Dos Arcos a Kiev: neve e robôs numa caminhada de gigantes - TVI

Dos Arcos a Kiev: neve e robôs numa caminhada de gigantes

REPORTAGEM MAISFUTEBOL/TVI: viagem com paragens obrigatória em Malta, Checoslováquia, Dinamarca, URSS e no balneário do FC Porto, onde Artur Jorge pontapeava garrafas.

Oito meses e dez dias. Tempo suficiente para o dragão de Artur Jorge viajar entre Vila do Conde e Viena, palco da final do Prater. Uma peregrinação plena de agruras, desamores e sofrimento, sim, mas realizada de mãos dadas e merecedora da mais comovente distinção.

O inofensivo Rabat Ajax foi um conto para crianças; o Vitkovice fez da chuva e da neve as suas maiores forças de oposição ao regime portista; o Brondby teve Peter Schmeichel na baliza e colossos físicos na defesa e meio campo; o Dínamo Kiev revelou-se uma equipa de autómatos vítreos, inclementes.

Um a um, todos derrubados pelo império do Bem, o esquadrão pensado por Pinto da Costa.

Oito jogos de uma campanha para gigantes, pejada de armadilhas e recantos escuros. Afinal, onde esteve o ponto-chave no percurso do FC Porto? 30 anos depois, a resposta não é consensual.

João Pinto, o ‘Capitão Viena’, escolhe o jogo em Ostrava, contra o Vitkovice. «Tinha chovido, o terreno não estava nas melhores condições. A equipa deles era superior à nossa fisicamente e aquele terreno só os favorecia», recorda o antigo lateral direito.

«Aos cinco minutos, nesse jogo, passámos pela primeira vez a linha de meio campo. Arrisquei um remate e a bola foi à trave. A partir daí levámos massacre e só perdemos 1-0. O segundo jogo, nas Antas, já nos correu melhor, o terreno era outro e tecnicamente éramos mais evoluídos do que eles.»

António Frasco, médio de técnica irrepreensível e alma genuína, escolhe o duelo em Copenhaga. «O ponto-chave foi o jogo contra o Brondby, lá. Foi muito difícil. Passámos um bocado de sofrimento, mas conseguimos dar a volta e marcar o golo que nos apurou. Nessa altura pensei que tínhamos grandes hipóteses de chegar ao título europeu.»

Eduardo Luís, atleta polivalente e de fiabilidade indiscutível, balança entre as duas opções, como balançava entre o centro e a esquerda da defesa, e acrescenta maia uma: Kiev.

«No campo do Viktovice perdemos, demos bem a volta em casa. O Brondby foi difícil também, tinha bons jogadores. Tinha o Peter Schmeichel, por exemplo. Mas a meia-final contra o Dínamo foi o ponto mais difícil.»

«As pessoas não apostavam tanto em nós, porque o FC Porto não era favorito. Fomos grandes, fomos enormes tanto lá como cá. Sofremos muito e jogámos muito também.»

Com as Antas na fase final das obras de rebaixamento, este glorioso pedaço de história arranca a 17 de setembro de 1986, um bocadinho mais a Norte. Ruma posteriormente a uma das jóias do Mediterrâneo, faz várias paragens na Invicta e carimba o passaporte na extinta Checoslováquia, Dinamarca e na também já desaparecida URSS.

Só um gigante domaria tamanha provação.

16-avos-de-final
RABAT AJAX: o gatinho maltês

Quatro dias depois de empatar nos Arcos para o campeonato, o FC Porto volta ao local do crime para esmagar o pequeno Rabat Ajax. «Poker» de Fernando Gomes, «bis» de André, com Elói, Rabah Madjer e Celso também a inscreverem o nome da lista de marcadores.

«Na primeira eliminatória, contra uma equipa de Malta, ganhámos o primeiro jogo por uma margem larga, num jogo em Vila do Conde devido às obras de rebaixamento do Estádio das Antas. Creio que foi 9-0. Sabíamos que tínhamos de fazer um resultado bom em Portugal para passar», recorda João Pinto, três décadas depois.

