João Félix, a história do miúdo que cresceu muito depressa - TVI

João Félix, a história do miúdo que cresceu muito depressa

Sabia que os pais faziam todas as semanas mais de mil quilómetros para que o miúdo jogasse no FC Porto? E que o Benfica já o tinha tentado contratar aos oito anos? Viagem pela vida da próxima grande estrela, que um dia não aguentou as saudades e pediu à mãe que o fosse buscar.

Carla Félix ainda se emociona quando recorda aquela noite em que o filho lhe ligou ao final da tarde. Uma lágrima cai e até tem de fazer uma pausa no discurso para se recompor.

Há coisas que magoam uma mãe mais do que ferros quentes.

«Houve uma situação mais difícil, em que tive de o ir buscar a meio da semana. Ele ligou-me a uma quarta-feira e eu fui buscá-lo», diz com a voz embargada.

«Dormiu em casa e parece que ganhou uma energia nova. No dia seguinte quis voltar.»

Carla Félix fala das dificuldades que significou a carreira do filho João Félix. Um miúdo que saiu muito cedo de casa para correr atrás do sonho de ser jogador de futebol. Hoje começa a afirmar-se no plantel principal do Benfica, já fez dois golos e valeu quatro pontos. Tudo isto aos 18 anos.

«Desde criança, quando lhe perguntávamos o que queria ser quando fosse grande, ele respondia sempre jogador. Houve uma altura em que nos preocupou, porque só sabia que queria ser jogador. Não havia mais nada que gostasse de ser, caso esse plano falhasse», acrescenta.

«Nós costumámos dizer que o João começou primeiro a jogar à bola e só depois a andar. Desde muito bebé que anda sempre com uma bola atrás dele. É um vício. O João é viciado na bola. Mesmo em bebé só queria bolas. Podia ter um ou outro jogo para se entreter, mas o brinquedo que queria receber sempre era uma bola. A nossa casa teve de ficar desde muito cedo preparada para isso. Os bibelots tiveram que ser todos retirados, não havia nada que se pudesse partir à vista, porque tanto ele como o irmão passavam o tempo a jogar futebol dentro de casa.»

Filho de pais professores, João Félix nasceu em Viseu numa família da classe média alta. O pai, além de professor, foi jogador de futebol, preparador físico de vários clubes e treinador de infantis.

Foi ao progenitor que o miúdo que promete ser a próxima grande sensação do futebol português foi buscar as primeiras referências futebolísticas. Numa altura em que ainda nem sequer falava.

«O pai era preparador físico do Tondela e treinava as escolinhas dos Pestinhas, também em Tondela. O João quando tinha uns cinco anos começou a acompanhar o pai, só para ver. Depois também quis jogar. Antes já tinha andado aqui em Viseu, mas não era bem futebol, era um centro de multiatividades, onde faziam umas brincadeiras e tal. A sério começou nos Pestinhas», conta.

«Esteve um ano nos Pestinhas e depois foi para o FC Porto, quando tinha oito anos. Já estava a ser observado e foi chamado a um treino de captações. Propuseram-lhe ir treinar durante a semana e jogar ao fim de semana. Durante cinco anos, até fazer doze, ficava em Viseu e jogava no FC Porto.»

João Félix tinha treinos, inicialmente, à terça, quarta e quinta, jogando ao domingo. Mais tarde tinha treinos também à sexta-feira. O único dia em que a família não precisava de fazer os 260 quilómetros de ida e vinda entre Porto e Viseu era, portanto, à segunda-feira.

«Conforme o nosso horário ia o pai ou a mãe. Um de nós saía mais cedo e preparava as coisas para o poder levar. Era muito desgastante. Ele tinha o dia todo de aulas. Quando chegávamos a casa já tinha os trabalhos de casa feitos, arrancávamos para o Porto por volta das 17 horas, chegávamos pelas 18.30, o treino era às 19 horas, acabava por volta das 21, tomar banho, sair e voltávamos a casa depois das 23 horas. Ele chegava e ia direto para a cama. Isto todos os dias», lembra a mãe.

«Nunca desistimos porque ele sentia-se bem. Ir para o FC Porto foi uma oportunidade, era algo que ele queria muito e que não era fácil para um miúdo de longe, como é Viseu. Portanto nós fazíamos os possíveis e impossíveis para ele estar bem. Se ele estivesse bem, o resto resolvia-se.»

Ora João Félix estava bem. Jogar num grande clube tinha sido tudo o que sempre sonhara.

«Quando apareceu o FC Porto ele teve outras propostas, nomeadamente do Benfica, mas por ser mais perto optámos pelo FC Porto. Ficava mais perto de casa e dava para gerir de outra forma.»

