A história do português que foi para a Rússia atrás do amor (e não voltou) - TVI

A história do português que foi para a Rússia atrás do amor (e não voltou)

João João

João João vive há quase duas décadas em Moscovo. Em conversa com o Maisfutebol conta como já foi Joe, como entrou no país com uma certidão de nascimento falsa e como se integrou num país que adora.

Chama-se João João, tem 42 anos e vive há praticamente duas décadas na Rússia. Foi levado para Moscovo por uma história de amor e acabou por se apaixonar pelo país dos sovietes.

Nunca mais voltou.

«Vim para Moscovo em 1998 atrás da minha ex-mulher e acabei por ficar. Conheci-a em França, ela tinha que voltar para acabar os estudos, faltava-lhe um ano. Eu tinha que voltar para Portugal para acabar a minha pós-graduação, mas não o fiz na altura. Larguei tudo e vim atrás dela.»

A história de amor com a ex-mulher acabou poucos anos depois, a história de amor com a Rússia vive até hoje. Afinal de contas são assim as relações, quando olhamos o mundo de coração aberto.

«Vivemos aqui um ano e depois seguimos para França, onde vivemos três anos. Mas eu sempre quis voltar à Rússia. A minha ex-mulher quis ir para a Suíça e eu vim para cá.»

Nesta altura vale a pena recordar a história de Teixeira de Pascoaes. Um dia cruzou-se com uma inglesa e acho que era amor. Abandonou tudo e meteu-se num barco para ir atrás dela. Quando chegou a Liverpool percebeu que a mulher não era o que ele tinha imaginado. Voltou para Portugal.

A história de João João não é igual, mas tem semelhanças. A maior diferença é que nunca voltou.

«Quando saí para ir para França, já sabia que queria voltar e queria ser leitor do Instituto Camões. Isso não se proporcionou num primeiro momento, por isso estive a dar aulas de francês, mas quando abriu uma vaga, eu fiz as malas e fui para Lisboa fazer as provas. Correu bem.»

Hoje é de facto leitor do Instituto Camões e vive em Moscovo há duas décadas. Chegou sem saber uma palavra de russo, entretanto aprendeu e agora domina completamente a língua.

Vive integrado na sociedade local e diz que vive feliz.

«Gosto da Rússia pelo clima, gosto das estações muito marcadas, coisa que falta em Santarém, onde vivia. Gosto da floresta muito densa. Gosto do facto de as pessoas serem muito reservadas, mas muito dadas. Um pouco como os portugueses», conta.

«Acho que nós somos muito diferentes dos nossos vizinhos espanhóis, por exemplo. Mas somos parecidos com os russos. Eles também são melancólicos, mas muito, muito generosos. Quando se entra no íntimo deles, eles dão-nos tudo e ficam amigos para a vida.»

Hoje, como já se disse, trabalha no Instituto Camões. Dá aulas de português e de língua e cultura portuguesa em duas universidades de Moscovo e também duas universidades de São Petersburgo.

Mas nem sempre foi assim. João João teve de se adaptar à Rússia e passar por muito.

«Já vive muitas situações caricatas, mas não me arrependo disso. Por exemplo, quando cheguei estive a dar aulas de francês, depois disso acabou e fiquei sem nada. Precisava de alguma coisa e apareceu a British Council School. Fui contratado para dar aulas de inglês a russo», refere.

«No meu primeiro dia de trabalho, antes de entrar na aula, a diretora veio dizer-me que eu não era João nem vinha de Portugal, mas antes Joe e vinha de Londres. Isto porque tinha de ser nativo para dar aulas no British Council. Durante dez meses fui o Joe, natural de Londres. Era um esquema algo Pessoano. Entrava na escola era o Joe, de Londres, saía da escola era o João, de Portugal.»

Para quem vive em Portugal há esquemas que podem parecer estranhos, mas na Rússia é normal: as pessoas têm de se adaptar a tudo, sobretudo ao jeitinho russo de se desenrascarem.

