Será o futebol feminino capaz de ultrapassar o vírus e sair a jogar? - TVI

Será o futebol feminino capaz de ultrapassar o vírus e sair a jogar?

Futebol feminino: Benfica-Valadares Gaia

A pandemia atingiu o futebol feminino português no melhor momento de sempre, mas quais serão as consequências desta situação?

«A situação atual é passível de constituir uma ameaça quase existencial para o futebol feminino, se nenhuma medida for tomada para proteger a sua economia».

Os dados são claros: a Covid-19 mata mais homens do que mulheres. Em Portugal a diferença não é muito grande, é certo, mas um pouco por todo o mundo essa é a realidade que se verifica.

E são vários os estudos que apontam a maior fragilidade masculina para lidar com problemas de saúde, desde de sempre. Nesta pandemia não é diferente e essa tem sido a razão mais vezes repetida quando a questão surge.

Contudo, existe um mundo em que essa tendência parece reverter-se: a do desporto. E do futebol, em particular.

Foi isso que o Maisfutebol foi tentar perceber, tendo como ponto de partida, não só o alerta do sindicato de jogadores profissionais (FIFPro) que abre estas linhas, mas também o facto de, em Portugal, a pandemia ter obrigado a cancelar a época de maior investimento de sempre no feminino, com três equipas profissionais a disputarem a Liga.

Nesse sentido, tentámos obter respostas da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), dos clubes que estavam no topo da Liga aquando da interrupção – Benfica, Sporting e Sp. Braga -, mas também de quem vive realidades bem distintas da das três equipas profissionais da liga feminina.

Entre o reforço da formação… e o da ambição

Das solicitações do nosso jornal, o Sporting preferiu não responder sobre cenários hipotéticos, justificando a opção com incerteza que ainda se vive quanto às decisões relativas à época que foi interrompida, enquanto a FPF se limitou a reforçar ainda estar «a estudar internamente, ponderando todos os fatores.»

Da parte do Sp. Braga, atual campeão nacional, o Maisfutebol falou com Sofia Teles, diretora para o futebol feminino da equipa que seguia no terceiro lugar, a oito pontos de águias e leões.

A responsável arsenalista admite que «esta é uma situação que requer uma adaptação quase diária», mas aponta a formação como o caminho mais seguro para ultrapassar as incertezas que a pandemia deixou no ar.

«Estamos a analisar a situação tendo como primeira preocupação a intenção de ter uma equipa competitiva, mantendo o objetivo de sempre de apostar na nossa formação. Ano após ano temos reforçado essa aposta na formação e será por aí que vamos continuar a caminhar», garante Sofia Teles.

«Esta situação, nova para todos, pode ser uma boa oportunidade para se apostar ainda mais na qualidade da formação, dando espaço a jogadoras mais jovens para crescer, competindo num nível mais elevado», reforça ainda a responsável da equipa campeã nacional.

Sofia Teles, diretora do futebol feminino do Sp. Braga com o troféu de campeãs nacionais

Por outro lado, depois de ter vencido a Supertaça, no início da época, o Benfica liderava agora a Liga – em igualdade pontual com o Sporting – naquela que foi a época de estreia das águias na primeira divisão do futebol feminino.

Numa resposta por escrito, o clube encarnado sublinhou que o objetivo traçado para a época em curso passava pela «conquista de todas as provas nacionais», algo que ainda era possível, uma vez que o Benfica tinha assegurado a passagem à final da Taça da Liga e às meias-finais da Taça de Portugal.

Porém, olhando para aquilo que será o futuro depois do vendaval provocado por esta pandemia, o clube reconhece a necessidade de encontrar a melhor forma de lidar com «algo que é, antes de mais, uma ameaça à humanidade.»

Por isso mesmo, a expectativa das águias não difere no futebol feminino, daquilo que está previsto fazer em todas as frentes, ainda que considere prematuro comentar uma possível descida do orçamento da equipa profissional de futebol feminino.

«É cedo para concluir algo sobre essa matéria. O clube está a analisar, com cuidado e detalhe, se será necessário algum tipo de alteração de orçamento relativamente às equipas que mantém em atividade», refere o clube, antes sublinhar que esse é, de resto, um exercício habitual.

«Ainda que, obviamente sem estar associada a uma questão tão impactante como uma pandemia, esta reflexão é normal e acontece todos os anos no Benfica.»

Em conclusão, as águias deixam uma certeza: a pandemia não vai afetar a ambição encarnada no futebol feminino.

«O objetivo das equipas em que o Benfica investe é e será sempre lutar por conquistas desportivas.»

