Como defender um agressor – Os acórdãos do juiz Neto de Moura - TVI

Como defender um agressor – Os acórdãos do juiz Neto de Moura

  • António Garcia Pereira
  • 28 fev 2019, 12:08
Garcia Pereira [Lusa]

O advogado António Garcia Pereira escreve sobre os acórdãos do juiz Neto Moura que têm sido alvo de polémica

Recentemente, os mais incautos (ou ingénuos) voltaram a ser confrontados com uma nova “pérola” da co-autoria do juiz desembargador Neto de Moura. O mesmo que foi alvo, no passado dia 5 de Fevereiro, da aplicação pelo Conselho Superior da Magistratura da pena disciplinar de “Advertência Registada” por considerações e preconceitos tão despropositados quanto reaccionários e anti-constitucionais, espraiados num Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/10/17, para assim tentar justificar a suspensão da pena de 2 homens autores de bárbara agressão a uma mulher.

Tal nova “pérola” é o Acórdão, também do Tribunal da Relação do Porto, de 31 de Outubro de 2018 – igualmente subscrito pelo desembargador Luís Coimbra – proferido no âmbito do processo 353/17.1.SL.PRT.P1, no qual os dois juízes decidiram diminuir a pena que fora inicialmente aplicada pelo Tribunal da Comarca de Matosinhos a um arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica agravado. Na verdade, o dito Acórdão baixa a medida da pena inicialmente aplicada (3 anos de prisão com pena suspensa), para uma de 2 anos e 8 meses, igualmente suspensa, e reduz a proibição de contactos com a vítima (que era de 3 anos e com recurso a meios de vigilância electrónica) para apenas um ano e sem pulseira electrónica.

Tudo isto sob argumentos como o de que “(…) Ao contrário do que se proclama, não é legítimo afirmar que se verifica um recrudescimento do fenómeno da violência doméstica e em particular da violência contra as mulheres”, ou de que “o arguido/recorrente não revela graves problemas de inserção social”, ou ainda de que “tirando os factos por que foi julgado, apresenta-se como um cidadão fiel ao direito”, ou, finalmente, de que “este caso de maus tratos está longe de ser dos mais graves que surgem nos Tribunais” (sic!)

Ora, os factos que se provaram quanto à conduta do arguido do processo foram, no que diz respeito à violência doméstica, “apenas” estes:

  1. Pelo menos, desde o ano de 2013 até à saída da habitação de C…, o arguido, em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos uma vez por semana, após o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, dizia, aos gritos, a C… que ela era “uma puta, uma vaca, que só tinha amantes, porca e que ela não valia nada”.
  2. Nalgumas dessas situações, o arguido também dizia a C…: “eu mato-te!”.
  3. Sem prejuízo das situações específicas infra mencionadas, em momentos não concretamente apurados, mas durante o período indicado no número 4. dos factos provados, o arguido agrediu fisicamente C…, mediante bofetadas, que a atingiam na cabeça e membros superiores, ao mesmo tempo que lhe dirigia as referidas expressões.
  4. Das referidas condutas do arguido resultaram para a identificada C… hematomas, edemas, escoriações e dores, com exceção da situação mais grave que infra se descreve.

(…)

  1. Quando se dirigia, apeada, para o estabelecimento comercial onde laborava, o arguido telefonou a C… e disse-lhe que estava com uma arma para ir ter com o amante dela.

(…)

  1. Logo após, esta desliga o telefone, regressa de imediato e em pânico a casa, tendo nessa ocasião, por volta das 8:30 horas, o arguido lhe apontado um objeto não concretamente apurado mas com a forma de uma pistola e dito a C… que a matava por esta ter um amante.
  2. Uns dias mais tarde, por volta das 5:30 horas, o arguido empunhou e apontou-lhe novamente o aludido objeto e disse-lhe que ela era puta, uma vaca e que não valia nada.

