Ouro de Viana: Trincão e Neto, os amigos que fugiam da catequese - TVI

Ouro de Viana: Trincão e Neto, os amigos que fugiam da catequese

Francisco e Pedro conheceram-se nas escolinhas do Vianense e reencontraram-se na Seleção Nacional. O Maisfutebol faz uma visita aos dias em que o futebol se fazia de dias de chuva e de campos pelados, à boleia de Filipe Silva e João Branco, antigos treinadores

A Santa Luzia põe-se em bicos de pés sobre Viana do Castelo e sorri. Liga a televisão, vê a Seleção Nacional a golear a pequena Andorra e abraça dois dos seus meninos. Francisco Trincão e Pedro Neto jogaram lado a lado, com as quinas ao peito, 12 anos depois de se terem conhecido no balneário do Vianense.

Francisco já tem quatro internacionalizações. Pedro somou a primeira e à efeméride juntou um golo. Trincão e Neto, o ouro de Viana incrustado em dois pés esquerdos. Pés capazes de desenhar as maiores maravilhas num campo de futebol.

A vida juntou-os nas escolinhas do clube da terra. A vida levou-os para o Sp. Braga e, mais recentemente, para ligas estrangeiras. Trincão mudou-se no passado verão para Barcelona, Neto já esteve em Itália e brilha na matilha do Wolverhampton desde 2019.

Duas histórias independentes, mas que se cruzam em pontos determinantes. O Vianense, o Sp. Braga, a Seleção Nacional. E, acima de tudo, Viana do Castelo. O Maisfutebol recuou até 2008 e aos dias em que Pedro Neto e Francisco Trincão formaram uma dupla incontrolável.

«’É doença de família’: o ADN especial de Pedro Neto»

Aos cinco anos, o pai de Trincão levou-o aos treinos do Vianense. Quase três anos depois, Pedro Neto juntou-se ao grupo. João Branco e Filipe Silva tiveram o privilégio de treinar, em períodos diferentes, os talentosos esquerdinos de Viana.

«Conheci o Francisco e o Pedro nas escolinhas do Vianense. O Pedro era mais jovem, estava numa equipa que não competia, mas um diretor veio falar connosco e disse-nos que tinha um talento raro», conta Filipe Silva ao nosso jornal.

No primeiro treino colocámo-lo no meio, não queríamos pedir-lhe nada que fosse excessivo. Mas ele pegou na bola, arrancou, fez das dele e o meu colega, o Gilberto Silva, virou-se para mim e disse ‘o que é isto, pá?’. Eu disse-lhe assim: ‘é doença de família’. O pai do Pedro foi hoquista, a mãe voleibolista e o tio [Sérgio Lomba] jogou na I Liga muitos anos. Sempre tiveram um talento inato para o desporto.»

Pedro é filho de Pedro Neto, famoso hoquista que vestiu as camisolas do Infante Sagres e da Juventude de Viana. A ligação do pai à modalidade afastou por uns tempos o esquerdino do futebol, como conta João Branco, ex-treinador.

«Conheci primeiro o Francisco Trincão. Tinha cinco anos e estive com ele três épocas. Posso dizer que fui o primeiro treinador dele. O Pedro Neto só conheci uns anos depois e trabalhei com ele alguns meses. O Pedro teria sete/oito anos e estava numa fase em que andava entre o futebol e o hóquei em patins», revela.

«O pai do Pedro foi hoquista profissional, mas aos dez anos ele voltou ao futebol do Vianense e não saiu mais.»

Pedro e Francisco antes de um jogo nas escolinhas do Vianense

O talento, asseguram, era semelhante. Mas a personalidade não podia ser mais distinta, apesar de partilharem «a boa educação» e o «saber estar».

«O Francisco era um mini-adulto. Muito responsável, adorava aprender e destacava-se pela forma diferente como se relacionava com a bola. Era muito bom, sim, mas daí a perceber que um dia chegaria à seleção e ao Barcelona… estaria a mentir. O que eu mais destacaria nele era mesmo a forma de estar. Não era normal a maturidade dele, estava sempre bastante focado. Era um homenzinho», recorda João Branco, antigo treinador.

Pedro, acrescenta Filipe Silva, era completamente diferente. «Não parava quieto, era um menino agitado. Muito divertido, brincalhão, não parava. Tinha uma energia inesgotável.»

Foi essa agitação que o levou, certo dia, ao Hospital de Viana, com uma ferida na barriga.

Estávamos em minha casa e os miúdos quiseram simular um jogo de hóquei no jardim. Começaram a jogar com os paus que lá tinha e o Pedro aleijou-se. O pau ficou preso na relva e fez-lhe uma ferida na barriga. Teve de ir levar pontos ao hospital, mas nem assim parou. Sempre foi muito elétrico, agitado, não parava.»

«O Trincão deu-me uma ‘cueca’ e disse ‘já estou a ganhar 1-0’»

Apesar de mais discreto, Francisco Trincão também alinhava nas brincadeiras. Dentro de campo era, de resto, um dos mais irreverentes, confidencia João Branco.

