O futebol até aos 43: «Ao domingo tem de haver o copinho de vinho» - TVI

O futebol até aos 43: «Ao domingo tem de haver o copinho de vinho»

Zé Manel e Nuno Dias acabam carreira aos 43 anos (Foto: Serzedelo e GD Chaves)

Zé Manel e Nuno Dias figuraram nos campeonatos nacionais nos últimos 24 anos. Quarentões põem ponto final na bola no Chaves Satélite e Serzedelo. Rematam para um livro de histórias por contar.

Palavras terra a terra. Carreiras de mais de duas décadas. Entre muitos relvados, alguns pelados. Outrora meninos entre os graúdos, hoje mais velhos que os seus treinadores. Quem viveu a década de 90 no futebol português está, grosso modo, a pendurar as chuteiras. No final de 2018/2019, Nuno Dias e Zé Manel são disso caso: o guarda-redes e o defesa fizeram, em maio, a despedida, respetivamente no Chaves Satélite e no Serzedelo - clube de Guimarães - ambos aos 43 anos.

Longevidades explicadas na vontade e no esforço, entre família e vida profissional além do futebol. O adeus deu lugar à emoção.

«O meu jogo de despedida foi de emoções. Revives tudo o que passaste e começas a pensar: “está a acabar”. Muito orgulho pela homenagem do clube, adeptos e familiares», conta Nuno Dias, que fez o último jogo a 12 de maio, ante o Taipas. E se este disse adeus com uma vitória por 2-1, no Campeonato de Portugal (CP), Zé Manel devolveu o Serzedelo à principal divisão distrital de Braga, a Pró-Nacional.

«No último jogo disse que acabou a carreira, mas ontem, a falar com a minha esposa, disse: “se não tivesse dito nada, ainda jogava mais”. Mas perde-se tempo para os filhos, não é a vida normal. Tenho de agradecer à minha família, a minha filha vai fazer 16 anos e acompanhou-me sempre. Tive de ceder este ano (risos), ainda queria subir o Serzedelo ao CP», nota Zé Manel, dos mais utilizados no último ano.

Nuno passou por 12 clubes em 24 épocas: natural de Paços de Ferreira, ali começou. Depois, Seixal, Vila Real, Lousada, Canelas, Joane, Ribeirão, Maria da Fonte, Fafe, Chaves, Tirsense e Pedras Salgadas. Zé Manel fez 25 temporadas, entre Vizela, Barrosas, Serzedelo, Dragões Sandinenses, AD Oliveirense, Tirsense e Fafe. Quis a vida – e a vontade própria – levá-los a este caminho, quando tudo podia ter sido bem, ou ligeiramente diferente.

Zé Manel terminou carreira de 25 anos como campeão distrital pelo Serzedelo

Às escondidas dos pais e a lesão para mais dez anos

Zé Manel, natural de Vizela e residente em Lousada há 17 anos, cresceu no seio de uma família extensa: é um de 11 irmãos. E também humilde, característica que o pautou em campo, de colegas a adversários. Contudo, o sonho da bola começou às escondidas dos pais, só convencidos por alguns filhos do seu objetivo, já após o tirarem do futebol para ajudar em casa.

«Comecei nos iniciados do Vizela, ainda era o antigo Agostinho de Lima, o ‘peladão’. Tive dois meses de experiência, fugi de casa dos meus pais sem eles saberem. Quando descobriram, não deixaram mais. Vivíamos da agricultura, de trabalhar no campo, estudava e trabalhava. Voltei aos 17 anos, por intermédio de torneios e o treinador disse que tinha de ir para o Vizela. Fui uma semana sem os meus pais saberem e os meus irmãos convenceram-nos. Infelizmente o meu pai já não está aqui, ao sábado de manhã deixava-me dormir mais que os meus irmãos porque tinha jogo», confessa, ao Maisfutebol.

Já Nuno podia ter visto a carreira mais curta, mas superou, aos 34 anos, uma grave lesão nos ligamentos de um joelho. «Estava a jogar no Fafe e, numa infelicidade, tive uma rotura de ligamentos na parte final da época, tive de fazer a recuperação quase sozinho. Deparei-me com uma lesão e sem clube. Passados quatro meses, fiz o meu primeiro jogo no Chaves. As pessoas trataram-me lindamente, os transmontanos são fantásticos», sublinha. E ali assentou vida, já lá vão dez anos.

E se Zé Manel não teve oportunidade de jogar numa liga profissional, Nuno Dias fê-lo. A estreia foi na II Liga, pelo P. Ferreira, frente ao Beira-Mar, em 1995/1996. Contudo, o «profissionalismo» que deu de si nem sempre permitiu ter esse estatuto. Aos 37 anos, fez o que Zé Manel fez durante quase todo o percurso: aliar uma profissão ao futebol.

