Trabalhou nas obras, vendeu empadão e brilha com golos em Portugal - TVI

Trabalhou nas obras, vendeu empadão e brilha com golos em Portugal

Vilmar (Facebook)

Vilmar nasceu no meio da pobreza, fez de tudo um pouco para subsistir no Brasil e chegou a Portugal em 2017. Uma lesão gravíssima obrigou-o a parar um ano. A sorte mudou em Montalegre. «Tenho de retribuir tudo o que o clube fez por mim.»

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No momento em que o perónio parte e só a pele impede a exposição da fratura, Vilmar cai ao chão e morde o grito. Não sente dor, não sente agonia.

Ligamentos rompidos, tornozelo desfeito, o convite para jogar num clube cipriota rasgado em papelinhos. Tudo numa peladinha de férias jogada com amigos. Mondim de Basto, 2019.

Vilmar não chora porque as lágrimas há muito secaram. O avançado do Montalegre leva 14 golos esta época, é o segundo melhor marcador do Campeonato de Portugal – só atrás do conhecido Zequinha, Vitória de Setúbal – e tem uma raríssima história de superação para contar.

De Duque de Caxias, ali ao lado do Rio de Janeiro, até ao planalto barrosão, 25 anos que mais parecem um século de vidas. Muita atenção a Vilmar, o goleador.

Vilmar no Novo, vice-campeão de Mato Grosso em 2017

EPISÓDIO UM, o bom humor: «O pé até ficou melhor depois da lesão»

A época 2018/19 termina, os seis golos de Vilmar ajudam o Oleiros a ficar nos campeonatos nacionais. Há convites para sair, países e ligas por descobrir, mas uma tarde de brincadeiras arruina os planos e mata os sonhos imediatos.

«Fui fazer um jogo com uns amigos, nas férias de 2019, e fiz uma fratura exposta do perónio. O osso só não saiu todo porque a pele ficou agarrada. Não senti dor nenhuma, em nenhum momento», desabafa Vilmar, habituado a outros horrores, talvez mais difíceis de suportar. Já lá iremos.

As primeiras notícias são péssimas. Os médicos dizem que o futebol acaba ali, mas Vilmar diz que não. Não acata as indicações clínicas, faz uma recuperação «duríssima» e agarra-se à família e à religião para poder voltar a fazer o que mais gosta.

«O pé até ficou melhor», brinca Vilmar, confrontado pelo Maisfutebol com os melhores números da carreira. «É bom ter 14 golos, claro, sou atacante. Mas estou mais feliz por estar completamente recuperado do que pelos golos que já fiz.»

Vilmar é um homem de fé, fervoroso evangélico, e não se esquece de todas as ajudas recebidas. «A esposa da minha família é de Felgueiras, pessoas trabalhadoras e humildes, e foram eles que me apoiaram nesse processo duro. Quase tive uma depressão, mas felizmente apareceu-me o convite do Montalegre e dei a volta por cima.»

EPISÓDIO DOIS, os golos: «O objetivo eram 15, mas agora quero chegar aos 20»

Mal refeito da segunda de quatro anestesias – sim, Vilmar precisa de quatro cirurgias para ficar bem do pé esquerdo -, o avançado carioca recebe um telefonema de José Manuel Viage, treinador do CDC Montalegre.

O mister quis que eu viesse logo, mas expliquei-lhe a situação, disse que tinha uma lesão grave e que não podia. Ele foi fantástico: ‘Vilmar, nós temos coração e vamos ajudar-te a ficar bem’. Cumpriram com tudo o que foi combinado até hoje. Casa, alimentação, tratamento, clínica. Não tenho adjetivos para elogiar e agradecer às pessoas do clube.»

Das camas do hospital e do sofá de casa, Vilmar passa para uma pensão em Chaves e, posteriormente, para uma casa no centro histórico de Montalegre. É tanta informação que Vilmar nem se lembra de quando deixa de mancar e começa a acertar com as balizas.

Vilmar (primeiro à direita, em cima) no ano de estreia no Fafe (FOTO: AD Fafe)

«Na pré-época de 2020 ainda mancava um pouco, estive um ano parado. As pessoas que viam os treinos duvidavam de mim, mas o professor Viage nunca desistiu. Sei que o Montalegre até podia ter contratado outros atacantes e ele quis sempre o Vilmar. É como um pai para mim», remata Vilmar, passando da primeira para a terceira pessoa, ao bom estilo dos grandes avançados.

E os golos? Cinco em Fafe (2017/18), seis em Oleiros (2018/19), 14 em Montalegre (2020/21). «Estou a fazer a melhor época da minha carreira. No início da temporada o objetivo era chegar aos 15 golos. Agora já quero chegar aos 20.»

Os clubes procuram golos e é normal que os clubes – os maiores – procurem Vilmar. Mas há uma dívida de gratidão para saldar em Trás-os-Montes. O coração bom do avançado faz questão de referi-lo.

«Estou muito feliz em Montalegre. Nesta altura qualquer pessoa me diz que vou receber convites da I ou da II Liga. Até agora não me chegou nada. Quero retribuir o que o Montalegre me deu, temos o play-off de acesso à III Liga e isso preenche-me completamente. Não vale a pena pensar muito à frente, já passei por muito na vida e sei que é o mais correto.»