Quanto vale participar na Liga feminina?

A aposta feita esta época no futebol feminino é facilmente compreensível se atentarmos nos números.

Segundo o Maisfutebol conseguiu apurar, foram 70 as jogadoras profissionais inscritas no principal campeonato da FPF, às quais se juntam cerca de 250 atletas amadoras.

Obviamente que é fácil perceber que a grande maioria das atletas profissionais representam Benfica, Sporting e Sp. Braga, mas foram cinco as equipas que inscreveram pelo menos uma jogadora com contrato profissional.

Tendo este dado em atenção, podemos concluir que o maior investimento registado pela entrada das equipas profissionais ‘obrigou’ as restantes a reagir, também com maiores investimentos, de forma a poderem continuar a ser competitivas.

E isso mesmo é-nos confirmado por Paula Pinho, treinadora do Clube Albergaria, que este ano teve duas jogadoras profissionais, algo que aconteceu pela primeira vez na história do clube… e acabou por durar pouco, uma vez que as atletas tinham sido inscritas em janeiro.

«A evolução natural que o futebol feminino tem tido nos últimos anos obriga os clubes a mexerem-se. Se queremos manter-nos na elite do futebol nacional, temos de apostar mais forte. Temos de nos reinventar porque a realidade competitiva mudou», reconhece, ainda que reforce que o foco do clube continua a ser a aposta em formar jogadoras.

«A nossa aposta sempre foi a formação, mas temos de perceber que talvez não seja suficiente para aquilo que a Liga nos exige neste momento. A realidade atual em Portugal obriga os clubes a aumentarem os orçamentos», continua.

É importante referir que política seguida pelo clube do distrito de Aveiro – e também por muitas outras equipas – é recompensada pela FPF através de prémios de jogo.

Se tivermos em conta que o prémio por participação na Liga é de 9.000 euros, existe uma compensação que pode chegar no máximo aos 4.900 euros anuais para as equipas que preencham determinados requisitos relativamente aos escalões de formação.

Acresce a isto, um outro valor atribuído às equipas que iniciam cada jogo com pelo menos oito jogadoras portuguesas e ainda nova compensação para quem apresentar 14 jogadoras lusas na ficha. Como exemplo, segundo foi possível apurar, houve equipas a terminar a primeira volta com compensações de 1750 euros por cada um destes dois parâmetros.

Contudo, estes valores que podem ser alcançados pelas equipas que apostam mais nas jogadoras portuguesas, acabam por ficar bastante aquém dos que são amealhados pelas equipas que andam na frente do campeonato. Isto, porque o prémio por vitória é de 500 euros, o que fez com que Benfica e Sporting tenham 7.000 euros só em prémios por vitória até à 15.ª jornada.

De resto, no que diz respeito a prémios, no final da primeira volta, a equipa que recebeu menos ficou-se por pouco mais de 10.700 euros, enquanto que a que mais amealhou ultrapassou os 24.500 euros, tendo havido seis equipas com prémios superiores a 20 mil euros e apenas duas abaixo de 15 mil.

Efeitos proporcionais à realidade de cada clube

Quando pensamos numa pessoa que conheça bem a realidade do futebol feminino em Portugal, é impossível não nos ocorrer o nome de Domingos Estanislau, há mais de três décadas presidente do Clube Futebol Benfica, o histórico Fófó, que é aquele que há mais tempo anda pela primeira divisão.

E na opinião do líder do clube que venceu os dois últimos campeonatos antes da entrada em cena das equipas profissionais, o maior problema provocado pela pandemia é a incerteza.

«Esta pandemia prejudica toda a gente. Não é só o futebol nem só o futebol feminino. O grande problema no futebol é que se vive um momento confuso. As pessoas querem tomar decisões relativamente ao futuro e não sabem o que vai acontecer», começa por dizer Estanislau, olhando para o caso específico do Fófó.

«Não fosse isto e nesta fase se calhar estaríamos a preparar a próxima época. Só que devido a toda a incerteza, não o conseguimos fazer como devíamos», lamenta, ele que acredita, ainda assim, que quem mais sofrerá serão as equipas profissionais.

«Será sempre mais complicado para as equipas que investem mais. Esta situação pode provocar alguma perda de investimento e para quem tem orçamentos maiores, isto complica um bocado», nota, olhando também para as equipas que aspiravam a subir à primeira divisão.

«Sei que há equipas que investiram bastante para subir e agora ficaram sem essa possibilidade. Mas a verdade é que ninguém tem culpa que isto tenha acontecido. A meu ver, a decisão tomada pela FPF é a melhor justiça… dentro da injustiça que isto significa para alguns clubes», conclui.