Depois do futebol: da gelataria à quinta de gado

Na próxima época, não há treinos ao fim da tarde. Jogos ao fim de semana, idem. Vida renovada, ainda que sem total novidade. Nuno Dias tem em mãos uma proposta para «continuar ligado na área de treino de guarda-redes». A isso, alia o negócio numa gelataria em Chaves, no qual apostou há seis anos.

Antes, já tinha sido serralheiro, a partir dos 12 anos, mas nunca fugiu da «paixão enorme» do futebol, até voltar a laborar de novo. «Só o futebol não dava, neste nível. Ganhei paixão pela área e optei por esse negócio», conta o guardião que, em sete desempates por penáltis na carreira, nunca perdeu.

Nuno Dias com Nuno Espírito Santo, no jogo particular Maria da Fonte-FC Porto, em 2007

Já Zé Manel, apesar do «sacrifício», nunca descuidou o trabalho. Sempre em articulação com os treinos e jogos. Esteve na construção civil e numa «quinta com três hectares de vinha». Hoje, vai para a vinha do sogro ao fim de semana, porque o trabalho é outro, numa quinta de criação de gado, em São Martinho do Campo. «Trabalho com animais. Gosto do meu patrão, ele gosta de mim, quando eu tinha de jogar ele dispensava-me. Estou aqui há ano e meio, temos de olhar pelo gado, por tudo», relata.

Entre risos, Nuno, apelidado de «soviético» por alguns colegas - pela altura e cabelo claro - admite que «acabou na altura certa» para «dar lugar aos mais novos», mas nota que vai «ter saudades de jogar e competir». Zé Manel partilha.

«Vai deixar saudade disputar as bolas. Estou há duas semanas de férias e já sinto falta. Nunca lesionei um adversário, saio feliz. Toda a gente dizia que eu era duro. Agora vou ver os jogos e vejo o futebol mole, macio, não há aquelas entradas, a não ser o Ferrinho, meu amigo [ndr: jogador do Fafe], é do meu sangue, como é costume dizer-se, da minha raça, o único que vejo com nervo. Eu gostava dessas entradas, mas sem maldade, sem aleijar. É uma despedida, pensei que não ia custar tanto», diz.

O contrato com Quim Machado e o vinho que faltou para ganhar

Mais de duas décadas de futebol dão, seguramente, um livro. Zé Manel abriu o baú de histórias caricatas e curiosas. Sem rodeio, para quem viu em Fary, Saná ou Bock adversários difíceis. Mas um dos episódios de topo coloca um treinador pelo meio.

«O Quim Machado foi a casa dos meus pais para eu assinar contrato [ndr: em 2004, pela AD Oliveirense]. Ele, o diretor desportivo e o presidente. E eu pus uma garrafa de vinho e quatro copos. Ele vira-se para o presidente e diz: “ele deve ser um jogador do carago, bebe vinho, fuma”. O presidente e o diretor conheciam-me eu disse “mister, eu bebo, fumo e ao domingo, antes do jogo, tem de haver aquele copinho de vinho no almoço. Foi sempre regra. E ele diz: “nas minhas equipas ninguém bebe”. E eu, para o presidente: “estamos conversados, não há contrato”. E ele: “depois vê-se” e eu “não, tem de ficar no contrato, um copinho de vinho”», recorda Zé Manel.

Mas há mais.

«Fomos jogar ao União da Madeira, estava no Tirsense [em 2008]. No hotel, ao domingo não havia vinho. E eu virei-me para o meu colega central, o Paulo Sampaio, já estávamos a perder 3-0: “Não sei o que faltou [ao almoço], o vinho sei que faltou”. Foi o único jogo que perdi na Madeira (risos), uma história castiça», atira, frisando que, apesar de tudo, tinha era de existir «responsabilidade» nos atos.

Zé Manel não evitou emoção no adeus ao futebol

Para casa, Nuno leva, entre outras recordações, uma expulsão «caricata» ante o Benfica B de Bernardo Silva ou Cancelo, pelo Chaves. «Aparece-me o Ivan Cavaleiro isolado, chuta, eu nem lhe toco e o árbitro expulsa-me», lembra. Mas outro jogo ante bês, os do FC Porto, fica pelos melhores motivos. «Defendi um penálti a acabar, vinha de um jogo negativo contra o Feirense, consegui esquecer e ser o melhor em campo», conta quem ajudou o Chaves a subir à II Liga, em 2013.

Botas de lado e palavras soltas de quem falou, em campo, pelo sonho. «Bate três vezes com o pé no chão que isso passa» fica como uma das frases de Zé Manel, que detestava antijogo e perda de tempo. «Nunca saí de campo por abrir a testa, custava era ir ao hospital a seguir (risos)», completa.

Por estes dias, o futebol vira memória. Em São Martinho do Campo, é provável encontrar Zé Manel a cuidar do gado e da horta. Em Chaves, Nuno Dias, numa qualquer gelataria flaviense.

O tributo flaviense a Nuno Dias, no último jogo da carreira do guarda-redes
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