«Let the Games»... esperar. Mas como fica a vida no meio disto tudo? - TVI

«Let the Games»... esperar. Mas como fica a vida no meio disto tudo?

Preparação para os Jogos Olímpicos de Tóquio (AP/Eugene Hoshiko)

As histórias de atletas olímpicos que não vivem apenas do desporto

Nem dá para respirar.

Cliente, atrás de cliente. Atrás de cliente. Atrás de cliente.

Avia receita. Próximo! Trouxe receita? Aqui tem! Próximo.

Receber material. Arrumar material. Receber mais material. Procurar espaço para arrumar.

Um mês disto. Ou o primeiro mês disto. Sabe-se lá quando é que vai abrandar.

Duas folgas? Isso é um luxo. Fica uma e não se fala mais nisso.

Próximo!

Desde o dia 1 de março que o trabalho de Joana Castelão na farmácia ganhou um ritmo capaz de derrubar qualquer um. Mesmo sendo ela uma mulher de armas.

Se, entretanto, não voltou a lembrar-se daquele Campeonato da Europa que não lhe correu tão bem quanto desejava, menos tempo teve ainda para se lembrar que é atleta olímpica. E que ainda procura assegurar a participação na edição dos Jogos de 2020.

Ah, espera! Isso foi adiado, não é verdade? Parece que se ouviu qualquer coisa a respeito.

Fora exageros – e só existem no que diz respeito à receção da notícia do adiamento dos Jogos Olímpicos para 2021 -, tem sido mais ou menos isto a vida da atiradora Joana Castelão.

E neste momento, ‘atiradora’ talvez seja também uma imprecisão, uma vez que desde o dia em que regressou ao trabalho na farmácia após a participação no Europeu que decorreu na Polónia, Joana não conseguiu voltar a pegar na arma para treinar.

«Quanto voltei apanhei logo com a avalanche do aumento da procura nas farmácias. Tivemos tanto trabalho nesses primeiros dias, com tudo o que estava a acontecer, que nunca mais parei», explica, em conversa com o Maisfutebol, ao fim de mais uma jornada de trabalho.

«Têm sido dias absolutamente alucinantes. Além do aumento da procura, há todo o outro trabalho que não podemos deixar de fazer, como receber material e arrumar tudo. Além disso, tivemos de reorganizar o funcionamento da farmácia, dividir em duas equipas para não termos de fechar se alguém ficasse infetado», continua.

Nesse sentido, para a atleta que procura a segunda presença nos Jogos Olímpicos, depois de ter marcado presença em Londres, em 2012, o adiamento da competição acabou por ser uma boa notícia.

«Por mim, ainda bem que foram adiados. Com tudo isto, eu nunca conseguiria estar em forma para as provas de qualificação, que estavam marcadas para abril ou maio, e que, entretanto, também foram remarcadas», admite.

Romaria: check! Tatuagem: check! Levar família a Tóquio… em espera

Nem todos os atletas que integram o Programa de Preparação Olímpica vivem exclusivamente do desporto.

Muitos acumulam a vertente desportiva com outras profissões que lhes ocupam grande parte do tempo, obrigando-os a um esforço-extra na persecução daquele que é o sonho mais alto que um atleta pode ter: os Jogos Olímpicos.

Como ficam as vidas desses atletas agora que a competição marcada para Tóquio foi remarcada para 2021? O adiamento é conciliável com as profissões que exercem?

Foi a partir dessas questões que o Maisfutebol foi em busca de alguns atletas olímpicos menos conhecidos da generalidade dos portugueses, mas cujas histórias são importantes conhecer.

Como a de João Paulo Azevedo.

Por estes dias, quando ele chega à porta de um lar para fazer mais um descarregamento de gel desinfetante, luvas e outros produtos de higiene com os quais trabalha, o mais provável é que quem virá recolher o material depois de ele se afastar não saiba que foi um atleta olímpico a deixar ali os produtos que valem ouro por estes dias.

É o próprio que assume que os clientes da zona de Vila do Conde, onde está sediada a empresa familiar de que está à frente, até vão sabendo que ele conseguiu o apuramento para Tóquio. Mas essa informação não chega com a mesma facilidade a clientes de outros pontos do país.

«Ultimamente já há mais gente que vai sabendo por causa da tatuagem que fiz com os anéis olímpicos. Quando as pessoas veem ficam curiosas e perguntam se já fui aos Jogos Olímpicos», conta.

Não foi, mas irá. E a tatuagem foi feita pelo atleta de Tiro com Armas de Caça para cumprir uma das promessas que tinha feito, caso se apurasse.

«Ao terceiro ciclo olímpico e depois de ter andado muito perto do apuramento duas vezes, finalmente, consegui chegar aos Jogos», orgulha-se o atirado de 36 anos, que, em setembro, foi medalha de prata na Taça do Mundo de Lathi, na Finlândia, resultado que lhe permitiu agarrar o apuramento olímpico.

«Tinha feio três promessas caso me apurasse: ir a pé ao Santuário da Santa Alexandrina, em Balazar, que cumpri logo quando regressei da Taça do Mundo; a tatuagem; e uma outra que está por cumprir: levar a minha mulher e a minha filha comigo aos Jogos», confidencia.

Tal como Joana Castelão, também João Paulo Azevedo não tem tido mãos a medir no último mês, uma vez que trabalha com bens absolutamente essenciais para o combate a esta pandemia.

Aquilo que mais mudou no caso dele foi a disponibilidade de stocks - «não conseguimos máscaras há várias semanas» - e também houve um redefinir de prioridades.