(…)

  1. Em dia não concretamente apurado do primeiro semestre de 2016, situado no mês de Abril ou Maio, no interior da referida residência, o arguido desferiu vários socos em C…, atingindo-a nas diferentes zonas da cabeça, incluindo ouvidos.
  2. Da referida conduta do arguido resultou para C… perfuração antero-inferior da membrana timpânica esquerda, para além de edemas, hematomas e escoriações nas demais zonas da cabeça e ainda das dores que sentiu, que lhe determinaram 60 (sessenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral (8 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (8 dias), e sem quaisquer consequências permanentes.
  3. Também noutras ocasiões o arguido telefonava insistentemente para o telemóvel de C…, para controlar os seus passos e dizia-lhe que ela tinha amantes.
  4. O arguido por inúmeras ocasiões queimou-se em frente a C…, com cigarros e chegou mesmo a cortar-se, para demonstrar que não tinha medo de morrer, o que causou naquela um enorme estado de sofrimento e terror.
  5. Os factos indicados no número 4. dos factos provados também chegaram a suceder no estabelecimento comercial de café, denominado “Café F…”, sito na Rua … – Matosinhos, explorado pela C…, desde 2011 e até 18 de Julho de 2017, inclusivamente em frente a clientes.
  6. No dia 18 de Julho de 2017, pelas 04H30, o arguido chegou à referida residência comum do casal, após ter consumido bebidas alcoólicas em excesso, agarrou numa catana que exibiu em direcção à C…, e disse-lhe: “vou-te matar e depois mato o teu filho!”.

(…)

  1. Assim que teve oportunidade, e perante o mencionado receio, a C… abandonou nesse mesmo dia a referida residência, permanecendo em paradeiro desconhecido do arguido até à presente data.
  2. Ademais, viu-se forçada, em prol da sua segurança, a manter encerrado o identificado estabelecimento comercial, perdendo, deste modo, a sua única fonte de rendimento.
  3. O arguido procurou C… junto do filho e da nora, em estado ébrio, pretendendo obter falar com C… ou obter a sua localização.
  4. Como tais pedidos lhe têm sido recusados, o arguido tem ali provocou desacatos.

São estes factos que o juiz desembargador Neto de Moura, relator do Acórdão em causa, considera que, “apreciados na sua globalidade, não revelam uma carga de ilicitude particularmente atenuada, confinando-se àquilo que é a situação mais comum no quadro geral de violência doméstica” (sic, a fls. 11!) e com os quais, por isso mesmo, procura fundamentar a benevolência da decisão. Ao pior estilo de, como não se chegou ao homicídio e “só” houve ameaças e espancamentos, afinal, não é assim tão grave…

Esta verdadeira protecção do agressor e “justificação” da violência doméstica é mesmo explicitamente justificada com este outro trecho igualmente lapidar (a propósito da apreciação da prova):

Se durante muito tempo e até há uns anos atrás a vítima da violência doméstica sentia que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada por não ter quem atestasse as agressões e às suas declarações não era dado o devido relevo probatório, a verdade é que, nos últimos tempo, têm-se acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais basilar discussão ou desavença entre marido/companheiro/namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum mérito pode ser-lhe reconhecido(sic, a fls. 6 e 7, com negrito nosso).

Em suma: as queixas e as preocupações das vítimas de violência doméstica – de que já foram assassinadas 11 só no início deste ano – não passam decerto deste horrífico processo de “diabolização” dos agressores…

Ora, tudo isto significa que esta nova e inefável decisão, datada de 31/10/18, é produzida mais de um ano depois de Neto de Moura saber que já lhe fora instaurado (em 25/10/17) pelo Conselho Superior da Magistratura um inquérito disciplinar (depois transformado em processo disciplinar), precisamente por causa do teor das declarações que se arrogara proferir num outro Acórdão do Tribunal da Relação do Porto gravemente desculpabilizante dos violentos agressores (marido e amante), designadamente com o uso de uma tábua com pregos, de uma mulher adúltera e onde – recorde-se – este iluminado julgador já referia, entre outras coisas, esta barbaridade:

O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.

Porém, anteriores decisões do mesmo juiz mostram que este era, e é, um comportamento recorrente do magistrado em questão e que, com a co-autoria ou conivência dos seus pares, se pôde ir repetindo, sempre impunemente, quer em termos disciplinares, quer, ao que se saiba, em termos de avaliação. A ponto mesmo de parte da fundamentação de diversos e sucessivos acórdãos ser elaborada em autêntico copy pastede uns para os outros.