Até que aos 12 anos, e com idade para ficar sob alçada do clube, o miúdo saiu de casa. Foi viver para o Casa do Dragão, ali pertinho das Antas, com mais uma ou duas dezenas de miúdos. Nessa altura a mãe Carla percebeu que as saudades pesam mais do que o cansaço dos quilómetros.

«Não foi fácil. Ele era muito novo, tinha 12 anos, e passou por algumas dificuldades. Ao fim da tarde e à noite as coisas eram mais complicadas. Ele foi muito bem-recebido, mas não era uma situação simples. Só que a vontade dele foi sempre ficar. Se ele nos dissesse que queria vir embora, nós íamos busca-lo logo naquela hora. Se calhar pensou nisso, mas nunca o disse.»

É nesta altura que Carla Félix se emociona ao lembrar o dia em que o filho lhe disse que precisava de a ver. Ela e o marido meteram-se no carro e foram ao Porto busca-lo. No dia seguinte, porém, depois de uma noite junto do carinho dos pais, João Félix voltou para a Casa do Dragão.

No FC Porto, João Félix encantava pelo talento. Embora pequenino e franzino, era o capitão de uma equipa que tinha, por exemplo, Diogo Dalot, Diogo Queirós e Diogo Costa.

Tiago Moreira, treinador de João Félix na altura, conta que era um miúdo que gostava de desafios exigentes. Como por exemplo quando defrontou o Benfica em Ponte de Lima.

«Eles tinham uma equipa muito forte e nesse ano até tinham ganho ao Real Madrid em Vila Real de Santo António. Nós, que éramos vistos como outsiders, íamos defrontar esse Benfica avassalador. O que aconteceu? Ganhámos 4-2 e o Félix, que era um dos jogadores mais novos, marcou dois golos e foi considerado o melhor jogador do torneio.»

Por isso mesmo, porque se destacava dos companheiros, João Félix foi integrado no projeto PJE (Potencial Jogador de Elite), que elegia os três ou quatro melhores de cada escalão para um tipo de preparação específica, que incluía um treino semanal com o holandês Pepijn Lijnders.

Tudo parecia correr bem na formação de João Félix, até que alguma coisa aconteceu.

«O FC Porto não lhe deu atenção, não apostou nele como devia e isso foi um grande erro. No último ano não teve muitos minutos de jogo e não estava contente no clube, naturalmente. Nenhum jogador gosta de não ter tempo de jogo», conta o antigo colega do Benfica Filipe Soares.

«O Benfica falou com ele e deu-lhe a oportunidade de ir para o Seixal. Ele já estava referenciado no Benfica desde que éramos crianças, pelo menos ouvia o nome dele lá no Seixal desde que me lembro. Por isso quando o vimos lá no Benfica, percebemos logo que ele ia ser uma aposta forte e que ia ser um bom jogador. Foi o melhor que o clube fez. Está à vista de todos.»

A mãe Carla aproveita para sublinhar que há algumas coisas mal contadas na história que se espalhou de João Félix: o filho dela não foi dispensado, foi ele que quis sair.

«O João era muito franzino em relação aos outros, ele desenvolveu-se muito mais tarde. Mas é mentira que tenha sido dispensado. Não foi dispensado. Ninguém o mandou embora. Ele achou tinha que sair. Foi uma decisão dele. Naquele momento ele achou que o melhor para ele era sair. Foi um tiro no escuro. Podia correr melhor ou não. Mas ele sabia que não ia ficar sem clube. Fosse para o Benfica, para o Sporting ou para Viseu, ele teria clube», refere.

«Ele saiu no final da época e iniciou a época seguinte no Benfica. Cumpriu o compromisso que tinha com o FC Porto e no final da temporada quis sair.»

No Benfica foi viver para o Seixal, de onde só saiu recentemente para ter o próprio apartamento, e foi integrado rapidamente como se fosse mais um deles. Sem brincadeiras com o passado.

«Foi recebido de braços abertos, como se fosse um dos nossos. Era um jogador de grande qualidade e que vinha para ajudar. Integrou-se muito bem e notou-se desde o início que ele era diferente. Apresentava sempre coisas diferentes nos treinos», conta Diogo David, outro antigo companheiro.

«Há muitos jogadores que conseguem mostrar coisas diferentes nos treinos, o problema depois está na atitude e na forma como utilizam essa qualidade nos jogos a favor da equipa. O Félix sempre aplicou a enorme qualidade que tinha nos jogos para ajudar o coletivo. Por isso agora está naturalmente a revelar-se o que é, um grande jogador. Ele é muito forte em espaços curtos, tem um arranque fortíssimo, a finta dele é imprevisível, tem muito talento.»

