«Os que estão a chegar darão um contributo importante ao desporto» - TVI

«Os que estão a chegar darão um contributo importante ao desporto»

Entrevista ao sociólogo Detlev Claussen ,a pretexto de Bela Guttmann, sobre a relação entre futebol e as crises de refugiados

Sociólogo, jornalista e professor universitário, o alemão Detlev Claussen é autor de uma biografia muito interessante sobre Béla Guttmann, traduzida recentemente para português ( edições Paquiderme, 2015).



Claussen, cuja área de estudos se estabeleceu em redor de nacionalismos, xenofobia e migrações, usou o percurso de vida do técnico que levou o Benfica à conquista de duas Taças dos Campeões como um resumo da história do futebol no século XX. Em particular, pela forma como a migração daquilo a que chama football brains ajudou a modificar e a criar uma nova cultura futebolística nos países de chegada. A edição portuguesa do livro e um contexto político e social em que as migrações e a crise dos refugiados voltam a ser tema chave para a Europa foram pretexto para esta entrevista ao Maisfutebol, onde futebol, política, passado e presente estão em permanente cruzamento.



O seu livro vinca a ideia de que o trabalho de Béla Guttmann partia da noção das lutas de classe e de poder por detrás das estruturas do futebol. Nesse sentido ele foi um pioneiro na definição de papéis dos treinadores modernos?
Sim, Guttmann foi um pioneiro. Mas a economia em redor do futebol era muito diferente há 60 anos. Atualmente um manager tem comprar e vender jogadores, e isso não era algo que Guttmann fizesse. Mas ele, como técnico, tinha uma capacidade única para lidar com jogadores vindos das margens da sociedade. E como ele próprio tinha sido uma estrela, quando jogava, não temia as vedetas e era capaz de convencê-las com os seus conhecimentos. Gostava de comunicar através da imprensa, e aprendeu a usar os media a seu favor. Por contraste com Wenger ou Ferguson, preferia deixar um clube ao fim de dois ou três anos, possivelmente para evitar que as suas fórmulas se esgotassem. Algo que ainda parece válido na atualidade: o trabalho de Pep Guardiola no Barcelona ou no Bayern parece apontar nesse sentido.



Guttmann foi um refugiado. No seu tempo, em especial depois da II Guerra Mundial, o futebol funcionou como ponte os blocos de Oeste e Leste. O futebol pode desempenhar algum papel na atual situação política, em particular na crise dos refugiados?
O futebol tem o potencial de uma língua universal, onde cabem tanto o desportivismo como a rivalidade. Hoje mesmo há muitos jovens a caminho da Europa e muitos mais nos campos de alojamento. O futebol oferece uma possibilidade de jogar em conjunto, de fazer amigos e dar novos princípios de organização à vida. E o futebol feminino também pode ser importante para combater o isolamento. Nos anos 90, depois das Guerras nos Balcãs, era frequente ver homens e mulheres, vindos da ex-Jugoslávia – mesmo de comunidades conservadoras – procurando e encontrando o seu lugar nas equipas alemãs.



Como avalia a reação institucional do futebol à crise dos refugiados – por exemplo a campanha de boas-vindas dos clubes alemães, ou a doação de um euro por bilhete em todos os jogos nas provas da UEFA? Acredita tratar-se de medidas efetivas e genuínas?
Sou um pouco cético em relação a esse tipo de campanhas orientadas para o mercado. Mas, dito isto, contribuir para o espírito de boas-vindas aos refugiados é melhor do que promover a xenofobia. Mais importante do que essas ações seria dar às populações refugiadas condições para que possam treinar e jogar.



Acredita que o afluxo de refugiados e migrantes à Europa vai ter efeitos significativos no futebol das próximas décadas?
Oh, sim! Especialmente na Alemanha, onde nas últimas décadas já tivemos uma forte experiência de aceitação da diversidade. A nossa seleção nacional é multicolor e já toda a gente aceita que nem todos precisam de cantar o hino da mesma forma antes dos jogos. Por isso acredito que as pessoas que agora estão a chegar vão dar um contributo importante para o desporto em geral, e o futebol em particular. O futebol é uma forma de demonstrar o que é possível conseguir-se numa sociedade: podemos jogar e trabalhar para melhorar o que existe.