Paula Pinho, também ela com uma vasta experiência no futebol feminino nacional, tanto como jogadora como, há mais de década e meia, treinadora do Clube de Albergaria, acredita que, apesar de tudo, esta situação irá afetar mais as equipas profissionais.

«As consequências serão proporcionais à realidade que cada clube vivia. Em Portugal temos três clubes profissionais e dois ou três a caminho do profissionalismo. Os restantes trabalham conforme era habitual no país antes do profissionalismo. E acho que para esses a incerteza não é tanta. Mas claro que os clubes que contam os tostões vão ter de se redefinir e fazer opções mais conscientes», começa por dizer.

«Para o Clube Albergaria, é como se já estivéssemos em julho. A época acabou. Resta-nos olhar para esta temporada, analisá-la e começar a preparar a próxima, com a diferença de as jogadoras irem ter uma paragem muito mais longa do que é habitual», realça.

Que futuro para o futebol feminino, então?

Neste momento, e ainda sem decisões definitivas por parte da FPF, existem mais dúvidas do que certezas relativamente ao futuro do futebol feminino português.

Desde logo, pela incerteza das equipas que lideravam a luta pela subida à primeira Liga – Torreense, Amora, Famalicão e Fiães -, que ainda tentam demover a FPF da decisão de não contemplar subidas esta época.

Segundo noticiou há dias o jornal A Bola, Torreense, Amora e Fiães apresentaram um documento aos responsáveis federativos – que o Famalicão também subscreve - com uma proposta que inclui duas opções: o alargamento de 12 para 16 equipas, com a subida dos dois primeiros classificados das séries norte e sul; ou um play-off entre as quatro equipas para definir duas a subir, o que implicaria o alargamento para 14 equipas.

Mas se as dúvidas ainda são muitas em termos competitivos, quem falou ao Maisfutebol é quase unânime numa opinião: a evolução do futebol feminino em Portugal não será colocada em causa.

«Quero acreditar que esta situação não vai prejudicar o crescimento que se tem verificado nos últimos anos. Têm vindo a aparecer cada vez mais raparigas a querer jogar futebol e acredito que isto não vai fazer com que isso deixe de acontecer», acredita Sofia Teles.

A mesma ideia é defendida por Domingos Estanislau que adianta que o Fófó vai ter mais um escalão na formação, passando a ter seis equipas femininas.

«Isto não vai parar o crescimento do futebol feminino em Portugal. Pelo contrário: na próxima época já haverá uma terceira divisão, por exemplo. E nós vamos passar a ter também equipa de sub-13», refere.

Já Paula Pinho, que também acredita que a vertente o futebol feminino vai continuar a crescer, faz uma reflexão mais alargada sobre as consequências desta situação e da quebra económica que considera provável acontecer no setor.

«Por um lado, acho que isto veio colocar as coisas no devido lugar. Nos últimos anos temos assistido ao crescimento de um vedetismo que, na minha opinião, não se justifica. Parece que se anda a viver acima das possibilidades para a nossa realidade», começa por dizer a treinador do Clube Albergaria, lamentando aquilo que chama de «uma espécie de novo-riquismo».

«Houve um crescimento e um desenvolvimento grande no futebol feminino nacional, mas talvez a jogadora portuguesa não estivesse preparada para esta onda. Muitas delas, parece que entraram numa espécie de novo-riquismo que não se entende muito bem», aponta.

«Antes, quando falávamos com uma jogadora, a primeira coisa que ela queria saber tinha a ver com as condições de trabalho e a possibilidade que o clube lhe oferecia para crescer. Agora, a primeira coisa que perguntam é quanto o clube lhe vai pagar. E é claro que nós queremos melhorar e oferecer sempre melhores condições às jogadoras, mas dentro das possibilidades e da realidade que vivemos», alerta, sem deixar de elogiar as gerações de jogadoras que estão a aparecer.

«Acredito que esta situação poderá significar uma maior aposta na formação e no aparecimento de mais espaço para jogadoras de 16 ou 17 anos jogarem ao mais alto nível. E, honestamente, acho que poderemos todos ser agradavelmente surpreendidos com a qualidade que existe», remata.

Ou seja, apesar de toda a incerteza que se vive ainda, e de ser provável que a pandemia provoque alguns danos também no futebol feminino, em Portugal, existe a convicção de que as defesas construídas nos últimos anos sejam um reforço suficiente para assegurar o futuro.

Desde que, claro, haja vontade para isso. Porque força para voltar a derrotar um vírus melhor do que os homens, parece existir.

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