O que ficou do grande Dínamo que tinha mais médicos e cientistas do que muitos países? - TVI

O que ficou do grande Dínamo que tinha mais médicos e cientistas do que muitos países?

Dinamo Kiev

Uma viagem à história do Dínamo Kiev que atemorizou a Europa nos anos oitenta, com o «futebol científico» do mítico Lobanovskiy. O que ainda existe dessa grande equipa no adversário do Benfica desta noite.

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Falar do Dínamo Kiev é falar de Valeriy Lobanovskiy.

O homem que deu nome ao estádio do clube foi eleito pela revista France Football o sexto melhor treinador da história do futebol e marcou uma época na evolução do jogo.

Licenciado em engenharia térmica, curso que tirou enquanto jogava, Lobanovskiy foi treinado por Viktor Maslow, que se diz ter inventado o 4x4x2 e a pressão sobre o jogador. Por isso foi marcado pelas ideias do mentor, antes de introduzir ele próprio várias alterações no futebol.

Influenciado diretamente por uma época de grandes avanços tecnológicos, numa altura em que surgiram o primeiro reator nuclear, o primeiro satélite e os primeiros computadores portáteis, o técnico acabou por criar aquilo que ficou conhecido como futebol científico: uma ideia do jogo segundo a qual todas as ações coletivas executadas em campo podiam ser planeadas previamente.

Kiev era nessa altura o centro tecnológico do país, sede por exemplo do Instituto Soviético de Pesquisas Cibernéticas, pelo que Lobanosvkiy se entregou ao futuro. De tal forma o fez, aliás, que até os conceitos táticos do Dínamo Kiev foram criados em parceria com um estatístico, o professor Anatoliy Zelentsov, com quem lançou um livro sobre metodologias de treino.

«Quando cheguei ao Dínamo, em 1976, o clube tinha uma equipa de médicos e cientistas maior do que muitos países», referiu o defesa Sergei Baltacha.

A filosofia de Lobanovskiy assentava na ideia de a equipa nunca poder deixar que o adversário se adaptasse ao seu estilo de jogo. Para isso exercia uma pressão fortíssima sobre o adversário, que criou escola a partir daí, por exemplo no atual estilo de jogo alemão, e mudanças constantes de posição que lembravam o futebol total de Rinus Michels.

«O Lobanosvkiy introduziu uma base metodológica na preparação da equipa, que até então não existia no futebol», resume o analista Joel Amorim, que trabalha com o futebol de leste.

«Foi o primeiro a utilizar, por exemplo, treino individualizado e as estatísticas no futebol.»

Chegou a Dínamo Kiev em 1974, após quatro anos no Dnipro, e ficou até 2002, com duas interrupções pelo meio. Ganhou treze campeonatos nacionais, nove taças, duas Taças das Taças e uma Supertaça Europeia. Simultaneamente esteve em dois Mundiais, um Europeu e uns Jogos Olímpicos com a União Soviética, tendo alcançado um segundo lugar no Euro 88.

Pelo meio revelou e projetou três Bolas de Ouro: Oleg Blokhin em 1975, que deixou Beckenbauer em segundo e Cruyff em terceiro, Igor Belanov em 1986 e Shevchenko em 2004.

Shevchenko que tem uma história curiosa: quando venceu a Liga dos Campeões em 2003 pelo Milan foi ao cemitério onde Lobanovskiy foi sepultado e colocou a taça ao lado da estátua do treinador. Um gesto que repetiu um ano depois, quando ganhou a Bola de Ouro.

«Lobanovskiy está sempre no meu coração. Vou estar-lhe grato para sempre por tudo o que fez com a minha vida e pela minha carreira», referiu Shevchenko.

Ora o facto de ter colocado a taça da Liga dos Campeões ao lado de Lobanovskiy não deixa de ser significativo: muita gente diz que esse foi o único troféu que faltou ao treinador. De resto criou uma equipa fortíssima, que marcou os anos oitenta, e tornou o Dínamo Kiev, base de toda a seleção soviética, uma potência do futebol europeu. Um adversário temível para qualquer clube.

O jornalista José Milhazes viveu de perto esta fase, ele que se mudou para a União Soviética em 1977, e considera que o Dínamo Kiev beneficiou também de um contexto favorável.

«O Dínamo Kiev, tal como o Dínamo Tblisi ou o Dínamo Moscovo, era ligado à polícia interna soviética e ao KGB. Por isso era mais bem financiado do que outras equipas. Ninguém acreditava que o futebol soviético era amador, já andava lá bastante dinheiro no meio e os jogadores tinham salários muito altos para a realidade do país», refere José Milhazes.

«Para além disso, a Ucrânia sempre foi a república soviética onde mais e melhor futebol se jogava. É uma coisa de tradição. Por exemplo a Lituânia era mais ligada ao basquetebol. A Ucrânia era uma república do futebol. O Dínamo Kiev era um símbolo da república da Ucrânia e deu grandes jogadores à seleção da União Soviética. Um pouco como o Dínamo Tblisi na Geórgia.»

Joel Amorim lembra aliás que o Dínamo Kiev e o Dínamo Tblisi foram as únicas equipas soviéticas a conquistar troféus da UEFA: o de Kiev ganhou dois e o de Tbilisi um.