EPISÓDIO TRÊS, a vida de casado: «Montalegre não é para solteiros»

Da janela de casa, na rua Direita, Vilmar tem vista privilegiada para o Castelo de Montalegre. O quadro é bonito, mas não é para solteiros. Fala quem sabe.

«Eu sou evangélico, casado, não gosto de beber, não gosto de sair, por isso para mim é perfeito. Quando queremos fazer alguma coisa, pego na minha esposa e vamos jantar a Chaves», começa por referir o homem-golo do Montalegre.

«Agora, se eu fosse solteiro, não ia gostar de Montalegre», brinca Vilmar, convicto do que diz. «Não há discotecas, bares, nada. É ótimo para quem quer estar focado no futebol. Com a vida que tenho é ideal.»

Vilmar, nado e criado nos arredores da Cidade Maravilhosa, ainda se encanta ao ver a neve a cobrir o castelo e o casco histórico. «É lindo, um postal ilustrado. Estou mesmo longe do Brasil.»

Vilmar é evangélico e um apaixonado participante nas homilias

EPISÓDIO QUATRO, trabalhar no duro: «Andei nas obras e na faxina»

Dificuldades, lembram-se? Vilmar nasce no seio de uma família pobre, muito pobre, e é obrigado a fazer pela vida cedo. Demasiado cedo. Essas necessidades básicas, o instinto de sobrevivência, explicam a entrada tardia no futebol.

«Só comecei a jogar aos 18 anos», confirma o avançado. «Nessa altura eu trabalhava numa loja de rações para animais. Falei com o meu patrão e disse-lhe que o meu sonho era o futebol. Ganhei coragem e larguei esse emprego para poder entrar nos juniores do Heliópolis.»

O emprego na loja de animais não é o primeiro de Vilmar. A necessidade cedo aguça o engenho e o jeito para a cozinha faz o resto. «Para me sustentar, fazia empadão em casa e ia vender de porta em porta. Também vendia chocolates e guloseimas nas escolas. Havia um professor que me comprava caixas inteiras, só para me ajudar. Depois trabalhei nas obras [construção civil] e na faxina [limpeza de casas], teve de ser.»

Vilmar durante o trabalho numa obra, no Brasil 

A natural simpatia de Vilmar torna mais leve memórias que são pesadas. Sem dinheiro na carteira e com um sonho para perseguir, o avançado tem de «andar 50 minutos, apanhar dois autocarros e andar mais 20 minutos» para chegar ao campo de futebol do Heliópolis.

Em 2015 surge a possibilidade de jogar no Queimados, 2ª divisão carioca. Uma divisão superior, um clube ainda mais longe de casa. «Apanhava dois comboios e no final fazia mais 30 minutos a pé. Saía de casa cedíssimo e voltava à noite, tinha de levar comigo a marmita.»

Do Queimados, Vilmar segue para o Itaúna, uma ‘barca furada’. «Na primeira jornada só tínhamos dois jogadores legalmente inscritos, o resto tinha a identidade falsificada. Fiquei um mês só e joguei depois no Novoperário, em Mato Grosso do Sul.»

No Novo, o avançado começa a perceber que o futebol pode mesmo ser uma saída segura. «Fomos vice-campeões estaduais em 2017 e foi nessa altura que chamei a atenção de clubes maiores. Os jogos da meia-final e da final passaram na Globo e eu fiz um golo ‘à Jardel’, de cabeça.»

Meses depois, Portugal. Pela porta da Associação Desportiva de Fafe. «O Carlão, meu amigo de infância e que atuou no Sp. Braga e no Leiria, levou-me ao Fafe para fazer uns testes. Agradei e fui contratado. Foi um passo gigantesco na minha vida.»

EPISÓDIO CINCO, a tampa do tupperware: «Abri e tinha lá carne»

Vilmar acorda ainda de noite, cozinha a comida que mais tarde comerá, sai de casa e apanha os dois comboios para Queimados.

Saía da estação e em frente havia um restaurantezinho», recorda, agora sim, emocionado. «Eu pedia sempre à senhora para aquecer lá a minha comida. E eu pedia sempre para ela não levantar a tampa do tupperware. Porquê? Tinha vergonha do que levava, era sempre o mesmo: ovo, massa, arroz, massa, ovo, arroz.»

Já com horas de viagem atrás e ainda um treino duro e mais horas de viagem para voltar a casa, Vilmar alimenta-se como pode «debaixo da arquibancada» do Queimados. Até que a partir de dado dia, o tupperware começa a ter ingredientes surpreendentes lá pelo meio.

«Comecei a abrir a caixinha e já não era só ovo, arroz e massa. A senhora começou a colocar carne ou peixe, sem eu pedir nada, porque percebeu que eu passava muitas dificuldades. Era assim, comia e depois ia treinar, para no fim fazer tudo de volta. Chegava a casa à noite, tardíssimo e cansado.»

«Se a minha carreira evoluir bem», faz questão de prometer Vilmar, «vou voltar a esse restaurante para ajudar a senhora que tantas vezes me ofereceu carne e peixe sem eu nada lhe pedir.»

Vilmar, uma promessa é uma promessa. E uma promessa é para cumprir.

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