Carlos Vinícius: o goleador que aqueceu chuteiras no micro-ondas - TVI

Carlos Vinícius: o goleador que aqueceu chuteiras no micro-ondas

Benfica-Paços de Ferreira

O Real Massamá apareceu na vida do brasileiro quando estava prestes a deixar de jogar futebol por não conseguir tirar sustento para a família. Viagem às origens profissionais e à ascensão meteórica do avançado do Benfica

Dez ou 15 minutos bastaram para despertar a atenção de Luís Neves, dirigente do Real Massamá que até tinha ido ao Brasil para observar outro jogador naquele torneio.

Carlos Vinícius ainda nem era sequer um nove puro, mas deixou água na boca. No jogo seguinte subiu uns metros no terreno, esteve mais tempo em campo e convenceu o vice-presidente do clube da Linha de Sintra a trazê-lo para Portugal.

O agora homem-golo do Benfica, contratado no verão passado ao Nápoles por 17 milhões de euros, estava nessa altura prestes a deixar o futebol, pressionado por não conseguir ganhar o suficiente para sustentar a família e, sobretudo, o filho recém-nascido.

«Já cá, ele disse-me que tinha falado com a mulher e tinha tudo preparado para deixar de jogar e fazer-se à vida como o comum dos mortais. Nesse jogo em que está pouco tempo em campo, ele já está a pensar em pegar nas coisas no fim e ir embora. Fazer formação no Santos, no Palmeiras e depois vir por ali abaixo até ao Grêmio Anápolis e quase não jogar não era fácil para ele», recorda ao Maisfutebol Bruno Carvalho, antigo treinador adjunto do Real Massamá e então responsável pelo treino dos avançados.

Vinícius fez as malas, despediu-se da família e aterrou em Portugal em julho de 2017 para, aos 22 anos, dar uma nova, talvez derradeira, oportunidade ao futebol numa equipa que estava prestes a jogar pela primeira vez na II Liga portuguesa.

Massamá: a porta de entrada no futebol profissional em 2017/18, época que terminou com 20 golos, 19 deles na II Liga. Lá atrás, o prédio onde viveu nos primeiros meses em Portugal

Filipe Martins, obreiro da subida e técnico que orientou o Real até janeiro de 2018, fala num jogador que atravessou o Atlântico com uma única missão: singrar no futebol para melhorar a vida da família. E lembra o impacto inicial causado por ele. «Logo na pré-época, num jogo-treino com o Estoril, ele tem dois ou três pormenores que deixaram toda a gente deliciada. Depois, marca três golos na primeira jornada do campeonato, o que não é normal. E da forma como foi, porque eu lembro-me perfeitamente: ele desbastou completamente a defesa do Leixões naquele dia.»

Carlos Vinícius tinha, ainda assim, aspetos por aprimorar. «Sentia algumas dificuldades em jogar entrelinhas e, principalmente, na receção. Mas ele tinha uma vontade enorme de crescer como jogador. Não ia para o treino para passar tempo: ia para evoluir, ficava insatisfeito quando as coisas corriam mal e sentia-se nele uma sede enorme de ser um jogador de outro patamar», conta Filipe Martins.

As rotinas, a religião e a ansiedade quando o Nápoles apareceu

Enquanto não dava o salto, Vinícius mantinha rotinas simples. Nos primeiros meses em Portugal, viveu num apartamento quase colado ao estádio, juntamente com os compatriotas Gustavo Cazonatti e Tom. «A vida dele era casa-treino, treino-casa. É um gajo que não gosta de noite, que não gosta de bebidas alcoólicas, que não se perde e que vai à igreja. Estava sempre a convidar-me para ir com ele», diz-nos a rir Daniel Canário, delegado do futebol sénior do Real.

Ao fim de três meses em Portugal, com a chegada da mulher e do filho ao país, Vinícius mudou-se para um outro apartamento, perto do shopping de Massamá. Numas vezes apanhava boleia e noutras ia de comboio para os treinos. «Parece que ainda estou a vê-lo a subir a zona da Feira de Monte Abraão com a malinha debaixo do braço», recorda Filipe Martins.

