Onde param os pedaços de memória das Antas? - TVI

Onde param os pedaços de memória das Antas?

Estádio das Antas

No 15.º aniversário do Estádio do Dragão, o Maisfutebol foi à descoberta das recordações palpáveis do seu antecessor e encontrou desde um painel de azulejos a um bebedouro, mas também uma insólita bancada num café da baixa ou um banco da antiga capela. Um roteiro pelos objetos que fazem reviver o velho estádio, com 51 anos de história e 15 de memória

Do gigante estádio para 76 mil pessoas, que durante meio século foi casa do FC Porto, resiste no local aquela estrutura metálica. No meio de um descampado, destinado um empreendimento imobiliário, ali permanece, proeminente, uma das antigas torres de iluminação do Estádio das Antas com vista para o Dragão, como uma recordação perene que não sucumbiu à passagem do tempo.

Hoje, data em que a inauguração do estádio novo perfaz 15 anos – o tal jogo da estreia de Lionel Messi pela equipa principal do Barcelona –, o Maisfutebol recupera as lembranças do antecessor.

São 51 anos de história e 15 de memória do Estádio das Antas (inaugurado em maio de 1952) em fragmentos que foram guardados ao longo do tempo.

Uns metros abaixo do local onde se situou aquele coliseu do fervor e glória portista, ergueu-se uma arena moderna com 50 mil lugares e classificação de cinco estrelas pela UEFA.

Nas entranhas do Dragão também há, porém, muita memória das Antas.

«Um admirável mundo novo velho», como explica ao Maisfutebol Jorge Maurício Pinto, diretor de programação do museu do FC Porto.

Poema arrancado do concreto

«O Estádio das Antas vibra neste museu desde o primeiro passo até ao último. Para lá do património imaterial, para lá das emoções e das sensações, há coisas muito físicas», salienta, destacando que no novo museu há preciosidades como um relicário com as terras de todos os antigos estádios do FC Porto: Campo da Rainha, Constituição e Antas.

Na área temática «Do Campo ao Estádio», uma das 27 dos 7 mil metros quadrados de espaço museológico, destaca-se também um painel de azulejos com o poema «Aleluia», de Pedro Homem de Melo, que representa «uma fusão do clube com a cidade, que é também o espírito também deste museu», explica Jorge Maurício Pinto.

E, azul e branca, essa bandeira avança…

Azul, branca, indomável, imortal.

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Os versos com que termina este poema literalmente arrancado do concreto foram até estampados no autocarro da equipa principal dos dragões. O mosaico, esse, foi guardado nas coleções e reservas do clube, aquando da demolição das Antas, em março de 2004, perspetivando a sua exposição no museu, que só abriria portas em setembro de 2013.

«O painel foi arrancado da parede, ainda com tijolo e estuque. E está ali emoldurado, descrevendo a emoção de um grande poeta e etnógrafo como era o Pedro Homem de Mello», conta ao Maisfutebol o responsável, acrescentando ainda assim que, mais do que os objetos, o Dragão presta a devida homenagem ao antecessor através também de memórias imateriais:

«Num dos hologramas do presidente Pinto da Costa fala-se da história do rebaixamento do Estádio das Antas. É um vestígio, mas há outros: de depoimentos de personalidades que expressam o seu sentimento de ser portista e lembram a primeira vez que vieram ao futebol no antigo estádio, a fotografias, vídeos, taças, troféus… Na área temática «Olhar Cativo», por exemplo, recria-se a antiga pala da bancada, onde através do vídeo mapping, numa experiência 2D e 3D, se consegue quase sentir o ambiente frio e delicioso daquelas tardes e noites bem passadas sob a pala da bancada do antigo Estádio das Antas.»

«Café da bancada» virou miniestádio

As recordações do velho estádio não ficam, no entanto, somente entre as paredes do Dragão. Ou sequer apenas nas imediações.

Pelo Porto e não só há adeptos que guardam cada objeto como se de um pedaço palpável de memória se tratasse.

Descendo a Avenida Fernão de Magalhães, acesso privilegiado entre a baixa e as Antas, encontra-se no início da Rua de Fernandes Tomás um café sui generis. Além de mesas, cadeiras e balcão, no Goa há uma inusitada estrutura com 15 cadeiras brancas do antigo estádio.

Uma espécie de minibancada. «Este deve ser o único café na Europa e se calhar no mundo que tem algo parecido», conta o proprietário, antes de detalhar.

«Quando tomei conta deste café, falei com um amigo, já falecido, então diretor do FC Porto, e ele conseguiu autorização para que fossemos buscar as cadeiras que guardaram aquando da demolição das Antas, que estavam depositadas num armazém. Foram-me oferecidas, porque ninguém as queria, mas isto para mim e para muitos clientes traz-nos boas memórias», conta João Ribeiro, proprietário do Goa, «agora conhecido como o café da bancada».

