a nossa casa estava em obras, o quarto dos meus pais era a única divisão onde se podia ligar o computador. Nessa fase, certamente de férias natalícias, eles acordavam para trabalhar e deparavam-se com o triste do filho a acabar mais uma época com o Liverpool.

Aconteceu em 1992, insisto, e o que víamos era isto. Viciante, irresistível, incontrolável.



Crescemos e o Championship Manager cresceu connosco. Ano após ano, edição após edição. Passou a chamar-se Football Manager, modernice do século XXI, mas manteve a matriz dos primeiros tempos.

Ter um clube de futebol, gerir a equipa profissional, contratar e vender jogadores, superar amigos e vizinhos em longas batalhas. É a realidade retratada na perfeição. Quem nunca se aventurou neste mundo virtual?

Aqui na redação, por exemplo, o João Tiago Figueiredo gaba-se diariamente de ter levado o Gil Vicente ao topo da Liga dos Campeões. O Vitor Hugo Alvarenga recuperou o Tirsense há umas épocas para os anos dourados de Marcelo e Paredão. O Paços Ferreira, nas mãos hábeis do Sérgio Pereira, transformou a Capital do Móvel na capital do futebol.

Eu, na minha humildade, sinto um orgulho incomensurável por ter recolocado o Amora nos escalões profissionais.

Vício? Sim, totalmente assumido. E anualmente renovado. Horas de vida perdidas? Talvez.

O novo Football Manager foi colocado à venda a 7 de novembro e fez-se acompanhar de um documentário delicioso sobre outros junkies.

Gente de gostos simples, mas fiéis. Como nós.



PS: «The Judge» - de David Dobkin.
«I love the smell of napalm in the morning». Ah, as saudades. O enorme Robert Duvall investido de um chapéu da velha Cavalaria dos EUA, antes de bombardear as forças vietnamitas.

Apocalypse Now, um dos melhores filmes de sempre. Ver este The Judge vale a pena essencialmente por isso. Ter o mestre Duvall duas horas à nossa disposição. A mesma expressão, a mesma rudeza singular, a mesma doçura em instantes improváveis.

Aos 83 anos, é normal que esta tenha sido uma das suas últimas aparições no grande ecrã. Aproveitem-na. Robert Downey Jr. está à altura do duelo, mas Duvall é Duvall.



SOUNDCHECK:

«S.Y.M.M.» - dos Manic Street Preachers.
Abril de 1989. 96 adeptos do Liverpool morrem naquela na tristemente célebre tragédia de Hillsborough. Relatórios oficiais apontam o dedo à inação da Polícia na gestão de uma multidão excessiva. Muitos morrem esmagados, outros por asfixia. As imagens são abomináveis.

Nesta música de 1998, os geniais galeses evocam a data e chamam assassinos aos agentes policiais alocados para o jogo de todos os horrores.

A atmosfera povoada por uma batida pesada ajuda a recriar o ambiente de dor. Mais do que uma música sobre futebol, uma composição sobre a condição humana.

«South South Yorkshire - Mass Murderer
How can you sleep at night, sleep at night
South South Yorkshire - Mass Murderer
How can you sleep at night, sleep at night»



PS: «Weatherhouse» - de Philip Selway.
Enquanto aguardo o meu ansiado novo disco dos Radiohead, exploro os trabalhos paralelos dos membros da banda. Há duas semanas trouxe o álbum a solo de Thom Yorke, agora atiro-me ao projeto de Phil Selway, o circunspeto baterista dos fabulosos de Oxford.

Mais negro e denso do que o antecessor – Familial, de 2010 -, este Weatherhouse embarca numa trip de eletrónica, munido de uma poderosa base de percussão, ou não fosse Selway um executante soberbo.

Menos paranoico e esquizofrénico do que Yorke, Phil Selway demonstra um crescimento assinalável enquanto compositor e, mais do que isso, construtor de partituras. Para ouvir devagar, em silêncio, e sorver o ambiente zen.
Bem-estar e saúde mental em dez músicas.



VIRAR A PÁGINA:

«O DRIBLE» - de Sérgio Rodrigues
Tudo começa num golo falhado por Pelé no Mundial de 1970. Frente ao Uruguai. O lance é icónico. É o drible de corpo do Rei sobre o guarda-redes Mazurkiewicz, sarapantado, a bola em linha reta e o avançado a encontrá-la sem nunca lhe tocar. Até ao remate. Desperdiçado, a centímetros do poste direito.

Esse momento abre e fecha a obra de Sérgio Rodrigues. É uma caixa de ressonância para a história – ficcional - de Murilho Filho, um jornalista na casa dos 80 anos, e do seu filho. O conceituado autor queria que a narrativa tivesse «a forma de um drible».

A era da ditadura, o jornalismo desportivo nos anos de Mário Filho e Nélson Rodrigues, a novela de Peralvo, aquele que podia ter sido maior do que o futebolista que abre e fecha o livro a falhar um golo de génio.

«(…) Tostão, cabeçudo inconfundível, número 9 às costas, conduz a bola observado a certa distância por um sujeito de camisa azul-clara e calção preto. Murilo solta a imagem por três segundos, Tostão conduz a bola, e quando volta a congelá-la Pelé aponta no canto superior direito do quadro e você sente um tranco na barriga como se a velocidade do mundo desse de repente um arranque, alguém ligando um acelerador de partículas. O velho segue na sua narração caseira, aí então, diz, olha só, nós vemos aquilo que o Tostão também acaba de ver, Pelé se projetando da meia direita feito um bicho, uma pantera
com sangue de guepardo (…).»



«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas e/ou livros através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.
Continue a ler esta notícia

Relacionados

EM DESTAQUE