«Aqui o estado de previdência não existe. Por isso é preciso algum jogo de cintura. Esse foi um dos esquemas, mas tive outros. Tinha um cartão jovem de um russo com a minha fotografia para pagar o preço mínimo nos transportes e para ir a eventos culturais de graça, por exemplo. Cheguei a ter um cartão de estudante que pertencera ao meu ex-sogro», acrescenta.

«Uma vez fui interpelado pela polícia e na esquadra cheguei a estar em maus lençóis por causa desse cartão. Na altura o que me valeu foi a minha ex-mulher que puxou de uma nota e me tirou de lá. Cheguei a entrar na Rússia, numa altura em que ainda não tinha visto, com a certidão de nascimento do meu ex-cunhado, que aqui é válida para viajar e não tem fotografia.»

Na Rússia há que se russo, e João João habituou-se a ser russo. Passou por momentos difíceis, mas entretanto soube dar a volta à situação. Hoje não tem razões de queixas.

«Lembro-me que no British Council o ordenado era muito, muito baixo. Eles não arranjariam um britânico para dar aulas por aquele valor. Eram 50 rublos por aula, o que dava 80 cêntimos. Depois comecei a dar aulas no Instituto Superior de Línguas Estrangeiras, dava espanhol e uma cadeira teórica de língua francesa, e aí ganhava quase dois euros por aula», recorda.

«No fim do mês, e com mais uma ou outra aula particular, fazia 1595 rublos, o que é o equivalente a pouco mais de vinte euros.»

E como se vive com vinte euros por mês? João João diz que se vivia a contar todos os cêntimos. Até porque no final dos anos noventa na Rússia havia muita gente a viver realmente mal.

«No início alugámos um apartamento que pertencera a um pintor de nome Kashtrov, que morrera no apartamento no mesmo dia em que também morreu a mulher dele. O apartamento ficou com as coisas deles e tinha uma aura muito tenebrosa. Mas com a inflação o preço triplicou e tivemos que sair. Alugámos um quarto na outra ponta da cidade na casa de uma senhora, por 500 rublos por mês, o que dá ao câmbio de hoje qualquer coisa como 8 euros.»

Hoje vive num complexo construído para funcionários da diplomacia, com uma excelente vista sobre Moscovo. Vive bem. Para isso, porém, foi fundamental aprender russo.

«Quando cheguei não falava nada. Os primeiros tempos foram muito complicados. Na altura havia menos abertura a línguas estrangeiras do que agora, só sabia línguas quem tinha de saber para trabalhar. Sentia um desconforto, sentia que o relacionamento com as pessoas era diferente.»

João João conta até que já lhe aconteceu ir a falar português com conterrâneos no metro e alguém se insurgir com eles, considerando que é uma falta de respeito falar línguas estrangeiras na Rússia.

«Tive de aprender e comecei a fazê-lo na base de decorar vocabulário. Por exemplo, quando ia às compras, memorizava o nome dos produtos e no caminho até à loja repetia, repetia, repetia.»

Nestas quase duas décadas de vida na Rússia, João João viu o país mudar muito. Viveu a abertura ao ocidente, passou pela crise da inflação, acompanhou a estabilização económica com Puttin.

«Que Rússia o Mundial vai encontrar? É uma Rússia limpa, com muitos melhoramentos em termos de infraestruturas. É uma Rússia com muita vontade de receber esta multidão que vem do mundo inteiro, até porque desde os Jogos Olímpicos de 80 que não há um evento desta natureza», diz.

«Nota-se que os russos estão com vontade de sorrir para as pessoas. E depois, claro, há vontade das autoridades de que corra bem, até para aliviar as tensões com o resto do mundo. Acho que o Mundial é uma boa oportunidade para a Rússia se abrir ao mundo.»

João João diz que no final de contas a Rússia só tem um grande problema: ser tão longe de Portugal.

«De vez em quando tenho saudades. Sobretudo da família, e dos meus pais, que estão a caminhar para a velhice e precisam mais de mim. Mas também tenho saudades do nosso bacalhau, aqui o bacalhau é fresco e é um peixe pouco nobre», sublinha.

«Sinto saudades de pequenas coisas. De beber água da torneira, o que aqui não é recomendável. Por isso quando chego a Portugal adoro meter-me debaixo da torneira e beber, beber, beber.

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