Que força é essa que os empurra a desafiar os limites do sofrimento? - TVI

Que força é essa que os empurra a desafiar os limites do sofrimento?

São homens e mulheres com um emprego e uma família, que tiram horas à cama, aos filhos e aos amigos para correr cinquenta, oitenta ou cem quilómetros. Nas montanhas, à chuva, à neve e sob temperaturas negativas. Na semana em que morreu um francês na Maratona das Areias, em Marrocos, fomos perceber o que motiva cada vez mais portugueses a fazer trails.

Já se imaginou no deserto do Peru, a correr 120 quilómetros durante quatro dias, sem nenhuma assistência a não ser uma tenda, quatro litros de água e dez minutos de internet ao final do dia?

«Foi das experiências mais giras que tive», atira Dário Moitoso.

Dário tem 28 anos, é açoriano da Ilha do Faial e gere com o pai uma exploração agrícola. Os trails são um passatempo que leva muito a sério. Dessa vez, no deserto do Peru, correu a Maratona das Areias, a versão da original de Marrocos, onde na terça-feira morreu uma pessoa.

«Durante quatro dias não nos dão mais nada. Temos de levar a comida de casa, numa mochila às costas, e tudo o que precisamos. Foi duro, mas eu consigo tirar proveito das provas que faço», diz.

«Acima de tudo o que motiva é conhecer novos lugares, conhecer novas pessoas, ter novas experiências. Em que circunstância da minha vida iria para o deserto do Peru, a 40 quilómetros da civilização mais próxima? Quero sempre desfrutar disto, conhecer novos lugares, novas culturas.»

Dário não é um atleta de trail vulgar, de resto. É um dos melhores em Portugal. Corre seis dias por semana, fazendo cerca de cem quilómetros semanalmente. Já esteve três vezes no Monte Branco e habituou-se a ganhar prémios em Portugal. Foi aliás distinguido como atleta do ano nos Açores.

Durante as provas já lhe aconteceu praticamente de tudo, já se perdeu, por exemplo, mas sobretudo não esquece aquela vez que caiu em cima de umas pedras no campeonato nacional na Batalha.

«Nem percebi como aconteceu. Foi tudo tão rápido, que nem consegui meter as mãos ao chão para amortecer a queda. Acabei a prova e fui para o hospital. Ainda consegui ficar em terceiro.»

«Há alturas em que não sobra nada de nós, física e psicologicamente»

Ana Saborano tem 38 anos e é da Figueira da Foz. Começou a correr há quatro anos, mas só há dois se entregou à loucura das longas distâncias.  Já fez, entre vários outros, os trails da Serra de Arga, da Peneda-Gerês e o Triangle, nos Açores. Todos eles acima dos cem quilómetros.

Diz que os trails lhe entraram na vida quase sem dar por ela. É proprietária de um instituto de beleza e durante a pandemia teve de fechar portas. O que lhe deixou mais tempo livre.

«Já corria habitualmente, mas nessa fase, e como vivo perto da Serra da Boa Viagem, comecei a correr na montanha. Fui fazendo treinos maiores e dediquei-me mais a sério.»

Hoje já não se imagina sem isto.

«Isto é o mais próximo que existe de conversar com Deus. Estas provas demoram dezoito ou dezanove horas, ininterruptas, sempre sem parar, a chover a cântaros, com nevoeiro. Eu tenho uma mochila, um GPS e um par de pernas. É um sofrimento muito grande. Nós morremos e renascemos dezoito vezes. A meio da noite há um cavalo que nos passa à frente, há um ribeiro que se atravessa. Há alturas em que não sobra nada de nós, física e psicologicamente», conta.

«Mas é muito gratificante. Por isso é que voltamos sempre.»

Ana Saborano diz que corre pelo desafio.

«Não vou para lutar contra ninguém, vou para me desafiar, para lutar comigo própria. Quero superar-me, porque a partir dos 50 quilómetros já não sobra mais nada de mim.»

«Pensei sempre no meu filho e tentei que a mente vencesse o corpo»

No fundo a euforia de ultrapassar os limites é que os motiva. Rui Santos, por exemplo, tem 42 anos, foi pai em fevereiro e é CEO de uma empresa tecnológica no Porto. Há pouco mais de um mês apanhou um avião e foi correr mais de cem quilómetros no mítico Ultratrail do Monte Branco, nos Alpes, por uma distância que passa por França, Suíça e Itália.

«Porque corro? Pelo desafio. A preparação acarreta um grande sofrimento, treinos de 40 ou 50 quilómetros ao fim de semana, longe da família, mas depois há a adrenalina de atingir o objetivo. Não corro para ganhar, corro para me superar a mim próprio. E quando consigo o meu corpo devolve-me em dobro ou triplo tudo o que foi sofrimento», refere.

«Na hora a seguinte ainda não, mas passado duas horas o meu corpo já está a injetar em mim sensações tão boas que começo logo a pensar noutra prova.»

É esse turbilhão de emoções que toda a gente refere e que Rui Santos garante justificar a dor.