«A maior parte dos nossos jogadores iam à seleção e tínhamos a experiência de que jogar em Malta trazia dificuldades. A prova disso é que no primeiro jogo ganhámos 9-0 e no segundo, salvo erro, só ganhamos por um.»

Tudo certo, foi mesmo assim. Com Jozef Mlynarczyk lesionado, Zé Beto passa a ser o dono da baliza e faz quase toda a qualificação. O gigante polaco só volta para as meias-finais.

1ª mão - 17 de setembro de 1986 (9-0, V)
Estádio dos Arcos, Vila do Conde
Árbitro: Ramos Marcos (Espanha)

FC PORTO: Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Bandeirinha (Madjer, 17’); Frasco (Sousa, 58), Jaime Pacheco, André e Elói; Fernando Gomes e Paulo Futre.

Golos: Gomes (20, 48, 70 e 83), Elói (26), Madjer (54), André (57 e 59) e Celso (80).

2ª mão - 1 de outubro de 1986 (0-1, V)
Estádio Nacional, Ta’ali
Árbitro: Komadinic Dragisa (Jugoslávia)

FC PORTO: Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Bandeirinha (Juary, 13); Jaime Magalhães, Jaime Pacheco, André e Quim (Sousa, 54); Paulo Ricardo e Paulo Futre.

Golo: Sousa (81)

Oitavos-de-final
VITKOVICE: chuva, neve e medo em Ostrava

A única derrota do FC Porto na corrida para Viena apareceu na ex-Checoslováquia. André diz que esse foi «o jogo mais difícil» dos dragões. «Sem dúvida nenhuma. Estava um vento muito frio. A relva estava coberta de neve, mas uma neve dura, intensa. Não conseguíamos jogar normalmente, escorregávamos com facilidade e não sentíamos os pés com o frio.»

Falar em neve é falar de Tóquio e da Taça Intercontinental, realizada meses depois. André diz que em Ostrava a neve era «diferente». «No Japão o gelo era mais moído, mais húmido.»

Paulo Futre concorda com André no que concerne ao grau de dificuldade do desafio. «Fomos massacrados», resume o genial esquerdino. «Em 1984/85 tínhamos sido eliminados pelo Wrexham, porque facilitámos muito, e por isso preparámo-nos bem para o Vitkovice. Mas só conseguimos passar porque fizemos um jogo fantástico nas Antas.»

Em Ostrava, o único golo nasceu num penálti. André relembra a jogada. «Eu domino a bola no meio-campo e penso em atrasar ao Zé Beto. Estava um vento de leste, a bola começou a travar, o Zé Beto hesitou e quando foi lá fez penálti. Perdemos 1-0.»

Artur Jorge não gostou nada do lapso. Ou melhor, da «borrada».

«No jogo de cá, o Artur Jorge chamou-me aos berros: ‘André, vais redimir-te! Com a borrada que fizeste lá, vais ter de te redimir. Vais jogar a avançado com o Gomes’. Aos cinco minutos já eu tinha marcado um golo. O Artur Jorge depois recuou-me para a minha posição porque já tinha corrigido a asneira que tinha feito.»

Desse bom jogo nas Antas (3-0), Futre também guarda boas memórias.

«Fiz um golo espetacular, depois de uma tabelinha com o Gomes. Fintei um jogador, depois outro, chutei forte e a bola passou pelo meio das pernas do guarda-redes. Fui festejar às redes com os adeptos.»

O FC Porto avançava assim para os quartos-de-final.

1ª mão - 22 de outubro de 1986 (1-0, D)
Estádio do Vitkovice, Ostrava
Árbitro: George Smith (Escócia)

FC PORTO: Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Inácio; Jaime Magalhães, Jaime Pacheco, André e Quim (Sousa, 46); Fernando Gomes (Juary, 85) e Paulo Futre.

