Na véspera da sua morte, Robert Enke levantou-se e foi treinar. Pela primeira vez em vários meses, Teresa, a esposa, não o acompanhou. Por algum motivo, identificou melhorias no comportamento do marido e na luta contra uma grave depressão.
Enke correu ao lado do colega Hanno Balitsch, mas pouco falou. Sobre o 2-2 contra o Hamburgo, nem uma palavra. Indiferença, apatia, silêncio. Sintomas típicos de quem luta contra demónios interiores. Implacáveis.
À chegada a casa, no regresso, chovia muito. Robert encontrou a mulher e a filha, Leila, à espera. Saíram para um passeio pela cidade de Hannover e decidiram ver a exposição Corpos de Verdade. Vitrinas com cadáveres embalsamados, órgãos extraídos e conservados. Pesado.
À saída, Robert e a família foram ao Café Kreipe, o lugar de sempre. Pediu strudel de ameixa com molho de baunilha. Para Teresa, o apetite era um sinal de esperança, um passo em frente na recuperação.
A custo, Robert até tirou uma foto com a pequena Leila. A moldura continua na cozinha dos Enke.
À noite, o casal deitou a bebé e esticou-se no sofá. Viu um reality show e às nove, já com a casa em silêncio, Robert Enke ainda teve uma consulta ao telefone com o psicólogo Valentin Markser, a segunda do dia.
«Amo-te, Terri», disse Enke antes de ir para a cama.
«Também te amo. Vamos conseguir ultrapassar isto», respondeu Terri.
No dia seguinte, 10 de novembro de 2009, Robert Enke saiu de casa para mais um treino. Mas não havia nenhuma sessão de trabalho agendada.
Às 18h15, o antigo guarda-redes de Benfica, Barcelona, Fenerbahce, Tenerife, Hannover e Alemanha acabou com a própria vida. Morreu atropelado pelo comboio regional proveniente de Bremen. Tinha 32 anos.
«Não consigo ler o livro do Robert, não passo da primeira página»
Em Robert Enke, uma vida curta demais, o jornalista Ronald Reng conduz-nos por um labirinto de sombras, dúvidas, enigmas. Conduz-nos pela mente de Robert Enke. A biografia, autorizada pela família, é a melhor forma de conhecer os tormentos do guarda-redes.
O detalhe das últimas horas de Enke em família é comovente, como comovente é o capítulo dedicado à morte da primeira filha do casal, Lara, ou a lesão sofrida ao serviço da seleção alemã, quando era o dono da baliza da Mannschaft.
Nesses últimos anos de vida, Robert Enke partilhou o balneário com o português Sérgio Pinto. Com o Maisfutebol, o atual chief scout do Greuther Furth – quinto classificado na II Bundesliga - recua dez anos no tempo. Em lágrimas.
«Já passaram dez anos? Tenho aqui em casa o livro sobre o Enke e nunca o consegui ler. Não passo da primeira página.»
Sérgio foi colega de Enke durante dois anos e meio no Hannover. Até que a morte os separou.
«Era um homem gentil, o nosso capitão. Nunca ouvi a levantar a voz, a falar de forma descontrolada. Impunha respeito em todos pelo estatuto e pela forma equilibrada como se comportava no balneário e no relvado. Afinal, ele era o titular da Alemanha.»
Dois dias antes de morrer, Enke esteve na baliza do Hannover num 2-2 contra o Hamburgo. Quem lê o livro de Ronald Reng sabe que já tomava medicação forte e apresentava comportamentos preocupantes em casa. No clube, porém, nunca deixou escapar qualquer desabafo.
«Nunca me apercebi de uma depressão, nunca falei com ele sobre problemas emocionais, nunca, nunca. Sentia-o, às vezes, mais pensativo, talvez um pouco ausente, mas daí a falar-se de depressão…»
Sérgio era um dos mais próximos de Enke no balneário, até por ser português. «O Robert ainda falava bem a nossa língua e dizia-me muitas vezes que queria voltar a viver em Lisboa. Sei, de resto, que a esposa dele continua a passar férias na zona de Sintra.»
«Calado e reservado, sim, mas daí a ter tendências suicidas…»
Lisboa. Lisboa. Lisboa. A partir de determinada altura, a palavra é dita por Robert Enke em privado como se fosse a chave para a felicidade. Para a salvação e cura de todos os males.