Por essa altura, marcava golos atrás de golos e era um jogador com a confiança revigorada dentro das quatro linhas, ao ponto de já falar sobre a seleção brasileira. «Nós íamos treinar ao Jamor e na carrinha ele ia ao meu lado a falar-me nisso. Ninguém pode dizer que ele vai chegar lá e fazer a diferença, mas eu acreditava que ele podia atingir o patamar em que está agora», diz Bruno Carvalho.

A meio da temporada no Real, Carlos Vinícius e o clube da Linha de Sintra pareciam destinados a caminhos opostos. Enquanto a equipa se afundava nos últimos lugares do campeonato, de onde não saiu, ele começava a ser associado a outros clubes. FC Porto e Benfica observaram-no e há quem diga que o cenário de uma transferência para as águias chegou a ser real naquele período.

Em janeiro, o Nápoles reservou-o para o final da época e afastou possíveis adversários da corrida. «Foi a única vez em que o senti um bocadinho fora do seu estado normal. Houve ali um período de cerca de um mês e meio em que ele esteve muito ansioso, até porque era estranho para ele poder ver a sua vida mudar completamente de um dia para o outro», conta Filipe Martins.

Bruno Carvalho corrobora as palavras e dá como exemplo uma tarde em que esteve pouco inspirado.

«Nessa altura não se falava só do Nápoles. Falava-se também de outros clubes, de Portugal e do estrangeiro. E há um jogo em que ele foi zero. Quando eu cheguei a casa, cortei os lances dele e comecei a matutar nas razões. No início da semana, tivemos um jogo-treino e ele aí já voltou ao normal. Falei com ele: era muita gente a ligar-lhe com propostas, os níveis de ansiedade elevados, a ânsia de se mostrar e ao mesmo tempo o receio de se lesionar.»

Vinícius ganhava pouco mais de mil euros mensais, com casa e alimentação incluídos. Em pouco mais de seis meses, a ideia de deixar o futebol dava lugar àquela que poderia vir a ser a oportunidade de uma carreira.

Com a transferência para Itália já fechada, o avançado voltou a estabilizar e terminou a II Liga com 19 golos, registo que lhe permitiu ser o segundo melhor marcador da prova, apenas atrás de Ricardo Gomes (Nacional), que só o ultrapassou nas últimas semanas de competição.

Café a preços proibitivos no Mónaco e um carro de 8 mil euros

A mudança para o Nápoles envolveu o pagamento de uma quantia de alguns milhões de euros (falou-se de quatro) e causou perplexidade em Portugal e também em Itália. «Uma vez atendi um jornalista italiano, que foi algo sarcástico comigo e encarava-o como parte integrante de um outro negócio qualquer, pela ligação ao Jorge Mendes. Li coisas que me deixaram um pouco revoltado e até disse a esse jornalista que se ele tivesse oportunidades, iria surpreender muita gente», recorda Filipe Martins.

Nunca teve. Uma semana antes do fecho do mercado de verão em 2018, e depois de cumprir a pré-época no Nápoles sob o comando de Carlo Ancelotti, Vinícius foi emprestado ao Rio Ave, que aceitou as condições impostas pelos italianos: empréstimo até final da época, mas com possibilidade de resgate em janeiro. Após 14 golos em 20 jogos e ficha de marcadores preenchida contra os três grandes, rumou ao Mónaco, onde fez a última metade da época passada.

Mesmo sem os constrangimentos financeiros de outros tempos, lamentava o elevado custo de vida no excêntrico principado e o preço de um simples café: «Vou deixar de beber café», desabafava.

«Eu estou sempre a dizer-lhe: ‘O dinheiro não é de quem o ganha; é de quem o poupa’», diz Bruno Carvalho, que confessa que Vinícius mantém o mesmo olhar sobre a vida que nos tempos no Real. E comprova-o com um episódio caricato já depois de ter chegado ao Benfica.