«Há um certo lado masoquista nisto. O Monte Branco durou 26 horas e experimentei todo o tipo de sensações: da euforia ao desespero. Gosto de fugir à palavra sofrimento, mas sofre-se bastante. Passa-se por vários estados e há um em que se sofre», sublinha.

«Mas há aqui um lado de componente competitiva comigo próprio. Ia preparado para sofrer, porque fui pai em fevereiro e não tive tempo para me preparar convenientemente. Ao quilómetro 40 tive de parar porque estava com problemas digestivos. Mas ao saber que não estava tão bem preparado, pensei sempre no meu filho e tentei que a mente vencesse o corpo.»

«Fui muito ao limite e o corpo já não estava a reagir»

João Veríssimo tem 33 anos e é de Coimbra. Tem a particularidade de, por vezes, ir sozinho para estas longas corridas. Numa dessas vezes sentiu que exigiu demasiado do corpo.

«O máximo que corri foram 170 quilómetros, da Figueira da Foz à Torre da Serra da Estrela, também sozinho, mas tive de fazer trajeto em duas etapas porque ao meio entrei em hipotermia, na Serra da Lousã. Os carros de apoio recolheram-me, mas já não estava a reagir. O corpo já não estava para aí virado, gastei muita energia a tentar aquecer. Fui muito ao limite», conta.

«Fiz uma aventura mundial, também sozinho, que correspondia a subir várias vezes o quilómetro vertical da Serra do Marão até chegar aos 8848 metros do Monte Evereste. É um desafio que se chama Everesting, eu fui o segundo português a fazê-lo e o 31º do mundo.»

João já tem, de resto, dificuldade em lembrar-se de todos os ultratrails que fez.

«Das Aldeias de Xisto, do Marão, da Serra da Freita, a Grande Rota dos Balieiros», começa a enumerar. «Todos para cima de 100 quilómetros.»

«Acabámos por sofrer mais umas vezes do que outras, mas as dores aparecem sobretudo depois, na altura da recuperação o corpo queixa-se do mal que a gente lhe fez. Ao longo de uma prova desta passamos por várias fases: bem-dispostos, felizes, angustiados. Passamos por tudo. Para além do desgaste físico, isto é um desgaste mental muito grande. A nível psicológico é muito duro.»

Mas o que é que o faz correr?

«Eu gosto muito de andar na montanha, mas o que me motiva é sobretudo a superação. Fazermos uma prova destas é uma superação muito grande. O que sentimos no fim é quase inexplicável.»

«Há momentos de introspeção tão profunda que no fim nem tenho memória»

Tal como Ana, Rui e João, também Luís Martins, engenheiro mecânico do Porto, mas a viver em Munique, não consegue parar de correr. Já foi duas vezes ao Monte Branco, nos Alpes, já fez o Oh meu Deus, na Serra da Estrela, a Serra de Arga, o Trail do Douro e Paiva, o Trail do Marão, enfim.

«A componente de ultrapassar barreiras é o que me move: ser capaz de fazer coisas que à partida não julgava ser possível. Quebrar os limites. São experiências tão profundas que é difícil explicar. Já tive alturas de estar a meio da prova e perguntar-me: ó Luís, o que estás a fazer aqui? Tive uma na Serra do Alvão, com um nevão incrível, temperaturas baixíssimas e eu só pensava que podia estar em casa. Mas a sensação de chegar à meta é inacreditável», conta.

«Depois há momentos em que estou numa meditação profunda. Há partes de provas das quais no fim não me lembro. É um estado de introspeção incrível. Mas é um estado bom.»

Luís Martins fala, de resto, das experiências.

«Tenho tido aventuras através do trail, tenho tido acesso a locais, paisagens e pessoas, que seriam impossíveis de viver de outra forma.»

E histórias, claro: tantas histórias. O engenheiro mecânico lembra, por exemplo, o dia em que um amigo ia a correr durante a noite no escuro da montanha, a lanterna ficou sem pilhas e ele começou a gritar ‘acendam a luz, acendam a luz’. Estava a delirar, o que acontece às vezes com o esforço.

Outra vez, um atleta estava a chegar à meta no fim de um trail no Açores e, já na reta final, perdeu também o discernimento. Conclusão: viu o hotel e, em vez de cortar a meta, correu para o hotel.

«Também acontece», acrescenta João Veríssimo.  

«Por vezes o cansaço é tanto, as condições meteorológicas tão más, que já não conseguimos manter o discernimento. Nessas alturas a melhor decisão é parar.»

A notícia de um cidadão francês que morreu a fazer a Maratona das Areias, em Marrocos, deixa-os tristes, mas não lhes retira a vontade de continuar a correr. Afinal de contas não é um caso novo: no Monte Branco houve também uma morte e ainda em julho morreu no Marco de Canaveses um atleta que caiu numa ravina durante um trail e esteve desaparecido dois dias.

Rui Santos sintetiza tudo numa frase.

«É preciso sempre ter atenção aos sinais, mas em momento algum me leva a deixar de correr, pela mesma razão que quando vejo um acidente não trânsito não penso em deixar de conduzir.»

 

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