«95 por cento dos meus clientes são portistas. Em dias de jogo do FC Porto, a bancada está reservada e o café enche. Isto é quase uma casa do FC Porto. Quando ganhámos o campeonato, até veio cá tocar trompete o Lourenço – conhecido adepto, cujo trompete ecoava nas bancadas das Antas.»

Enquanto conversa, José Ribeiro puxa do telemóvel e mostra o vídeo do Benfica-FC Porto da época passada. «Vieram cá uns jornalistas da Sky Itália ver esse clássico e ficaram parvos com o ambiente deste café em dias de jogo…», conta.

Na verdade, a própria minibancada não resistiu nesse dia aos festejos do golo de Herrera, que viria a ser decisivo para a conquista do título pelos dragões. Um dos degraus partiu-se, mas já foi remendado.

Há até um holofote na Rua do Sol

Não muito distante do café, na sombria Rua do Sol, na zona da Batalha, fica a casa de Alexandrino Azevedo.

Casa talvez seja um termo redutor para classificar o autêntico museu dedicado ao clube do coração. Não há centímetro quadrado a descoberto: tudo é alusivo ao FC Porto.

Entre o espólio de milhares de peças divididos por três pisos cabem naturalmente memórias das Antas. Em fotografias, naturalmente, como as que forram caixas de televisores antigos tornados molduras, mas também objetos inesperados: como um holofote do antigo estádio.

«Como arranjou uma lâmpada destas?», perguntámos.

«É preciso ter amizades. Neste caso, com o eletricista do estádio…», responde este adepto, que não passa despercebido, tanto pelo fervor portista com que se expressa, como pelos muitos medalhões e anéis que ostenta.

«Há que nutrir amizade com o eletricista, com o homem que trata da relva… Quando a relva estava a ser transplantada, pedi um quadradinho e lá mo arranjaram. Está ali para todo o sempre (aponta para um torrão plastificado). No caso do holofote, a mesma coisa: eu era amigo do eletricista das Antas e pedi-lhe uma lâmpada que já estivesse fora de uso para a minha coleção. Se já estava fundida e não ia ser aproveitada…», recorda com sentido prático.

Alexandrino não tarda em encontrar um sentido para cada peça. Até para o tal holofote: «Quando perdemos é preciso uma luz destas… Dez, vinte… Para clarear tudo e demonstrar a grandeza do FC Porto.»

O relógio marca sempre 15 horas

O roteiro de memórias estende-se para bem das Antas ou até da cidade do Porto.

Luís César, secretário técnico do FC Porto durante três décadas, é um dos guardiães da memória azul e branca.

Na sua propriedade em Santa Cruz da Trapa, freguesia de São Pedro do Sul, também ele criou um minimuseu para expor os objetos que colecionou durante quase uma vida ligada ao clube.

Do velho estádio tem coisas inusitadas. Enumera-as à medida que a conversa flui.

«Tenho por exemplo um bebedouro, de pé, daqueles que estavam fixados no chão. Havia dois a caminho do pavilhão e a canalha bebia lá água. Pedi para ficar com um, já que não ia voltar a ser utilizado. Aquilo é um peso desgraçado; é tudo em ferro fundido. Mas já não funciona, que está muito ferrugento, pá. Aquando da demolição, fui apanhar um bocado de pedra e tijolo da entrada principal. É um pedacinho. Só para marcar posição. Tenho também uma cadeira da capela do estádio, daquelas em que as pessoas se ajoelhavam. Tenho também um recipiente para pôr os guarda-chuvas, que estava à porta dos balneários…»

Luís César deixou em 2009 de ser secretário técnico do FC Porto, onde trabalhava desde a ascensão de Pinto da Costa à presidência. Viveu a transição de estádios e sublinha o «choque da mudança», embora reconheça que «são dois mundos completamente diferentes» e que o novo estádio é «o mais bonito do país».

Das Antas diz que não precisa «de olhar para os objetos para recordar as alegrias ali vividas».

«Isto é mais para os meus netos. Quando eles vêm cá, digo-lhes: “Isto era do Estádio das Antas, pá. Ainda te lembras?” Coitados, eles não se lembram de nada, não é? Serve também para mostrar àqueles amigos que são portistas antigos e ajuda recuperar algumas lembranças», conta Luís César, que de súbito se recorda de um objeto que o faz retomar a lista de relíquias que guarda das Antas: «Olhe, das Antas tenho também a carcaça do relógio que estava no balneário.»

Não o relógio inteiro, esclarece. «Só o miolo, já o apanhei sem a máquina. Encontrei-a abandonada num monte de coisas, atirada para um canto», lembra, sublinhando quase sem querer que há coisas que o tempo não apaga e que fazem valer a pena cada objeto.

«Aquilo é só a carcaça do relógio. Não tem valor nenhum, é uma coisa meramente estimativa. Mas olhávamos tantas vezes para ele… Como não funciona, coloquei os ponteiros sempre nas 15 horas», revela, acrescentando em jeito de conclusão:

«Sabe porquê? Porque antigamente era a hora regimental do futebol. Ao olhar para aquele relógio que não funciona lembro-me dos dias de jogo, sabe?»

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