«Dás uma pedra ao Paulo Fonseca e ele faz-te uma calçada» - TVI

«Dás uma pedra ao Paulo Fonseca e ele faz-te uma calçada»

Parte III do diálogo com o chief-scout do Shakhtar Donetsk, José Boto, e com o antigo scout do Sp. Braga e atual diretor desportivo do Estoril, Pedro Alves

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O Maisfutebol juntou Pedro Alves, antigo scout do Sp. Braga e atual diretor desportivo do Estoril, e José Boto, que passou pelo Benfica antes de aceitar o convite do Shakhtar Donetsk para ser chief-scout do clube e conselheiro do presidente, para falarem sobre scouting durante mais de duas horas.

No entanto, o início da conversa teve como tema pratos favoritos e restaurantes na zona de Lisboa. Por fim e de forma solta, entrámos no mundo do scouting: o que é preciso para ser scout, a falsa questão dos perfis de jogadores, a ligação entre a figura do diretor desportivo e o departamento de scouting, e algumas histórias incríveis.

Episódios caricatos e relatos de contratações falhadas como foram as de Vinícius Júnior e Emre Mor para o Sp. Braga. 

Sabe quando três pessoas se juntam para falar sobre o que gostam? Foi assim. O jornalista deixou a conversa fluir.


Nota: pode ler as outras partes da conversa nos artigos relacionados.

MF: Muitas vezes fala-se em perfis de jogadores. 

Pedro Alves: (risos). Os perfis rebentam comigo (mais risos).

José Boto: Há duas coisas que temos de perceber: tem de existir uma ideia do clube, seja ela qual for. Para mim é assim que deve funcionar. E deves contratar treinadores que sirvam essa ideia para não estares dependente deles. Normalmente, os treinadores chegam aos clubes e querem jogadores que conhecem. Se for um bom treinador não conhece o mercado, para isso estamos lá nós. Já sei que o Pedro vai dizer que está é uma falsa questão. É tudo muito bonito se fores ver os manuais dos clubes... têm os melhores do mundo. Quem anda no terreno sabe que não consegue arranjar aquilo. Há jogadores que têm características que nos servem, mas não têm todas. Não chega comprar a pensar na tua ideia de jogo, também tens de comprar para vender. Para isso, é preciso saber o que o mercado quer. Se estiver no Sp. Braga, vou contratar jogadores apelativos para o patamar Benfica. Por sua vez, se estiver no Benfica vou buscar jogadores apelativos para outro patamar. Tens de olhar para as tendências do jogo. O Shakhtar é um pouco diferente.

Porquê?

José Boto: O dono tem um gosto futebolístico e quer que a sua equipa jogue de determinada forma. Se vender, muito bem, mas fá-lo mais por prestígio do que por necessidade financeira. Nós temos de fazer o máximo para o satisfazer: compatibilizar o ter de ganhar - e mesmo quando ganhámos, às vezes ele dá-nos cabo da cabeça porque o jogo não foi como ele queria. Temos de formar uma equipa para ganhar, mas que tenha um jogo atrativo como é a ideia do dono, que por acaso também é a minha. Tenho a noção que 90 por cento dos meus colegas não trabalha com ideias deles. Imagina que o mercado quer um jogador para a posição «seis». Vais procurar alguém que sirva o clube, que dê rendimento e que possa ser vendida. Esta dicotomia está sempre presente, principal para quem trabalha em ligas periféricas como nós. Tornou-nos mais astutos e, se calhar, mais conhecedores do mercado do que se trabalhássemos num clube que compra jogadores apenas para ganhar sem se preocupar com a ideia. Esse trabalho é mais fácil, embora não seja simples. Não é preciso ser grande scout para escolher entre o Ronaldo e o Messi. 