No Seixal, de resto, João Félix deixou de ser o miúdo franzino e frágil para ganhar estatura e se tornar fisicamente mais robusto. Um crescimento que teve a ver com o trabalho que o Benfica fez com ele, mas sobretudo com as características próprias do miúdo.

«Ele nunca fez um trabalho muito forte para ganhar corpo. A partir dos juvenis começou a fazer ginásio, mas isso é normal no trabalho com jovens, é a idade em que começam a trabalhar no ginásio. Mas nunca teve cargas muito pesadas. Era o normal para a idade», conta Carla Félix.

«A questão aqui é que ele deu o salto mais tarde dos que os colegas. Ele era realmente franzino quando os outros já estavam a adquirir corpo e só mais tarde é que ficou como está agora.»

João Félix ganhou corpo, portanto, num instante. O que nos remete para o título: o miúdo cresceu rapidamente e não foi só fisicamente. Antes disso já tinha crescido depressa mentalmente.

«O João sempre foi habituado a ser um menino muito grande. Nunca me preocupei se fazia os trabalhos de casa dele, ele é que preparava as coisas dele, fazia a mala dele, tratava do que precisava de levar para a escola ou para os treinos, mesmo quando eram treinos longe.»

Ora a mudança para Lisboa não foi tão difícil como tinha sido a saída do lar para ir para a Casa do Dragão. Até porque João Félix já tinha 15 anos, já era mais velho, mais experiente.

Os pais, no entanto, não deixaram de o acompanhar como sempre faziam.

«Desde que ele foi para o Seixal que nós vamos todos os fins de semana a Lisboa. Vamos sexta-feira e voltamos segunda-feira de manhã. Os meus sogros já moraram em Almada e então aproveitamos o apartamento deles. Íamos busca-lo sexta-feira, ficava connosco depois treino, passava o sábado connosco, ao domingo íamos levá-lo ao jogo, depois voltávamos para o apartamento e na segunda-feira de manhã deixávamo-lo para ir para as aulas», conta a mãe.

«A verdade é que ele foi muito bem-recebido, tanto pelas pessoas no Centro de Estágios como a nível desportivo, por treinadores, colegas, enfim, foi muito bem acolhido, bem integrado na equipa de juvenis e funcionou tudo bem. Teve essa sorte, de facto.»

Do resto foi o talento de João Félix que tratou. Logo um ano depois, em 2016, assinou contrato profissional, até 2020. Em 2017 renovou e ficou ligado ao clube até 2021.

Pelo meio bateu uma série de recordes. Ainda com 16 anos tornou-se o mais jovem de sempre a jogar na II Liga, com 17 anos tornou-se o mais jovem de sempre a marcar na II Liga e, nessa mesma época, foi também chamado à seleção sub-21: saltou três escalões de seleções nacionais.

O que está a fazer esta temporada já se adivinhava, portanto.

«É um rapaz muito humilde, tem uma personalidade fácil de tratar, gosta de trabalhar, gosta de saber o que está a fazer de errado. Conhece muito bem os momentos certos para brincar e para trabalhar. Gosta muito de jogar o FIFA e dar as suas voltinhas com os amigos. Não é um rapaz de pregar muitas partidas, por exemplo, mas é um bom colega», conta o amigo Filipe Soares.

«O João sempre foi uma criança, e mais tarde um jovem, muito reservado. Não é nada dado a vedetismos. Se puder passar despercebido, para ele melhor. Nós também lhe repetimos que é preciso ter os pés assentes no chão, porque quanto mais alto se sobe maior pode ser o tombo. É preciso trabalhar sempre mais do que no dia anterior», acrescenta Carla Félix.

Carla Félix que é, de resto, uma mãe orgulhosa. Poucas coisas lhe dão tanta alegria como ver o filho festejar um golo, por exemplo.

«Ele não é muito de falar e mais do que qualquer coisa que ele tenha dito, o que me emociona é o gesto dele a celebrar os golos. Quando levanta o dedo e aponta para a bancada, está a apontar para nós: para o sítio onde estou eu, o pai e o irmão», conta.

«Isso significa mais do que tudo. Porque ele sabe que nós estamos lá.»

Como sempre estiveram, aliás. Desde que João Félix tinha apenas meia dúzia de anos e faziam todas as semanas mais de mil quilómetros para o acompanhar.

Passados tantos anos, não há dúvidas que valeu a pena. O futuro não acaba aqui.

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