Os três anos no Benfica, de 1999 a 2002, foram os mais luminosos na carreira – e na existência – do malogrado futebolista. O jornalista Ronald Reng descreve com a precisão de um relojoeiro a relação com o «irmãozinho» Moreira, a «admiração profunda» por José Mourinho, o dia em que o envelope com o salário foi entregue a outro estrangeiro louro do plantel e o convite feito por Pinto da Costa numa vivenda em Cascais. Dias felizes.
Nuno Marques é outro dos guarda-redes, além de Moreira, a trabalhar diariamente com Robert Enke durante esses três anos de Benfica.
«Lembro-me bem do dia em que o Robert morreu porque foi pouco antes de eu saber que ia ser pai pela primeira vez. Isso ficou-me muito marcado», conta Nuno Marques, na altura um jovem à procura de oportunidades.
«O Robert tinha mais três anos do que eu. Era um tipo calmo, muito correto, sério. Se calhar demasiado sério, nos dois sentidos da palavra: no posicionamento social e no comportamento. Eu estava muito com ele e com o Pierre van Hooijdonk porque era dos poucos que falava alemão. O Pierre era o oposto, soltava-se muito, principalmente nos almoços e jantares.»
Há pontos em comum nos relatos de Sérgio Pinto e Nuno Marques. Os mais importantes são a sintonia na identificação dos hábitos comportamentais de Enke (timidez, reserva, distanciamento) e a certeza na ausência de uma doença que, afinal, esteve sempre lá.
«Não, nunca identifiquei qualquer problema e nunca falei com outro colega nosso sobre isso. Só depois do falecimento é que percebemos que ele, de alguma forma, nos escondia a depressão», confirma Nuno Marques.
«Foi tão surpreendente e traumatizante», desabafa Sérgio Pinto, «que até o plantel do Hannover precisou de apoio profissional para ultrapassar o suicídio do Robert.»
Os discursos dos antigos colegas são coincidentes. «O Robert era calado, reservado, mas daí a ter tendências suicidas…»
«A depressão e a homossexualidade eram assuntos completamente proibidos no futebol», sublinha Nuno Marques. «Agora é diferente, mas naquela altura era impensável um futebolista assumir isso publicamente. Seria um sinal de fraqueza e falhanço.»
«No último jogo o Robert estava muito focado, em silêncio»
Na noite anterior ao último jogo da sua vida, Robert Enke voltara a tomar psicofármacos para se acalmar. Andreas Kopke, treinador dos guarda-redes da seleção, achou-o «estranhamente fora da partida», escreve Ronald Reng na biografia do atleta.
O Hannover empatou esse duelo contra o Hamburgo. 2-2, dois dias antes do fim de Robert Enke. O holandês Eljero Elia foi o último jogador a marcar-lhe um golo.
Sérgio Pinto jogou os 90 minutos dessa partida no meio-campo. Robert Enke jogou todo de preto.
«Ele tinha voltado de lesão há pouco tempo. Sei que andava a fazer treinos de recuperação. Senti-o muito bem na baliza, forte. Abracei-o antes de começar o jogo e ele estava focado, em silêncio.»
O jogo acabou, Robert Enke foi para casa, jantou pizza e cerveja. Sérgio Pinto ainda o viu no dia a seguir, no tal último treino. Foi a despedida por anunciar, o adeus perdido num banal «até amanhã».
«Na terça-feira estava a jantar e um colega do Hannover ligou-me. ‘Já viste a televisão?’, perguntou-me. Quando mudei de canal, quase que me engasgava. Senti-me mal. Meia-hora depois, estávamos todos a chorar, abraçados no balneário do Hannover.»
Sérgio deixa de falar. Uns segundos depois, despede-se com mais uma imagem. «Olhe, aqui em minha casa tenho uma foto com o Robert. Está na parede, vejo-a todos os dias. Eu e ele abraçados, aos berros depois de uma vitória por 3-2 em Karlsruhe. Aos berros e a rir.»
Robert Enke morreu no dia 10 de novembro de 2009. Foi sepultado ao lado da filha Lara. Esta é a nossa homenagem.