Pedro Alves: Sou contra os perfis e vou explicar porquê. A equipa de scouting andou a trabalhar com base num modelo de 4-4-2 como como o do Paulo Fonseca. Criámos um mapa sombra com base nesse modelo, mas no ano seguinte, o treinador vai para o Shakhtar e chega outro que quer jogar em 4-3-3. Já aconteceu apresentar um mapa sombra com oito visualizações pelo WyScout e quatro ao vivo, com o parecer favorável de várias pessoas e o treinador preferir um jogador que marcou num jogo contra nós. Nessas alturas, tens de ter um presidente a dizer que o que conta é o que está na lista e que obriga o treinador a escolher um daqueles. Tive o privilégio de ter o Paulo Fonseca como treinador aos 27 anos e entendi o que era o conhecimento de jogo. Dás uma pedra ao Fonseca e ele faz-te uma calçada, mas escolher a pedra para a calçada é mais difícil (risos). Admiro-o, fez-me ver o futebol de outra maneira. Andei sempre num contexto de jogador fraco no CNS: ia à linha e cruzava, pedia na frente e cruzava. Era o que os treinadores antigos me pediam. Depois tive um treinador que me dizia: 'Pára! Vê como estás posicionado, olhas os apoios, olha a largura que o lateral está a dar'. Andei enganado durante 27 anos. Cheguei a ir 50 vezes à Sérvia, o presidente disse-me que era fechar, mas depois ouviu a opinião de um amigo e mudou de ideias. Amador? É a realidade. 

Hoje em dia usa-se muito a análise quantitativa. Qual é o peso dos números nas vossas observações?

Pedro Alves: Vou dar o exemplo do Quaresma para responder à pergunta. Ele tem cerca de 15 ações por jogo e 12 são individuais. Ele vai para cima e em 15 passa cinco e dá duas assistências e a equipa ganha 2-0. Mas perdeu 13 vezes a bola. Como scout o que prefiro? Ganhar com um jogador que arrisca ou ter um médio tipo Michael Thomas que só tocava para trás e tem 90 por cento de acerto de passe? Não sou nada, mas nada, a favor das estatísticas para perceber o acerto de passe. É bom para perceber o fator de rendimento, nada mais que isso.

José Boto: Há duas coisas que temos de perceber. Ao contrário dos outros desportos, o futebol deve ser o único em que podes perder mesmo tendo maior percentagem de posse de bola. Isso tem a ver com a imprevisibilidade do futebol, justificada pelo facto de ser jogado com os pés. As ações dos jogadores nunca são iguais por mais parecidas que sejam. São influenciadas até por fatores externos ao jogo.  Pergunto-te uma coisa: um passe de risco que rompe linhas feito um Benfica-FC Porto com 60 mil pessoas ao minuto 85, com a tua equipa a perder ou empatada, tem o mesmo valor do que um passe feito no campo do Real Massamá com 200 pessoas na bancada?

Não. Há fatores externos que podem condicionar a ação.

José Boto: Como é óbvio. Tens de perceber os números e olhá-los com cuidado. O Shakhtar está no top5 do Observatório do Futebol em quase todos os aspetos ofensivos. É bom, diz muito da forma como jogamos, mas é preciso ter atenção ao tipo de liga onde estamos. Nesta fase temos aproveitado para conseguir uma base de dados de treinadores que tenham um estilo de jogo parecido com o nosso. É impossível visualizares todo o mundo de treinadores. Começámos com um trabalho estatístico e o primeiro indicador foi equipas com mais de 55 por cento de posse de bola. Apareceram-me treinadores que eu pensei: 'Este?'. Isso ocorre porque estão inseridos em ligas muito fracas e estão em clubes de topo dessas mesmas ligas. Os números visto no futebol sem sensibilidade humana dizem-te coisas como esta: estás a ver o penálti que o Messi passou ao lado e o Suárez marcou? Na estatística apareceu que o Messi falhou o penálti. É um exemplo extremo mas ajuda a explicar. Desprezar os números? Não, podem fazer-me olhar com outra sensibilidade. Mas há outra questão.

Qual?

José Boto: Quando trabalhas com potencial, às vezes os números são falsos. Usas os números para veres o que se vai passar mais à frente. Vou dar o exemplo da pandemia que estamos a enfrentar: segundo algumas projeções, já nem estávamos aqui a conversar. É complicado usar números para fazeres projeções em qualquer área. Existem inúmeros fatores que te levam a corrigir o cálculo. Por exemplo, compras um lateral e os números dizem-te que ele tem 30 por cento de percentagem de cruzamento, o que é baixo. Depois observas e vês que ele não cruza bem por vários motivos ou então dizes: 'Este gajo nas mãos do Paulo Fonseca vai melhorar este aspeto'. Isso influencia muito as tuas decisões. Se atentares só aos números, vais tomar decisões que em futuramente podem não se revelar as melhores.


 

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