Anatomia de um golo: Bergkamp, Holanda-Argentina, Mundial 1998 - TVI

Anatomia de um golo: Bergkamp, Holanda-Argentina, Mundial 1998

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Ao longo de uma carreira que se prolongou por 20 anos, Dennis Bergkamp marcou mais de 300 golos em jogos oficiais. Todos são tributo à subtileza de um dos avançados mais elegantes de sempre. Muitos foram mágicos, e a um punhado deles poderemos, com toda a legitimidade, chamar sublimes. Mas há, ainda, dois ou três que só podem ser considerados perfeitos. Como o que se segue.

Mas quando o Arsenal decidiu imortalizar Bergkamp em estátua, à entrada do Emirates, não escolheu um golo, um remate, ou um drible. Optou, sim, pelo gesto que melhor o define: todo no ar, com a perna esquerda dobrada sob o corpo e a direita esticada, a deixar a bola pousar na ponta da colher formada pelo pé direito em ângulo reto.


Bergkamp: um gesto inconfundível

Aqui chegado, qualquer leitor com mais de 25 anos sabe que este texto vai parar ao estádio Vélodrome, em Marselha onde, no dia 4 de julho de 1998, Holanda e Argentina jogam os quartos de final do Campeonato do Mundo. Mas ainda não estamos lá: por enquanto, é tempo de sublinhar que o controlo de bola em extensão de Dennis Bergkamp merecia um capítulo à parte na história do futebol.

Outro predestinado das receções orientadas, Xavi, explicava em tempos a ideia fundamental que nos anos 90 era passada por Carles Rexach aos jovens de La Masía: «Não queremos futebol ao primeiro toque, queremos futebol de MEIO toque.» Nas últimas décadas, ninguém terá ilustrado melhor do que Bergkamp essa ideia de que less is more. E, se estiver certa a corrente de opinião que distingue os craques dos bons jogadores através da qualidade do primeiro toque, Bergkamp está lá em cima, no topo da cadeia alimentar, com luvas nos pés. Este vídeo ajuda a perceber porquê.

O gémeo de Leicester

Mas para chegarmos a esse julho de 1998 é obrigatória, ainda, uma curta passagem por Leicester, para descobrirmos o gémeo ignorado de um dos melhores golos de sempre. Era agosto de 1997, jogava-se a quarta jornada da Premier League e Bergkamp, em estado de graça, conduzia os «gunners» ao empate (3-3) com um hat-trick memorável.

O primeiro golo, aos 9 minutos, foi um fantástico remate em arco, de fora da área. O segundo, aos 61, foi Dennis vintage, pela frieza cirúrgica do primeiro toque e a rapidez de conclusão no frente a frente com o guarda-redes. Mas foi no segundo minuto de descontos, com a sua equipa a perder por 3-2, que Dennis the menace fixou o 3-3 definitivo com uma das muitas obras-primas ignoradas do futebol. Vejam-na agora:



Tudo perfeito, a partir daquele passe de Platt: o controlo de bola no ar, com o pé direito, os dois toques curtos com o esquerdo, que tiram o defesa da frente e permitem recuperar o equilíbrio – mesmo com uma bofetada pelo meio – antes da conclusão em arco, novamente com o direito. «O primeiro toque foi o que me permitiu desenhar todo o movimento. Para mim sempre foi o aspecto técnico mais importante. E nessa altura eu era um jogador muito confiante, fisicamente sentia-me capaz de desequilibrar em qualquer jogo», contou o holandês, alguns anos mais tarde.

Visto por 21089 espectadores, e uns poucos milhões em Inglaterra, esse golo em Filbert Street não ganhou lugar na História. Mas seria vingado, onze meses depois, por um irmão gémeo ainda mais perfeito e depurado.

Frank, o carteirista visionário

É tempo de introduzir outro protagonista nesta história. No verão de 1998, Frank de Boer era, provavelmente, o melhor defesa do mundo, e o líder de uma fantástica seleção holandesa, orientada por Guus Hiddink. Além da extraordinária capacidade de desarme («faz lembrar aqueles carteiristas tão bons que a vítima só percebe que foi roubada quando chega a casa», escrevia Jorge Valdano) de Boer tinha argumentos ofensivos notáveis, que lhe permitiram alguns golos vistosos (quase todos de livre) e umas quantas assistências de qualidade extra (quase todas de longa distância). Entre elas, esta, para Rivaldo, num dos golos mais fantásticos da história da Liga espanhola, já abordado neste texto.



Chegamos enfim a Marselha, onde a Holanda sofre diante de uma excelente Argentina. O jogo está empatado (1-1) e, à entrada do último minuto, o calor é muito e a intensidade ainda maior. Tanta, que já originou duas expulsões – Numan e Ortega, uma para cada lado. Bergkamp já tinha brilhado, logo aos 12 minutos, ajoelhando-se para oferecer a Kluivert uma assistência requintada, de cabeça. Mas agora parece escondido, talvez a gerir forças, antecipando um prolongamento que se adivinha inevitável.

E é então que Frank de Boer recebe a bola. Batistuta e Claudio Lopez, os avançados argentinos, recuam, optando por definir a linha de pressão a meio-campo. Por isso, o capitão holandês conduz à vontade, de pé esquerdo, e tem tempo para levantar a cabeça. Lá ao longe, a mais de 50 metros, Bergkamp foge do eixo para a direita, arrastando a marcação de Ayala.

O passe de De Boer é fantástico, e dá ao avançado o tempo necessário para projetar uma catedral na sua cabeça, aperfeiçoando o lance de Filbert Street. O desafio é agora muito mais difícil: o passe vem com o dobro da distância, a receção tem de ser bem mais alta, e Ayala é um defesa muito mais competente do que toda a linha defensiva do Leicester. Mas  less is more. Bergkamp consegue nesse momento fazer mais do que repetir uma obra-prima: torna-a ainda mais inacreditável, na sua simplicidade, ao retirar-lhe um toque. 

Basta um, de pé direito, para receber a bola – a perna esquerda encolhida sob o corpo, a direita esticada em colher, lembram-se da estátua? O segundo toque faz duas coisas em simultâneo: encaminha-a para o meio e fá-la passar por debaixo das pernas de Ayala, que só tarde de mais percebeu o perigo. O terceiro, e definitivo, é com a parte de fora do pé direito, uma trivela discreta, apenas com a curva necessária para contornar o guarda-redes Roa, que se agacha para tentar tapar-lhe o ângulo, no poste mais próximo. Depois, Bergkamp sai a correr rumo à bandeirola de canto, tapando o rosto com as mãos, incrédulo com o que acabou de fazer: uma obra de arte em três toques.



Passaram seis segundos desde o passe de De Boer. À beira de uma apoplexia, Jack Van Gelder, o narrador da TV holandesa, continua a gritar um nome, sem lhe acrescentar adjectivos. Tem toda a razão: less is more. Este golo é puro Dennis Bergkamp. E fica tudo dito.

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