Com Pizzi, o único jogador que tem à frente na lista dos melhores marcadores do campeonato

«Ele pediu-me para o ajudar a arranjar um carro para ele ir para os treinos quando tivesse carta. Eu falei com um amigo e mandei-lhe alguns para ver. O que é que ele me disse? Que eu era doido por lhe mandar carros de 30 e tal, 40 mil euros. Perguntei-lhe quanto é que ele queria, afinal, dar por um carro. Respondeu-me 8 mil euros [risos]. Depois arranjei-lhe um de 16 e ele continuava a dizer 8 mil. Eu respondi-lhe que assim ele sujeitava-se a ficar no meio da estrada. Imagine: um jogador do Benfica ficar parado no meio da estrada…»

Chuteiras derretidas no micro-ondas

Diogo Valente, técnico de equipamentos do Real, é ainda hoje uma das pessoas mais próximas de Carlos Vinícius. Passaram o Natal de 2017 juntos e o avançado até lhe dedicou o golo que apontou na Luz aos encarnados pelo Rio Ave, num jogo para a Taça da Liga na época passada.

«O que mudou nele? É capaz de estar mais maduro, pela experiência noutros países e noutras culturas, e por ter sido novamente pai. Mas ele continua a mesma pessoa, sempre tranquila e pacata. Ainda hoje vai a Massamá ver jogos quando pode, está sempre disponível para tirar fotos com as crianças e continua a dizer a mesma coisa quando o abordam para isso: ‘Só se forem duas’», conta.

Também ele, admite, tem um punhado de histórias divertidas com Carlos Vinícius. «Uma vez ele queixou-se que as botas estavam muito rijas e foi perguntar ao nosso fisioterapeuta o que é que podia fazer para que elas ficasses moles. Ele, na brincadeira, disse-lhe para metê-las no micro-ondas durante não sei quanto tempo. Aquilo era plástico e estragou-as todas [risos]. Ficou chateadíssimo até porque na altura não tinha mais botas, mas depois arranjaram-lhe outras.»

Da esquerda para a direita: Diogo Valente, Daniel Canário e Bruno Carvalho, que fala da timidez de Vinícius. «Se reparar, quando ele é substituído raramente olha para as bancadas. Tem vergonha, mas num dos últimos jogos mandou-me mensagem a dizer que já conseguiu levantar a cabeça.»

Puro, tímido e low profile. É assim que o definem todas as pessoas que aceitaram falar com o Maisfutebol para esta reportagem.

Mas no campo, onde no fundo mais importa, Carlos Vinícius não mostra sinais de timidez. Soma 15 golos em 22 jogos, mas só desde novembro tem sido aposta regular de Bruno Lage no onze dos encarnados. Filipe Martins não se mostra nem um pouco surpreendido com os registos apresentados. «Quando ele chegou ao Benfica, eu disse que se tivesse os mesmos minutos do Seferovic, ia ser o melhor marcador do campeonato. Se continuar assim, não tenho dúvidas de que isso vai acontecer.»

À entrada para a 16.ª jornada soma dez na Liga, menos um do que o companheiro de equipa Pizzi, que lidera a lista dos melhores goleadores, e dos 15 golos apontados em 2019/20 até agora, 12 foram com o pé esquerdo, três com o pé direito e nenhum de cabeça.

Está encontrado um defeito claro no futebol de Vinícius? «É verdade que ele não gosta de cabecear, e eu até estou sempre a brincar com ele por isso, mas não estou de acordo quando dizem que ele não sabe jogar de cabeça. Uma pessoa que não sabe jogar de cabeça não tem esta execução técnica», contrapõe Bruno Carvalho enquanto mostra o vídeo de um golo nos tempos do Real Massamá.

Dois anos e meio após ter estado com um pé fora do mundo do futebol, Carlos Vinícius está agora bem dentro dele. De opção duvidosa para o ataque do Benfica, ultrapassou concorrentes de peso e é agora a principal referência ofensiva das águias. «Ele foi criticado pelos 17 milhões que custou, mas hoje se calhar já dizem que foi barato», remata Bruno Carvalho.

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