Porém, tudo começou a mudar com a chegada de Mikhail Gorbachov ao poder em 1988 e mudou definitivamente com a dissolução da União Soviética em 1991.

«A União Soviética desintegrou-se, fecharam muitas escolas de futebol que preparavam jogadores, porque não havia dinheiro para nada e por isso não se investia no desporto. O futebol soviético entrou numa crise muito grande. Só mais tarde é que se levantaram devido ao apoio de oligarcas, como é o caso do Shakhtar ou do Zenit, com a Gazprom», acrescentou José Milhazes.

Ora a partir dos anos noventa o futebol das antigas repúblicas soviéticas, e o futebol ucraniano sobretudo, entrou numa crise da qual só se recompôs parcialmente no séc XXI.

Quando Lobanovskiy morreu, em 2002, na sequência de um derrame cerebral sofrido no banco enquanto defrontava o Metallurg, o Dínamo já só era uma caricatura do que tinha sido.

O Dínamo Kiev que o Benfica vai defrontar esta quarta-feira não tem nada a ver com o Dínamo Kiev que o FC Porto afastou nas meias-finais da Taça dos Campeões de 1987, que os dragões haveriam de ganhar, e que era considerado por muitos a equipa mais temível daquele ano: uma equipa que tinha dois Bolas de Ouro no onze, incluindo o Bola de Ouro em título.

Fernando Valente, treinador que trabalhou dois anos no Shakhtar, considera, no entanto, que ainda há coisas do antigo Dínamo Kiev que se conseguem ver no clube atualmente.

«O Dínamo continua a ser um clube tradicional, como era nos tempos do Lobanovski. Uma equipa de luta, de grande resistência, de controle do jogo pela capacidade física. Nota-se isso na equipa principal e até mesmo nos escalões de formação. Quando defrontava o Dínamo pelo Shakhtar havia sempre uma dimensão física muito maior no jogo, que lhe era atribuída pelo Dínamo», diz.

«Essa imagem da antiga União Soviética, da dimensão física, está presente no modelo de jogo de todas as equipas do Dínamo. Em contraponto com o Shakhtar, que tem um estilo mais trabalhado, mais técnico, promovido pelo presidente nos últimos 25 anos, que contrata muitos jogadores no Brasil e para quem não interessa só ganhar, mas sim a forma como ganha.»

Talvez por isso, o Shakhtar tem sido o grande dominador do futebol ucraniano no séc XXI: ganhou treze campeonatos, treze taças e uma Taça UEFA.

«Devido a todas as contingências políticas, a partir da separação da União Soviética houve uma estagnação, até no aspeto financeiro. O Shakhtar é financiado pelo homem mais rico da Ucrânia. O Dínamo continua a ter alguma hegemonia social, mas não tem o poder financeiro que lhe permita competir com o Shakhtar», acrescenta Fernando Valente.

«O Shakhtar devido ao conflito armado saiu de Donetsk e nos últimos quatro anos está em Kiev, o que lhe permitiu também ganhar preponderância no país, com uma academia muito bem apetrechada, numa zona habitacional de Kiev, tornando-se superior ao Dínamo na preparação de jovens para o futebol sénior. Por isso o Shakhtar cresceu fora de Donetsk.»

O analista Joel Amorim volta a resumir tudo numa ideia muito simples: existem três Dínamos.

«Há o Dínamo de Lobanovskiy antes do fim da União Soviética, há o Dínamo de Lobanovskiy após a União Soviética e há o Dínamo atual. Há uma diferença enorme entre o Dínamo de Lobanovskiy e o atual, que esteve vários anos sem conseguir roubar o título ao Shakhtar», diz.

«É uma equipa que agora se tenta reconstruir, que volta a conseguir recrutar nas equipas ucranianas com menos poder financeiro, e por isso volta a ter bons jogadores jovens. Está a conseguir crescer em relação ao que era há três ou quatro anos, mas ainda está muito, muito distante do fio nos anos 70 ou 80. Não há sequer comparação possível.»

Joel Amorim considera, de resto, que «o Dínamo Kiev podia ter um jogo mais técnico, pela qualidade de jogadores que tem», adiantando, no entanto, que isso tem muito a ver «com a marca do treinador». O que acaba por ser em parte subscrito por Fernando Valente.

«O Lucescu não mudou muitas coisas no Dínamo Kiev. Ele no Shakhtar tinha um jogo orientado para a parte técnica e no Dínamo teve a inteligência de se adaptar, aproveitando a capacidade física dos jogadores, que é de facto o traço mais forte da equipa, e juntando-lhe alguma técnica, mas não individual, aquela que os jogadores brasileiros têm, diria mais técnica coletiva, na capacidade de gerir o jogo com bola ou na organização posicional.»

É este Dínamo que esta quarta-feira entra em campo no Estádio da Luz.

Um Dínamo que, como todos os Dínamos, pagou o preço da ligação à polícia política e aos serviços secretos após o fim da União Soviética, acabando por ser ultrapassado por um Shakhtar que praticamente não tinha tradição no futebol soviético.

Do grande Dínamo de Lobanovskiy, portanto, sobram as memórias e a tradição soviética.

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