Assim, num Acórdão da Relação de Lisboa de 15/1/2013 (Proc. nº 1354/10.6.TDLSB.L1.5), Neto de Moura já considerara que uma outra e provada conduta de um arguido – que, para além de ter chamado, por diversas vezes, “puta” à queixosa, sua companheira, e de, num determinado dia e na presença do filho recém-nascido, ter-lhe gritado, e dado um murro no nariz, e ainda lhe morder a mão, havendo depois começado a bater no berço do bebé e partido as respectivas rodas – não passaria “de uma simples ofensa à integridade física, que está longe de poder considerar-se uma conduta maltratante susceptível de configurar violência doméstica”, acrescentando que “é manifesto que essa conduta do arguido, mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho (então com 9 dias de vida) ao colo não tem gravidade bastante para se poder afirmar que, com ela, foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente (a queixosa) e, portanto, que o seu bem estar físico e emocional foi intoleravelmente lesado”.

Mais! Já em 2010, mais concretamente num Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/11/2010 (Processo 856/08.9TAOER.L1.5) Neto de Moura havia feito precisamente o mesmo.

Com efeito, neste Acórdão, as medidas das penas que tinham sido aplicadas pelo Tribunal de primeira instância – 3 anos e 6 meses, por violência doméstica e 2 anos, pelo crime de maus tratos, num cúmulo jurídico (pena única) de 4 anos e 6 meses, com pena suspensa – a um violento agressor não só da mulher, doente com fibromialgia, mas também da filha (a quem desferiu estalos e pontapés sem qualquer razão que o justificasse), foram diminuídas respectivamente para 2 anos e 6 meses, e 18 meses, numa pena única de 3 anos, igualmente suspensa por igual período.

Acontece que tal atenuação foi então justificada com outras tantas barbaridades argumentativas como estas:

Não podem ser ignoradas as referências a uma relação extra-conjugal da ofendidaS… (e não foi, apenas, o arguido a referir-se-lhe) que teria sido a causa próxima de toda esta situação conflitual.

(…)

Por outro lado, a ofendida S… sofre (já sofria quando estava casada) de fibromialgia e o arguido, sabendo disso, não se inibiu de a molestar fisicamente, o que torna a sua conduta mais censurável.

No entanto, estes casos de maus tratos estão longe, muito longe mesmo, de serem dos mais graves que surgem nos tribunais.

Repare-se que em quase todas as situações de violência física exercida sobre a ofendida S… as consequências foram sempre de pouca monta, não indo além de uns pequenos hematomas e escoriações (veja-se, por exemplo, as lesões sofridas em consequência dos factos ocorridos no dia 05.05.2008).

Nunca o arguido utilizou contra as ofendidas qualquer instrumento (de natureza contundente ou outra) ou arma de qualquer espécie.

Fez sempre, e só, uso das mãos e, na maior parte das situações, as agressões físicas traduziam-se em simples “palmadas”, “estalos” e “torções” de braços.

Só numa situação o arguido foi particularmente violento, pois atingiu a S… com um murro na face, fazendo-a perder os sentidos.

No que respeita à ofendida R…(a filha a quem dava pontapés e estalos sem qualquer motivo -nota nossa)as condutas agressivas do arguido situam-se na zona de fronteira entre o que pode considerar-se o exercício do poder de correcção dos pais sobre os filhos e o que deve considerar-se actuações com relevância criminal.

(…)

Do que se apurou, não resulta que as ofendidas tenham ficado particularmente traumatizadas, nomeadamente, não precisaram de acompanhamento psicológico, embora manifestem, ainda, a sua revolta contra o arguido.

Por isso que as penas aplicadas excedem, claramente, o limite da culpa do arguido.

(sic, com negritos nossos).

E assim logo tratou de diminuir a pena aplicada e, claro, de manter a suspensão da execução da mesma.

E em Acórdão de 30/10/12 (Processo 440/17.4GCTVD.L1.5), corrigindo embora a incriminação do crime de maus tratos para o crime de violência doméstica e a pena de prisão de 1 ano e 6 meses, suspensa, para 2 anos e 6 meses, mas igualmente suspensa, num caso de gravíssimas e consecutivas agressões contra a companheira com ferimentos e hematomas na face e nos olhos, fractura do braço direito, inúmeras e graves dores, doença com incapacidade para o trabalho e permanente mal estar do foro psicológico, logo tratou Neto de Moura de revogar a sujeição dessa suspensão à condição do cumprimento, pelo agressor, de um plano de readaptação social, sob pena de, não sendo respeitada, de imediato ser revogada a suspensão da pena e ser determinado o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada que fora decretada na primeira instância. Tudo isto, sob o argumento, que se lhe tornou habitual, de que “o grau de culpa não ultrapassa a mediania” e de que “o arguido não revela especiais carências de socialização”.

