«Relação degradada»: este é ainda o selecionador que Portugal precisa? - TVI

«Relação degradada»: este é ainda o selecionador que Portugal precisa?

Fernando Santos no Portugal-Sérvia (AP)

Análise à era de Fernando Santos na Seleção Nacional. Da lua-de-mel prolongada à crise existencial. Sintomas, reflexões e cenários lançados para o futuro. Com o historiador e investigador sobre o fenómeno do futebol, João Nuno Coelho

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A 23 de setembro de 2014, a FPF anunciou a escolha de Fernando Santos para o cargo de selecionador nacional. Saía Paulo Bento, massacrado por um Mundial 2014 de má memória, uma derrota humilhante em Aveiro contra a Albânia e uma série de problemas disciplinares com jogadores – Ricardo Carvalho, Bosingwa, Quaresma, Danny e Tiago.

Para tamanha balbúrdia, nada melhor do que um pacificador. Venerado na Grécia, respeitado no nosso país, Fernando Santos parecia desde o primeiro momento o exemplo perfeito de «homem certo no lugar correto».

Sete anos depois, com um Campeonato da Europa e uma Liga das Nações conquistadas, o treinador vive na seleção o momento mais delicado e de maior contestação popular. O empate em Dublin e a derrota contra a Sérvia, acompanhados de exibições confrangedoras, acionaram sinais de alarme.

O Maisfutebol carrega no travão e faz uma reflexão sobre o trabalho de Fernando Santos. Aqui não se fala de táticas, das escolhas mais ou menos acertadas, de ideias mais ou menos defensivas.

Através das palavras conhecedoras de um dos mais respeitados historiadores e investigadores sobre o fenómeno do futebol, procuramos dissecar uma ligação constituída por três partes:

Fernando Santos – os jogadores – os adeptos.

João Nuno Coelho, co-autor do obrigatório A Paixão do Povo – História do Futebol em Portugal, ensaia pensamentos que ajudam a desmontar esta ‘era Fernandina’, não fosse também ele um sociólogo renomado.

Fernando Santos em setembro de 2014, o dia 1 com a Seleção Nacional 

FASE 1: «We’ll Always Have Paris»

Teremos sempre Paris, isso é certo. Do primeiro jogo de Fernando Santos na seleção [11 de outubro de 2014, derrota por 2-1 contra a França em… Paris] até a final do Euro 2016 [10 de julho] são necessários menos de dois anos e 26 jogos.

É a fase de lua-de-mel perfeita, como indica João Nuno Coelho. O historiador amplia, de resto, esse primeiro ciclo até junho de 2019 e ao triunfo na Liga das Nações - «prova em que Portugal faz as melhores exibições do reinado de Fernando Santos».

«Eu dividiria o ciclo do Fernando em duas fases: antes de 2019 e depois de 2019. É verdade que fomos eliminados cedo no Mundial de 2018, mas até à final da Liga das Nações sente-se uma sensação de pertença com a seleção. É a partir do final de 2019 que isso muda», indica João Nuno Coelho, antes de aprofundar «esses sintomas».

Começámos a sentir que muitas coisas não estão bem. As conferências de imprensa do treinador, por exemplo, passam a ser penosas. Se é feita uma pergunta mais difícil, há uma arrogância inaceitável na resposta. Sabendo que o Fernando é um homem de bem, cordato e educado, há algo aqui que abre suspeitas de dificuldade na gestão da pressão».

«Paradoxalmente», continua João Nuno Coelho, é nesse período que aparecem com estabilidade na equipa os nomes de «João Cancelo, Bruno Fernandes e Bernardo Silva», gente de «indiscutível qualidade» e que só poderia ajudar ao «crescimento da qualidade da equipa».

«Aconteceu o oposto.»

Até essa fase, prossegue o sociólogo e investigador, pouco há a apontar ao trabalho do selecionador nacional.

«Há, aliás, coisas extremamente positivas, históricas. A começar pelos resultados. Estamos a falar de um selecionador que poucas vezes perdeu em jogos para competições oficiais [sete vezes] e isso funcionou sempre a favor dele junto da opinião pública. Com as ideias dele, mais ou menos atraentes, ganhámos duas competições.»

João Nuno Coelho conclui este primeiro ciclo com uma reflexão curiosa.

«O Fernando Santos é um homem consciencioso, sensato, não facilita nem contra a equipa mais fraca do mundo. Mantém sempre o ar sisudo, a postura fechada, mas o que parecia ser uma qualidade está a começar a virar-se contra ele.»

Fernando Santos na chegada a Portugal já como campeão da Europa

FASE 2: A derrota, essa grande chatice

Campeão da Europa em 2016, qualificação irrepreensível para o Mundial 2018 [nove vitórias e uma derrota na Suíça], chegada aos oitavos-de-final desse Campeonato do Mundo e conquista da primeira Liga das Nações. Cinco anos de um conto de fadas.