Concorda que o futebol foi, pelo menos ao longo do século XX, uma forma de expressão de identidades nacionais?

Hesito muito em usar o conceito de identidade. Até ao fim do século XX era efetivamente possível identificar no futebol estilos nacionais diferentes – mas digo isto de forma prudente, cum grano salis. Todas as seleções de sucesso tiveram processos semelhantes de modernização – por exemplo, enquanto o Brasil trabalhou a disciplina, a Alemanha tornou-se mais tecnicista. Por outro lado, esse estilo refletia o que era praticado nas principais Ligas, mas aí também havia diferenças regionais. Nos últimos 20 anos, sob pressão de interesses económicos, passaram a identificar-se três grandes arenas de futebol de sucesso: a Champions League, a Premier League e as competições internacionais de seleções.

A Champions é a referência da globalização?
No início dos anos 70 o Bayern era um clube local da Baviera. 20 anos mais tarde era um clube alemão reforçado por dois ou três estrangeiros. Agora tornou-se um All Star internacional, com grande influência espanhola/brasileira. Essa politica já foi seguida no início do século XXI com a estratégia do Real «Galáctico», apostado em contratar os jogadores mais caros do mundo. E embora o Barcelona, por um lado, mantenha a ideologia do Catalanismo, na prática funciona como uma seleção dos melhores espanhóis e sul-americanos, juntando-lhes alguns dos melhores europeus, da França à Turquia. A longo prazo, só os melhores clubes da Premier League podem competir com estes três – à exceção do PSG e da Juventus. Mas isto pode mudar se novos investidores, em especial os que vêm da Ásia, descobrirem o valor de outros clubes tradicionais como Inter, Atlético Madrid ou Valência.

E em Inglaterra, o processo é semelhante?
A Premier League é um caso distinto porque tem uma economia própria e pode comprar os melhores em todo o mundo. Os clubes estão orientados para um mercado mais global – o Man. United têm mais sócios asiáticos do que ingleses, por exemplo. O estilo é muito virado para o espectáculo e os clubes têm tantos fundos disponíveis que podem contratar de acordo com o conceito dos seus treinadores. Assim, mais do que uma identidade de clube ou região, cria-se um estilo Mourinho, um estilo Wenger, um estilo Ferguson.

Depois há os Mundiais e Europeus...
Os campeonatos de seleções são montras para os jogadores e os diferentes estilos nacionais podem ser apreciados nessas ocasiões. A qualidade das federações também é avaliada – devido a má organização, é muito comum que seleções africanas, por exemplo, tenham desempenho abaixo do esperado nos Mundiais. Outro exemplo de subrendimento: os jovens ingleses são bons, mas poucos têm oportunidade de jogar na Premier League. Além disso, depois de uma temporada de speed football os jogadores ingleses estão demasiado exaustos – e não têm maturidade tática suficiente para defrontarem equipas mais sofisticadas. Tudo isso influencia o desempenho das seleções inglesas.

O estilo das seleções muda menos que o dos clubes?
Depois do desastre do Euro 2004, em Portugal, a Alemanha mudou o seu estilo de futebol de forma dramática, e a equipa já não pratica o tradicional «estilo alemão». Claro que uma boa relação entre o estilo das seleções e a forma de jogar das melhores equipas do seu campeonato é importante – veja-se o caso da Espanha nos últimos dez anos. Já federações de países mais pequenos, como Holanda ou Portugal, têm alguns jogadores fantásticos, a jogar em equipas de topo, mas normalmente não conseguem transformar isso numa seleção vitoriosa. Terá algo a ver com o estrelato das principais figuras? A França é um bom caso de estudo a esse nível, com grandes jogadores um pouco por toda a Europa e uma seleção que habitualmente dececiona. Seja como for, ter alguns jogadores de topo nas melhores Ligas internacionais e uma base sólida, com uma Liga doméstica competitiva, faz uma boa mistura para ganhar títulos.
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