Dia 1: Belém já é de Marcelo, ele não é de ninguém - TVI

Dia 1: Belém já é de Marcelo, ele não é de ninguém

O primeiro dia de uma nova vida para ambos: entra Marcelo, sai Cavaco. Novo Presidente da República chegou de forma inesperada à Assembleia da República num dia recheado de 'à partes' e coincidências

Pára o trânsito que Marcelo... vem a pé. A quebra de protocolo logo a marcar o primeiro dia em que o novo Presidente foi oficialmente empossado. Prático, preferiu dormir na antiga casa dos pais, perto de São Bento, e não em Cascais. Estava, por isso, a um passo do primeiro dia do resto da sua vida como chefe de Estado. O sol a espreitar várias vezes,   chuva miudinha insistente. Ele, sozinho. Sempre sozinho rumo a Belém, a remar como quer. Um senão: agora não se livra dos guarda-costas. Ossos do ofício.

Marcelo dispensou a azáfama da passadeira vermelha da entrada principal da AR que já ia em grande sentido há mais de uma hora. As forças de segurança e a guarda de honra lá estavam desde antes das 8:00 para a aparatosa chegada dos carros topo de gama. Escolta policial, sirenes, música. Cerca de 230 elementos dos três ramos das Forças Armadas. Cem funcionários da Assembleia mobilizados. Mais uma data de polícias e GNR. Poucos curiosos na rua de trânsito condicionado.

Um homem com sotaque do português do Brasil pergunta se sei dizer-lhe o que se passa. Outro, varredor do lixo, encosta a vassoura e discute em que carro virá Marcelo. Que não viria. É do Bloco de Esquerda, mas gosta do novo Presidente. Já Glória Teixeira, vizinha da Assembleia e mulher de língua afiada, prefere Cavaco, "um homem muito charmoso". E ele lá passa de carro. Acena e tudo. Sai um piropo:

E Marcelo? Agora é a vez de Marcelo. "Não tem mulher? Pode ser que se apaixone por ti", atira a mesma Graça para outra popular. É realmente a primeira vez que um Presidente não tem primeira-dama. Mas isso não quer dizer que ele não tenha mulher. E tem, elas é que não sabem: Rita não deu o ar da sua graça nesta cerimónia.

Nem ela nem figuras como Mário Soares, que tem feito cada vez menos aparições públicas. Ou Maria de Belém.

Marcelo não tinha, de resto, uma evocação aos seus adversários presidenciais no discurso, mas acrescentou-a. O cumprimento a Tino de Rans foi demorado; ele que à chegada falou com a TVI24 no tom que lhe caracteriza, hoje com uma gravata a rigor e irreverente.

 

Discursos com remendos

Lá dentro, antes das primeiras palavras como Presidente oficial,  Marcelo estava com os dedos enlaçados, olhava para baixo, presume-se que a rever o discurso. 

Se houve acrescentos, houve. Mas também supressões. Nas palavras que dirigiu a Cavaco tinha a mais um "é certo" que não disse. "A vossa Excelência uma palavra de gratidão pelo empenho que sempre colocou na defesa do interesse nacional  - da ótica que se lhe afigurava correta, é certo". 

Contudo, Marcelo não se baralha. Improvisa. Quando, depois do juramento e do efusivo aperto de mão - um quase abraço - a Cavaco, arrancou-lhe o primeiro sorriso. Trocaram de lugar como manda o protocolo. E aí, quem ficou baralhado foi o Presidente da Assembleia da República. É que Ferro Rodrigues falou de Marcelo, olhando para Cavaco. 

Ora, no que toca a direcionar olhares, o novo chefe de Estado é perito. Talvez pelos longos anos de professor e certamente muito pela experiência televisiva. Sempre que citou alguém, Marcelo procurou essa pessoa na assistência: o Rei de Espanha, o Presidente de Moçambique, o Presidente da Comissão Europeia, três exemplos para citar três dos principais convidados. 

Os aplausos marcaram por várias vezes o seu discurso. Das bancadas parlamentares, três ficaram em silêncio

PS e os partidos à sua esquerda estão a remar para o mesmo lado com os acordos políticos e Ferro Rodrigues frisou a necessidade de isso acontecer em Portugal porque "é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa". Marcelo repetiu o mesmo depois, avisando logo que não será "nem a favor nem contra ninguém".