Por outro lado, sob o argumento de que a mulher – apesar de violentamente injuriada e ameaçada – teria sido vítima de umas simples injúrias e não de violência doméstica, e de que não haveria indícios bastantes do perigo da prática, pelo marido agressor, de condutas lesivas da integridade psicológica e até física daquela, no Acórdão de 26/10/16 (Processo 247/16.8PAVCG-a.P1), revogou a medida de coação (que fora decretada pelo juiz de instrução criminal) do afastamento da casa de habitação da vítima.

Todas estas decisões confirmam que os 2 últimos e mais conhecidos Acórdãos relatados pelo desembargador Neto de Moura não resultaram de qualquer “desvario momentâneo” nem de nenhum “erro pontual”, mas antes consubstanciam uma prática continuada, sedimentada e sempre fundamentada no mesmo tipo de juízos preconceituosos, sempre favoráveis aos agressores e desfavoráveis às respectivas vítimas.

Mas, precisamente por isso, não podem deixar de se colocar questões, e questões relevantíssimas, a cuja resposta não é mais legítimo que se permita que os responsáveis pela sua resolução continuem a esquivar-se:

1ª O que faz afinal correr o CSM – Conselho Superior da Magistratura que, muito significativamente, já veio a correr declarar que não irá instaurar segundo processo disciplinar ao juiz Neto de Moura, não obstante as boçalidades jurisprudenciais do agora conhecido Acórdão de 31/10/18 serem idênticas às do de 11/10/17 e que justificaram a simbólica sanção disciplinar aplicada? Não é evidente que tal procedimento disciplinar não passou, afinal, de uma farsa destinada a, perante a indignação que os tais preconceitos transformados em “fundamentação” justamente tinham suscitado, fazer calar essas vozes e “deixar passar a onda”?

2ª De que forma, e com base em que critérios, é que o mesmo CSM, ao longo destes anos, avaliou o trabalho do juiz Neto de Moura e lhe atribuiu classificações? E quais foram estas, já que para se chegar a desembargador é preciso ter classificações de “Muito Bom” ou, quando muito, de “Bom com distinção”?

3ª Será que a Escola de Formação de Juízes, o Centro de Estudos Judiciários – CEJ, vai poder continuar a passar entre os pingos da chuva sob o argumento de que não tem nada a ver com situações destas pois apenas lhe compete a formação inicial dos juízes e a formação complementar só é obrigatória para os juízes da primeira instância mas eles podem livremente escolher o tipo de acções que pretendem frequentar?

4ª Quando o Estado Português é condenado em instâncias internacionais (como já sucedeu, e por diversas vezes, no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e também, embora mais raramente, no Tribunal de Justiça da União Europeia) por virtude de barbaridades jurisprudenciais cometidas nos nossos Tribunais, vamos continuar a admitir que, em nome da “independência do Poder Judicial”, ninguém seja responsabilizado e, pior, que sejam todos os cidadãos contribuintes a pagar do seu bolso as indemnizações em que o Estado Português é condenado?

5ª É só nos Tribunais Criminais, e também nos de Família e Menores, que barbaridades destas são produzidas, e sempre impunemente, ou é ou não verdade que os mais atrasados, reaccionários e boçais preconceitos também são arvorados em “fundamentos de decisões” noutros Tribunais, com os de Trabalho à cabeça?

Constitui um dever cívico de todos e cada um de nós exigir e manter uma cultura de responsabilização e de respeito pelos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos. E o primeiro passo para isso é precisamente não permitir que estas perguntas continuem a ficar sem resposta!

Quantas mais mulheres terão ainda de morrer para que a violência doméstica seja encarada como a verdadeira hecatombe cívica que ela realmente é e se exija uma actuação firme e enérgica a todos os níveis que nada tem que ver com minutos de silêncio e dias de luto que são as folclóricas medidas decretadas pelo Governo em ano de eleições?

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