«Há uma história engraçada com ele. No final dos treinos eu gostava de entrar nas peladinhas e jogar com os miúdos. Num desses treinos, o Trincão deu-me uma ‘cueca’ e o safado ainda se virou para trás com cara de gozo: ‘já estou a ganhar 1-0’. Um miúdo de sete anos fazer isto é revelador. Recordo este momento com muito carinho.»

Na temporada 2008/09, Francisco e Pedro fizeram parte de «uma das melhores equipas na história do Vianense». Foram campeões distritais e raramente falharam a um treino, como sublinha Filipe Silva.

Adoravam jogar futebol. Complicado, complicado era levá-los para a catequese (risos). Tivemos a felicidade de treinar uma equipa que adorava estar junta. Tivemos um nível de assiduidade a rondar os 98% e estamos a falar de Viana do Castelo, onde chove muito. O Francisco e o Pedro adoravam treinar.»

Para criar estímulos no trabalho com crianças de oito e nove anos – Pedro Neto é quatro meses mais novo do que Francisco Trincão – Filipe e Gilberto Silva, a dupla técnica, criaram exercícios diferentes dos convencionais.

Pedro Neto foi sempre um dos mais brincalhões no Vianense

«Criámos algumas situações interessante para o treino. Enchíamos balões, pedíamos que todos os segurassem e depois dávamos alfinetes. Quando um rebentasse, acabava tudo. Demonstrávamos que o espírito coletivo era o principal lá dentro. Se um falhasse, falhavam todos», explica o antigo treinador, agora a trabalhar na área comercial.

«Dividíamos o campo em três zonas: vermelho, amarelo, verde. A zona vermelha proibia o drible, na verde havia liberdade total. Quando o Francisco entrava na verde com a bola, desequilibrava completamente com fintas. Tinha uma técnica extraordinária. O Pedro já era mais um jogador de equipa e tinha um movimento muito forte: fugia da direita para o meio e rematava.»

Trincão era mais requintado, Neto mais intenso. João Branco acredita, enfim, que a passagem pelo hóquei em patins mexeu com o jogo do atual atleta do Wolverhampton.

O Pedro beneficiou do facto de ter praticado hóquei. Passou a ser um jogador explosivo muito cedo. Transportou isso para o futebol. Ele adorava brincar, era irreverente e tinha o futebol de rua dentro dele. Como o Francisco, aliás. Diria que foi muito isso que os tornou imprevisíveis, além do talento natural de ambos.»

A «má experiência no FC Porto» e as famílias-modelo

No verão de 2009, Francisco Trincão mudou-se do Vianense para o FC Porto. Durou poucos meses, por vários motivos, como o Maisfutebol já contou. Fartou-se de «ser só mais um» e voltou a Viana do Castelo e ao seu Vianense. Filipe Silva não lhe detetou qualquer trauma.

«O Francisco teve uma experiência má no FC Porto, é verdade, mas voltou forte, muito equilibrado. Uma das coisas que mais me espantava neles, além do pé esquerdo, era a forma tranquila e serena com que lidavam com tudo. Tínhamos miúdos com qualidade, mas que ficavam bastante preocupados com a competição, extremamente ansiosos. O Trincão e o Neto não eram assim. Viviam tudo com tremenda naturalidade.»

Essa «serenidade» pode ser explicada pelo ambiente familiar criado pelas famílias Trincão e Neto, junta João Branco.

«Beneficiaram de um excelente enquadramento familiar», assegura o antigo treinador. «O Pedro vem de uma família de desportistas, os pais sabem bem o que é preciso para vencer no desporto. Quem conhece o Pedro sabe que ele não passou tempos fáceis na Lazio, esteve lá dois anos quase sem jogar. Nunca desistiu, chegou ao Wolverhampton, tornou-se titular e aí está ele na seleção.»

Aos oito anos, Francisco Trincão já era «um homenzinho»

«O Francisco tem uma família de pessoas incríveis», acrescenta. «Foi sempre bem acompanhado, mesmo no período em que viajava de Viana para o Porto diariamente. Não teve uns pais exigentes, severos, nada disso. Estiveram muito presentes, mas de uma forma que permitiu ao Francisco respirar e errar quando teve de errar.»

Para Filipe e João, vianenses e ex-técnicos desta dupla que tanto promete dar à Seleção Nacional, a ascensão de Trincão e Neto «certifica a qualidade» da formação do Vianense e do Sp. Braga. Francisco jogou nove temporadas nos Guerreiros do Minho e Pedro esteve cinco anos no clube.

Na Seleção Nacional, com as quinas ao peito, transportam o orgulho das gentes de Viana. «Ver dois filhos desportivos meus na seleção, a ouvir o hino, é arrepiante. É emocionante», assume Filipe Silva, numa nostalgia que contagia João Branco.

«Enquanto vianense é um orgulho vê-los na seleção. Enquanto amigo deles e das famílias o orgulho ainda é maior. Mas quem está por dentro do futebol e os conhece, sinceramente, acreditava que isto era possível.»

O ouro de Viana de Castelo no futebol está bem entregue. Francisco Trincão e Pedro Neto, os amigos que não falhavam um treino e que fugiam da catequese, já são internacionais portugueses. O Campeonato da Europa de 2021 está já ali.

NOTA: FOTOS gentilmente cedidas pelos antigos treinadores e famliares de Francisco Trincão e Pedro Neto

[artigo originalmente publicado às 23h55]

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