Golo: Sourek (25)

2ª mão - 5 de novembro de 1986 (3-0, V)
Estádio das Antas, Porto
Árbitro: Marcel van Langenhove (Bélgica)

FC PORTO: Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Inácio; Jaime Magalhães, Jaime Pacheco, André e Quim; Fernando Gomes (Juary, 83) e Paulo Futre (Madjer, 83).

Golos: André (5), Celso (25) e Futre (81)

Quartos-de-final
BRONDBY: um ratinho brasileiro anti-Schmeichel

Um golo solitário de Rabah Madjer nas Antas deixou a eliminatória por definir. O FC Porto partiu desconfiado para a Dinamarca. Sofreu muito na primeira parte, Steffensen igualou a eliminatória e teve de ser o abençoado Juary a resolver tudo.

O epíteto de ‘arma secreta’, aplicado ao ratinho brasileiro, nunca foi excessivo. Antes de Viena, já ele saltava do banco de suplentes para resolver jogos.

«O Brondby era teoricamente superior, a Dinamarca na altura estava na moda. Tinha por exemplo o Schmeichel na baliza e o Brian Laudrup era suplente», lembra Paulo Futre, um dos heróis do difícil empate dos dragões em Copenhaga.

«Foi uma eliminatória muito equilibrada e lá na Dinamarca fazia um frio de rachar. O Juary resolveu aquilo na segunda parte. Na véspera do jogo em Copenhaga, o presidente reuniu-nos no hotel e foi a primeira vez que o ouvi a dizer: ‘se passarmos amanhã, vamos ser campeões da Europa’.»

Paulo Futre nunca mais se esqueceu dessa premonição do dirigente. «Fui para a cama a pensar naquilo, era algo que estava ainda longe da minha cabeça.»

1ª mão - 4 de março de 1987 (1-0, V)
Estádio das Antas, Porto
Árbitro: Gerard Biguet (França)

FC PORTO: Zé Beto; João Pinto, Eduardo Luís, Celso e Laureta; Frasco (Jaime Magalhães, 67), André e Sousa (Casagrande, 46); Madjer, Fernando Gomes e Paulo Futre.

Golo: Madjer (71)

2ª mão - 18 de março de 1987 (1-1, E)
Idraest Park, Copenhaga
Árbitro: Lajos Nemeth (Hungria)

FC PORTO: Mlynarczyk; João Pinto, Lima Pereira, Celso e Inácio; Frasco (Eduardo Luís, 78), André e Quim; Casagrande (Juary, 21), Fernando Gomes e Paulo Futre.

Golos: Steffensen (36) e Juary (60)

Meias-finais
DÍNAMO KIEV: monstros e robôs na URSS

Vencedor da Taça das Taças em 1986, o Dínamo de Valeri Lobanovsky era uma máquina assassina, interessada apenas na vitória. Os futebolistas eram robôs desalmados, afinados com a precisão soviética, monstros programados para aniquilar tudo e todos dentro do relvado.

A linguagem bélica continua a fazer sentido para os heróis portistas de 87. Paulo Futre e André colocaram o FC Porto a vencer, até aparecer um golo dos soviéticos a 12 minutos do fim. Um golo que transtornou Artur Jorge.

«Podíamos ter feito o 3-0 e sofremos um golo. No final do jogo, no balneário, o Artur deu um pontapé numas garrafas. Sabia que íamos jogar contra uma grande equipa e podíamos ter um resultado mais amplo. Ele sentiu que as dificuldades lá iam ser muitas e, de facto, isso veio a acontecer.»

«Lembro-me que na altura queria o Bayern na meia-final, porque o Dínamo metia medo», acrescenta Paulo Futre. «Eram dez jogadores titulares da União Soviética. Tinham ganho a Taça das Taças no ano anterior com um 3-0 ao Real Madrid. Era uma potência física e técnica. Metiam medo», insiste o canhoto do Montijo.

