Conversa com Boto e Pedro Alves: o que é preciso para ser scout? - TVI

Conversa com Boto e Pedro Alves: o que é preciso para ser scout?

Parte I do diálogo com o chief-scout do Shakhtar Donetsk e com o antigo scout do Sp. Braga e atual diretor desportivo do Estoril

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O Maisfutebol juntou Pedro Alves (antigo scout do Sp. Braga e atual diretor desportivo do Estoril) e José Boto (que passou pelo Benfica antes de aceitar o convite do Shakhtar Donetsk para ser chief-scout) para falarem sobre scouting durante mais de duas horas. No entanto, o início da conversa teve como tema pratos favoritos e restaurantes na zona de Lisboa.

Por fim, entrámos no mundo do scouting: o que é preciso para ser scout, a falsa questão dos perfis de jogadores, a ligação entre a figura do diretor desportivo e o departamento de scouting, e algumas histórias incríveis. Episódios caricatos e relatos de contratações falhadas como foram as de Vinícius Júnior e Emre Mor para o Sp. Braga.

Sabe quando três pessoas se juntam para falar sobre o que gostam? Foi assim. O jornalista deixou a conversa fluir.

MF: Para introduzir o tema, faço uma pergunta que deve vos deve ser feita inúmeras vezes. O que é preciso para ser scout?

José Boto: Não há uma fórmula mágica. Quem faz este trabalho vem de diversas áreas: uns são treinadores, outros deixam de ser jogadores e passam diretamente para o scouting, outros não foram nem uma coisa nem outra. Não podes indicar um caminho às pessoas, mas há várias coisas fundamentais: conhecer o jogo, tão importante quanto conhecer o jogo é ter paixão e também conhecer o mercado. À partida, este trabalho parece muito giro, andamos sempre de um lado para o outro, mas muitas vezes não é fácil conciliar a família e ter uma vida normal.

Pedro Alves: O Boto tocou em fatores fundamentais. O amor pelo futebol, por exemplo, é fundamental. Tenho familiares que são muito apaixonados por futebol, conhecem tudo o que são jogadores e clubes, mas falta-lhes conhecimento do jogo. É fácil ver o Real-Barça e perceber que o Messi é o melhor. Difícil é ver um Oriental-Sacavenense e detetar um jogador para o Benfica. Os dois primeiros anos são muito bonitos. Depois chegas a uma altura em que a tua vida privada acabou: jantares, convívios… quantas vezes o Boto tem o fim de semana com a esposa ou com os filhos? Não tem porque quer estar no topo e isso dá muito trabalho. O que é preciso para ser scout tem muitas variáveis, mas não se explica.

Ambos tocaram num ponto: é preciso conhecer o jogo. Porém, não é preciso ser treinador para ser scout.

José Boto: Há scouts bons que nunca foram treinadores ou grandes jogadores. É impossível dizer qual é o caminho. Costumo dizer que existem três tipos de scouts: os que põem os jogadores todos, em algum hão de acertar; há os que não põem nenhum, porque não se querem queimar; e há os que metem a cabeça e é desses que gosto. Isso é fundamental nesta profissão. Quando trabalhas a este nível, é fácil deixares-te influenciar pelo que vem na imprensa. Acontece a muitos ler que o Barcelona quer um jogador e irem a correr fazer um relatório desse jogador. O que lhes digo é: ‘Gostas do jogador? Nunca o meteste aqui e agora estás a colocá-lo porque se está a falar dele?’. Nos 14 anos que levo disto, já tive discussões sobre jogadores com quem decide e eles dizem: ‘Mas o treinador X vai buscá-lo’. Tens de estar seguro da tua opinião, não é fácil seres confrontado com este tipo de coisas e dizeres: ‘Ele que vá. Para aqui não serve’.

Pedro Alves: O que o Boto está a dizer tem dois sentidos. O que é um scout? Tens de ter uma bagagem que não é só a visualização do jogo ao vivo ou no WyScout. Tem a ver com a informação. Um scout não vive só do que vê no jogo. Tem de saber quem é o agente do jogador, quanto é que este aufere, como se pode fazer o negócio. Tudo isto já entra nos relatórios. O Boto já contou isto e já aconteceu comigo. Por exemplo, um empresário diz que o negócio fica fechado por 20 milhões, mas o Boto, com a experiência que tem, diz que se fecha por dez. Hoje o scout profissional e de grandes clubes, é um informador com poder de decisão e capaz de meter-se no papel do treinador e do diretor desportivo.

Como se chega a esse nível de conhecimento que o Pedro falou?

Pedro Alves: Quando cheguei ao Sp. Braga observava jogadores a pensar no Benfica. Porquê? Estava num clube vencedor e não num clube vendedor. Quando observava um jogador para o Sp. Braga queria que esse jogador tivesse rendimento desportivo. Para o Sp. tem de render desportivamente e, mais tarde, tentar vendê-lo. Já o Estoril tem de detetar talento para tentar vender, mas acima de tudo, para subir de divisão. São contextos diferentes. Se me perguntares qual o melhor onze da Liga inglesa ou espanhola, não sei responder. Se me perguntares o melhor onze da II liga do Brasil ou da Argentina, eu digo-te. São os campeonatos onde posso chegar.

Qual o relacionamento entre a figura do diretor desportivo e os departamentos de scouting?

Pedro Alves: Quando cheguei, o Estoril era baseado em agentes da Traffic. Não havia organização nem projeção do ano seguinte. Quando trouxe o Flávio [atual chief-scout Famalicão], tinha uma relação com ele como a que adorava que tivessem tido comigo quando era scout. Porquê? Era ouvido, dava-lhe atenção. Ele à sexta ia ver um jogo da Liga, sábado ia aos sub-19 de manhã e à tarde ia ver a II Liga. Domingo de manhã ia ver os sub-17, à tarde o Campeonato de Portugal. Não podia chegar a segunda-feira, vê-lo e fazer de conta que nem o conheço. A relação que tenho com os scouts enquanto diretor desportivo é: eles são os meus chefes. O futebol é feito de relações. 

José Boto: Trabalhei no Benfica e trabalho no Shakhtar num regime presidencialista, em que tens de estar muito próximo do presidente. Hoje além de ser diretor de scouting, sou conselheiro do presidente, sou quase um diretor desportivo. O Pedro focou uma questão muito importante: as relações humanas. Se um scout meu vai passar três semanas fora e quando chega nem quero saber se está bem ou o que viu... As estruturas pequenas dão-te relação direta. O scout liga-te e diz: 'Vi um jogador que é top'. Se não sentir que eles estão apaixonados pelos jogadores nem os vou ver. No final do ano passado, estava em final de contrato [ndr: acabou por renovar por mais três anos] tive um convite de um grande clube da Premier League. Falo à vontade porque as pessoas do Shakhtar sabem. Fui falar com as pessoas desse clube e quando me disseram que tinham um departamento de scouting com 60 pessoas e outro de recrutamento com 57 pessoas, recusei. Disse que não conseguia trabalhar assim e que era uma estupidez. Não ia ter uma relação de proximidade com os scouts. As pessoas com quem falo  que trabalham nesses clubes queixam-se da falta de relacionamento. Quem faz pior scouting a nível europeu são os ingleses: porque têm muita gente a trabalhar e muito dinheiro para gastar.
 

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