Para além do hino nacional (que provavelmente há anos não se ouvia tanto num só dia), também a música de Rui Veloso pôde ter ficado no ouvido de quem assistiu à cerimónia. Do Presidente, o maior refrão talvez tenha sido a Constituição da República, para "cumprir". 

Contas às coincidências

Os cumprimentos que se seguiram vieram carregados de simbolismo. Um olhar mais atento repararia no número de bandeiras atrás de Marcelo. 10: uma por cada ano dos dois mandatos? Ele ficou-se pelo singular no discurso com... 10 páginas. Coincidência ou não, eis que ainda há outro pormenor: o quadro que serviu de fundo aos cumprimentos, com uma imagem marítima, tema que deu azo a metáforas nos discursos de Ferro e de Marcelo.

A fila ia longa para cumprimentar o novo chefe de Estado, ele sempre muito sorridente e com as suas expressões características. "Ohhhhh", "Ó minha querida", acompanhadas daquele som repenicado dos beijinhos às senhoras.

Com quem veio de Celorico, recordações dos tempos de miúdo, abraços efusivos, incluindo a Passos Coelho, muito bem disposto.

Já quase no fim, Marcelo finalizou os abraços a piscar bastante os olhos, acusando emoção. Afinal, eram os seus filhos que o abraçavam pela primeira vez como Presidente empossado.

Que dali saiu depois das honras militares já não a pé, mas no Mercedes cinzento da Presidência:  matrícula POR de Portugal, com o escudo a fazer de vogal. Seguiu viagem com Guarda-costas e 13 motas da GNR a fazer escolta. 

No caminho para o segundo ponto da longa agenda do dia, o Mosteiro dos Jerónimos, as sirenes abriam caminho a ultrapassagens. Nesse entretanto, o nosso taxista comentava o "espetáculo" que foi o discurso do Presidente, sobretudo pelo "papel internacional de Portugal" e pelo "apaziguamento político". 

Belém a sós, nas ruas as feridas

Chegado já tão perto do Palácio, desta vez as honras militares nos Jerónimos incluíram cavalos. Ao cheiro da chuva que caía agora com maior intensidade, juntou-se o odor dos animais que não pedem licença para ir à casa de banho. Nada que tivesse afugentado as dezenas de pessoas e turistas curiosos que assistiam à parada. Ali e à porta do Palácio de Belém, onde decorreu o almoço com três dezenas de personalidades.

Contrastando no estilo com Cavaco, Marcelo subiu sozinho. Há dez anos, na chegada a Belém, o seu antecessor ia ladeado pela família.

Praticamente três horas depois, as primeiras palavras aos jornalistas, fugazes. 

Próxima paragem: Mesquita Central de Lisboa e, novamente, um marco diferente desta tomada de posse. Marcelo reuniu 18 confissões religiosas, numa cerimónia breve, mas concorrida.

De repente, à saída, a voz de  um homem repetindo  "Não se esqueça, senhor Presidente, não se esqueça". 

É Carlos Coelho, 77 anos, viúvo, não sabe ler nem escrever. Apresentou-se assim, a chorar, depois da súplica que fez ao PR. A reforma miserável, o complemento solidário para idosos que perdeu com a austeridade, o ter de ajudar a filha e os netos denunciaram um homem assumidamente desesperado. 

Não hoje, certamente, dia de agenda preenchida até de noite, com sete mini concertos, nos Paços do Concelho, onde Marcelo compareceu com a sua boina habitual. O hino outra vez, agora pela voz de Mariza. A imprevista queda de Anselmo Ralph nas escadas a subir para o balco, de frente para o Presidente. Passou e   o PR fartou-se de cantarolar. 

Antes, no Palácio da Ajuda, tudo controlado no formalismo que a cerimónia vedada aos jornalistas impõe. Um entra e sai. E muito frio. Cavaco Silva despede-se com as insígnias ao peito. Fecha um capítulo.

Marcelo, por essa altura, tinha desaparecido das objetivas das câmaras, durante mais de meia hora. Imprevisível, já os jornalistas se questionavam onde andaria, se já teria ido embora. Desta vez, acabou no entanto por sair pela porta prevista. E com a certeza de que este primeiro dia do resto da sua nova vida correu "exatamente como queria". 

"Vamos lá ver se é possível", diz. Tem agora cinco anos para medir a força dos ventos contrários e mesmo assim segurar as velas do barco. Se for sozinho, que seja. Está habituado a remar. Agora, é ao leme de Belém

 

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