Depois, sublinha João Nuno Coelho, nada voltou a ser como dantes. A fase qualificadora para o Euro 2020 «já não é brilhante» - a derrota na Ucrânia foi o ponto mais baixo -, mas Portugal vai tendo «aqui e ali» amostras capazes de confirmar o «talento absurdo» ao dispor de Fernando Santos.

Basta lembrar a vitória por 4-2 na Sérvia na corrida para o Europeu ou os 4-1 aplicados à Croácia na Liga das Nações. Essa irregularidade foi-se acentuando e deu lugar a um Europeu de 2020 «abaixo do razoável» e a três meses com «grandes problemas» logo a seguir.

«O Fernando não lida bem com a pressão da derrota. Basta olhar para a forma como trata os jornalistas. Estamos a falar de um homem muito correto, honesto, cordial e que, de repente, começa a mostrar-se enervado, chateado, com um ar de quem está a fazer um frete quando fala com os Media», adverte João Nuno Coelho, capaz de identificar problemas ainda mais graves.

Vejo o Bruno Fernandes e o João Félix a entrarem em campo e a postura deles evidencia uma desunião preocupante no grupo. A forma como o Félix entrou contra a Sérvia é incompreensível e mesmo o Bruno aparentou não estar com a cabeça no lugar. Vi displicência em vários momentos e o segundo golo não pode acontecer nem nos distritais.»

A organização defensiva, «outrora uma das virtudes da equipa», é agora «inexistente». Tal como «a força nas bolas paradas».

A sentença é dura: «O Fernando perdeu a mão no grupo. E não é fácil tê-la, convenhamos. Estamos a falar de jogadores titulares de algumas das melhores equipas do mundo, que chegam à seleção e ficam no banco. Estamos a falar de gente com capacidade para liderar e que não parece aceitar um papel subalterno. Isso fragiliza e desgasta a liderança do treinador.»

A vitória sobre a Rep. Irlanda no Algarve, com dois golos de Ronaldo nos descontos, o empate anémico contra essa mesma Irlanda em Dublin e a derrota contra a Sérvia são «os pontos mais baixos» do passado recente.

E provas de «uma separação inconsciente» entre treinador e grupo.

O selecionador durante o traumatizante jogo contra a Sérvia

FASE 3: Futuro imediato? Tem de ser com Fernando Santos

Faltam quatro meses para um play-off «de grande exigência» e a sensatez aconselha à manutenção da atual equipa técnica. Isto, aceita João Nuno Coelho, apesar de uma «evidente degradação» na relação tripartida: treinador, futebolistas, adeptos.

«A relação está muito degradada, sim. Ninguém, no seu juízo perfeito, pode achar que é bom trocar de selecionador a quatro meses de um play-off decisivo, mas a médio prazo [depois do Mundial] tem o lugar claramente em risco.»

João Nuno Coelho pede para não olharmos «apenas para a última semana», mas para sintomas que se têm vindo a «disseminar no microrganismo da seleção».

É fácil dizer mal agora, mas os sintomas estavam presentes há anos. E isto é o culminar destes sintomas. E nem vou entrar nas questões táticas, pois isso daria mais um artigo. Refiro apenas que a falta de identidade, de ideias e de princípios de jogo são demasiado evidentes.»

«Uma grande equipa tem de ter uma identidade vincada», assinala João Nuno Coelho. «Nem que isso seja entregar a bola e jogar em transições. Não percebemos o que esta equipa de Portugal quer do jogo. Vi o Bernardo a tentar uma coisa e a equipa a tentar outra. É doloroso falar sobre isto nesta fase.»

Apesar de assumir simpatia e admiração pelo treinador, João Nuno Coelho não tem dúvidas de que esta derrota contra a Sérvia simboliza «a queda de Fernando Santos».

«Mesmo que ele continue – e eu acho que ele tem de continuar -, a forma como ele é olhado pelos portugueses deixa de ser globalmente positiva. E vem aí um play-off de grande exigência, com seleções fortes. A não qualificação direta para o Qatar foi um choque.»

Sem querer apontar a um horizonte mais largo, João Nuno Coelho apenas deixa uma mensagem positiva e acredita que Portugal vá estar no sexto Mundial consecutivo.

«Falhar o último Mundial de Ronaldo seria péssimo. Pode ser que a FIFA, sabendo disso, nos dê uma pequena ajuda», graceja o investigador portuense, certo de que ocorra o que ocorrer, Fernando Santos já tem «um lugar de destaque na história da Seleção Nacional».

Os dados dão-lhe toda a razão.