«Decidimos dar total prioridade aos lares, que são quem mais precisa neste momento», explica o atleta que, na vertente desportiva, deixou de ter possibilidade de treinar.

«No que diz respeito ao tiro, agora estou mesmo parado. Não posso treinar porque os campos de tiro estão fechados, não tenho alternativa», justifica.

Contudo, ao contrário do que nos disse Joana Castelão, o atirador lamenta o adiamento dos Jogos, sobretudo pelo ponto de preparação em que se encontrava.

«Estava já com um nível de preparação muito avançado, com alguns estágios da seleção feitos, provas internacionais e também do nacional», explica, ele que, aliás, viu o anúncio do adiamento chegar quando se encontrava num estágio da seleção.

Mas a vida de atirador é mesmo assim. E João Paulo Azevedo já aponta ao novo alvo.

«Como não me dedico ao tiro a 100 por cento, a preparação é mais complicada. Mas vamos ter de fazer um início de época forte e voltar a investir na preparação tudo aquilo que já tínhamos investido até esta altura», receita.

Um treino que não é mais do que… um esboço

Para Nuno Costa, as principais mudanças que esta situação provocou prendem-se mesmo com a vertente desportiva. Para o praticante de Taekwondo, a impossibilidade de ter outra pessoa para treinar limita bastante a obtenção de um objetivo que teve de ser adiado.

«Estava a preparar-me para disputar o torneio pré-olímpico em abril», informa o atleta que ainda não tinha alcançado o apuramento e que encara com alguma apreensão o regresso da competição.

«Vou demorar a voltar ao pico de forma. Neste momento só faço aquilo que costumamos dizer que é o trabalho complementar, falta o contacto», lamenta.

«Por muito que queiramos tentar treinar, a ideia de ‘treino mínimo’ não existe para quem está a trabalhar para chegar aos Jogos Olímpicos», continua.

No fundo, trata-se de uma espécie de um esboço de um treino, aquilo que o arquiteto Nuno Costa tem conseguido fazer em casa.

Por outro lado, na vertente profissional, vai tentando segurar-se numa altura em que a sua área aparenta ser uma das que pode sofrer bastante com toda esta situação.

Resta saber se a opção tomada por Nuno Costa de ter um espaço seu não lhe poderá sair cara.

Isto, porque depois de ter feito um estágio profissional num escritório que lhe garantiu a possibilidade de ter um horário flexível, percebeu que a dedicação que o Taekwondo lhe exige podia colocar em causa a vertente profissional.

«Sentia que ia estar sempre a precisar de pedir essa flexibilidade de horário e que talvez fosse demasiado, por isso, optei por abrir o meu escritório. Faço pequenos trabalhos e colaboro com alguns colegas», revela.

Nos últimos dias, contudo, teve mais uma prova do risco que isso pode acarretar. Ainda que tenha conseguido resolver a situação.

«Tenho um cliente que é agente de viagens e cujo trabalho foi totalmente afetado por esta situação. O negócio dele parou e aquilo que estava reservado foi tudo cancelado. Nós estamos a fazer um projeto de moradia para ele, que nos pediu para reunir devido às mudanças que teve a área dele, para perceber a hipótese de adiar o projeto. Mas depois da conversa ele foi sensível ao facto de termos o projeto bastante adiantado e combinámos acabá-lo. O que poderá ficar em standby é o início da obra», suspira.

Adiar a reforma… se não tiver de abdicar do sonho maior

Para Filipe Reis o adiamento dos Jogos para o ano 2021 teve uma implicação imediata: a recalendarização do ponto final da carreira.

«Na minha cabeça já estava decidido que iria parar no fim deste ano. E isto veio alterar tudo. Porque o meu grande objetivo de carreira era um dia chegar aos Jogos Olímpicos. E sinto que devo a mim mesmo tentar uma última vez, por isso vou adiar o fim do karaté para 2021», revela.

Esta decisão significa que a família, principal razão pela qual perspetivava, aos 28 anos, o adeus à modalidade que pratica desde os sete, vai ter de esperar mais um ano. Só mais um ano.

«O objetivo de deixar era poder dedicar-me mais à minha família: estar mais tempo com os meus pais, quem sabe aumentar a família. No fundo tentar ter uma vida normal e compensar aqueles de quem mais gosto por todas estas ausências que o karaté impõe», fundamenta.

Há, contudo, uma dúvida. Mais uma, aliás, que a pandemia da Covid-19 traz a Filipe e um pouco a toda a gente.

«Eu não sei qual o impacto que esta pandemia vai ter em termos económicos. Nem se vou continuar a ter o meu emprego de técnico financeiro quando tudo isto passar», sublinha, notando que poderá ter de repensar tudo caso o posto de trabalho fique ameaçado.

«A minha empresa tem-me ajudado bastante, facilitando-me a vida para poder dedicar-me também a karaté, mas se isto colocasse em causa o meu emprego, seria um fator a ter em conta na hora de decidir prolongar por mais um ano», alerta.

Ou seja, a vida de Filipe Reis – e as dos outros atletas com quem falámos – está neste momento no mesmo ponto dos torneios que qualificação olímpica: o ponto de interrogação.

Todos anseiam a presença no Estádio Olímpico de Tóquio quando for dado o grito de início. Mas enquanto se aguarda por esse «Let the Games begin!», há vidas que não podem esperar.

E essa é a maior preocupação daqueles que aspiram ao Olimpo, mas não vivem apenas do desporto.

 

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