Numa era em que a informação sobre o oponente era um bem escasso e precioso, Artur Jorge resolveu improvisar. Obrigou todos os jogadores do FC Porto a verem, às escondidas, o treino dos soviéticos nas Antas.

«Acho que o Artur Jorge queria meter-nos na cabeça que ia ser difícil. Tínhamos de estar no máximo, não podíamos facilitar, acho que era essa a intenção dele», considera Paulo Futre.

«Não era normal assistirmos aos treinos dos adversários. O Artur Jorge disse-nos para lá irmos. Não percebemos bem a razão, mas depois entendemos. Éramos uma equipa experiente, uma equipa de desafios. E o Artur Jorge, sabendo que nós não estávamos conhecedores das capacidades daquela equipa, fez-nos ter consciência do que tínhamos pela frente. Ficámos deslumbrados com aqueles jogadores.»

O FC Porto venceu 2-1 nas Antas. Um quadro nada confortável antes da visita de doidos à distante URSS.

Aos 15 minutos, o porém, os portistas já tinham marcado dois golos. E sossegaram. «Nessa altura percebi que era muito difícil sermos eliminados. Quando fechávamos a defesa éramos muito humildes. Dizíamos: ‘vamos trancar isto’. E acabou», conta André.

Jaime Magalhães foi titular e, a sorrir, confessa que o árbitro não complicou. «Quando estávamos a ganhar 0-1 houve um lance dentro da nossa área. Marcante. Um jogador do Dínamo de Kiev ia fazer golo e eu dei-lhe um pequeno toque na perna. Tinha de ser penálti, apesar de não ter dado muito nas vistas. O árbitro não viu, seria o 1-1 para eles.»

Logo a seguir surgiu o segundo golo do FC Porto. Autor? O ‘bi-bota’ Fernando Gomes. «O primeiro golo do Celso foi um livre fora da área. Executou um remate forte, a bola tabelou na barreira e entrou na baliza. E eu marquei num canto batido pelo Madjer. Eu costumava ir ao primeiro poste, mas a intuição foi ir ao segundo. A bola apareceu lá e eu apareci também e cabeceei. Pareceu fácil, mas a intuição é que decidiu aquele remate.»

O Dínamo reduziu por Mikhailichenko, um dos mais importantes médios da seleção da URSS, mas o FC Porto aguentou até ao final. Todos felizes, em euforia, os dragões celebraram a chegada à final. E Paulo Futre o adiamento da tropa.

«O jogo da segunda mão era a 22 de abril e eu ia para a tropa a 1 de maio. Já andava desde janeiro a ter pesadelos com a tropa, ia para Castelo Branco e tinha o cabelo comprido. Antes da primeira mão, o presidente vem ter comigo e diz-me que teve uma reunião com alguém do Ministério da Defesa: ‘Se formos à final, só vais para a tropa em setembro’. Abracei-o e lembro-me que depois, em Kiev, estava tudo a festejar por irmos à final e eu dizia: ‘e eu não vou já para a tropa!’»

1ª mão - 8 de abril de 1987 (2-1, V)
Estádio das Antas, Porto
Árbitro: Jan Keizer (Holanda)

FC PORTO: Mlynarczyk; João Pinto, Lima Pereira, Celso e Eduardo Luís; Jaime Magalhães (Madjer, 83), André, Sousa (Juary, 46) e Vermelhinho; Fernando Gomes e Paulo Futre.

Golos: Futre (49), André (56, g.p.) e Yakovenko (78)

2ª mão - 22 de abril de 1987 (1-2, V)
Estádio da República, em Kiev
Árbitro: Ronald Bridges (País de Gales)

FC PORTO: Mlynarczyk; João Pinto, Lima Pereira, Celso e Eduardo Luís; Jaime Magalhães, André, Quim e Paulo Futre (Juary, 85); Madjer (Frasco, 75) e Fernando Gomes.

Golos: Celso (4), Gomes (11) e Mikhailichenko (14)

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