LISTA DE TODOS OS SELECIONADORES DE PORTUGAL:

COMITÉ DA SELECÇÃO (1921/22): Carlos Vilar, Pedro Del Negro, Reis Gonçalves, Virgílio Paula, Plácido Duro e Júlio de Araújo
1 jogo: 1 derrota (1-3 em golos)

COMITÉ DA SELECÇÃO (1922/23): Reis Gonçalves, José Pereira Júnior, Joaquim Narciso Freire, Guilherme Augusto Alves de Sousa e Raúl Nunes
1 jogo: 1 derrota (1-2)

COMITÉ DA SELECÇÃO (1923/25): Virgílio Paula, Ribeiro dos Reis e Raúl Nunes
1 jogo: 1 derrota (0-3)

RIBEIRO DOS REIS (1925/26 e 1934)
6 jogos: 1 vitória, 1 derrota e 4 derrotas (5-18)

CÂNDIDO DE OLIVEIRA (1926/29, 1935/45 e 1952)
31 jogos: 8 vitórias, 9 empates e 14 derrotas (49-61)

MAIA LOUREIRO (1929)
1 jogo: 1 derrota (1-6)

LAURINDO GRIJÓ (1930)
4 jogos: 2 vitórias e 2 derrotas (4-3)

TAVARES DA SILVA (1931, 1945/47, 1951 e 1955/57)
30 jogos: 10 vitórias, 4 empates e 16 derrotas (47-65)

SALVADOR DO CARMO (1932/33, 1950 e 1953/54)
12 jogos: 3 vitórias, 4 empates e 5 derrotas (17-32)

VIRGÍLIO PAULA (1947/48)
3 jogos: 1 vitória e 2 derrotas (4-6)

ARMANDO SAMPAIO (1949)
4 jogos: 1 vitória, 1 empate e 2 derrotas (5-8)

FERNANDO VAZ (1954)
1 jogo: 1 derrota (0-3)

JOSÉ MARIA ANTUNES (1957/60, 1962/64 e 1968/69)
31 jogos: 9 vitórias, 4 empates e 18 derrotas (40-59)

ARMANDO FERREIRA (1961 e 1962)
6 jogos: 1 vitória, 1 derrota e quatro empates (9-8)

FERNANDO PEYROTEO (1961)
2 jogos: 2 derrotas (2-6)

MANUEL DA LUZ AFONSO (1964/66)
20 jogos: 15 vitórias, 2 empates e 3 derrotas (41-16)

JOSÉ GOMES DA SILVA (1967 e 1970/71)
13 jogos: 5 vitórias, 4 empates e 4 derrotas (17-13)

JOSÉ AUGUSTO (1972/73)
15 jogos: 9 vitórias, 4 empates e 2 derrotas (29-12)

JOSÉ MARIA PEDROTO (1974/76)
16 jogos: 6 vitórias, 4 empates e 6 derrotas (14-20)

JÚLIO CERNADAS PEREIRA «JUCA» (1977/78, 1980/82 e 1987/89)
40 jogos: 17 vitórias, 9 empates e 14 derrotas(53-52)

MÁRIO WILSON (1978/1980)
10 jogos: 5 vitórias, 2 empates e 3 derrotas (12-12)

OTTO GLÓRIA (1982/83)
7 jogos: 3 vitórias, 1 empate e 3 derrotas (5-12)

FERNANDO CABRITA (1983/84)
9 jogos: 5 vitórias, 2 empates e 2 derrotas (15-8)

JOSÉ TORRES (1984/86)
17 jogos: 8 vitórias, 1 empate e 8 derrotas (21-23)

RUY SEABRA (1986/87)
6 jogos: 1 vitória, 4 empates e 1 derrota(6-6)

ARTUR JORGE (1990/91 e 1996/97)
20 jogos: 9 vitórias, 8 empates e 3 derrotas (24-11)

CARLOS QUEIROZ (1991/93 e 2008/10)
51 jogos: 25 vitórias, 17 empates e 9 derrotas (79-32)

«NELO» VINGADA (1994)
2 jogos: 2 empates (2-2)

ANTÓNIO OLIVEIRA (1994/96 e 2000/02)
44 jogos: 26 vitórias, 10 empates e 8 derrotas (102-40)

HUMBERTO COELHO (1998/2000)
24 jogos: 16 vitórias, 4 empates e 4 derrotas (56-16)

AGOSTINHO OLIVEIRA (2002)
4 jogos: 2 vitórias e 2 empates (7-4)

LUIZ FELIPE SCOLARI (2003/08)
74 jogos: 42 vitórias, 18 empates e 14 derrotas (144-62)

PAULO BENTO (2010/14)
47 jogos: 26 vitórias, 12 empates e 9 derrotas (91-49)

FERNANDO SANTOS (2014)
95 jogos: 58 vitórias, 21 empates e 15 derrotas (194-71)

(artigo originalmente publicado às 23h52 de 15-11-2021)

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