A 18 de março fiz noite no Serviço de Urgência. Vivemos muitos anos nos meses que se seguiram, mas nenhuma noite foi tão longa. Era o primeiro dia do Estado de Emergência. Era o medo, o desconhecido, o calor sufocante dentro do equipamento de proteção individual. Era sobretudo a certeza de um propósito, a incapacidade de ficar em casa, a vontade de unir forças contra o vírus. Em poucos dias reorganizámos circuitos, serviços, hospitais inteiros. Fomos à luta.
Também nós tivemos medo - por nós, pelos nossos, pelos doentes. Muitos de nós saíram de casa, bilhete só de ida e retorno em data incerta. Sentimo-nos muitas vezes no limiar de tudo, mesmo da esperança. Os relatos que nos chegavam de Espanha e Itália e as brechas geradas por anos de desinvestimento sustentado no Serviço Nacional de Saúde fizeram-nos temer o colapso da nossa capacidade de cuidar. Tudo foi - e continua a ser, que isto ainda não acabou - esticado ao máximo: os recursos materiais, o espaço e sobretudo as pessoas. As semanas fizeram-se de muitas horas de trabalho e poucas de descanso. Sentimo-nos falhar muitas vezes e vimos, nos doentes e nos números, que não chegámos para tudo. Todos quisemos desistir, algures. Mas fomos à luta.
A comunidade científica também foi. Nunca se produziu tanta ciência sobre um único tema. Nunca se estudou de forma tão intensa e condensada, nunca se gerou tanta informação em tão curto espaço de tempo. Mas vivemos também na era da pós-verdade, da desinformação, no reinado da opinião sobre o facto e o medo sempre foi combustível para a intrujice. Resta-nos esperar que os autointitulados “pela verdade” caiam rapidamente no esquecimento, deixando apenas a memória do erro para que não se repita.
E nunca em tão pouco tempo da árvore se fez fruto. Diziam-nos que seriam precisos 12 a 18 meses para haver uma vacina e afinal aqui estamos, ao fim de menos de um ano. É fundamental explicar que a tecnologia que permitiu chegar de forma tão célere a várias destas vacinas estava em desenvolvimento há muitos anos, para outros fins. Foi uma sorte que nos calhou, neste ano tão desafortunado.
A verdadeira eficácia das vacinas só será conhecida daqui a vários meses. Não sabemos quanto tempo durará a proteção e se a imunidade de grupo é possível. Mas sabemos que estamos a avançar, a desbravar caminho, a aprender. Até haver mais certezas, continuam a ser fundamentais as medidas de proteção e o distanciamento social. Não podemos baixar a guarda agora, quando já falta tão pouco.
A vacina chegou-nos há poucos dias. Hoje calhou-me a mim. Braço direito se faz favor, que sou canhota. E eu, que me recusei sempre a desenhar arco-íris, saio de lágrimas nos olhos, profundamente grata à Ciência e a quem trabalhou incansavelmente para chegarmos aqui, ao princípio do fim.
Amanhã há ainda muito por que lutar. As sequelas médicas, económicas, sociais e emocionais da pandemia far-se-ão sentir durante muito tempo. Mas hoje, só por hoje, que seja tudo esperança e horizonte.
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
[Sophia de Mello Breyner Andresen]