“Os meus pais não acreditaram em mim. Diziam que eu era uma criança ‘estragada’” - TVI

“Os meus pais não acreditaram em mim. Diziam que eu era uma criança ‘estragada’”

‘Pedro’ viveu mais de 40 anos atormentado com os traumas provocados pelos abusos sexuais de que foi vítima entre os cinco e os 15 anos. Só há dois anos foi capaz de pedir ajuda

Havia festa na aldeia. ‘Pedro’ (nome fictício) estava de férias na terra da família. Tinha cinco anos quando começou um pesadelo que o atormentou durante mais de 40 anos. Enquanto da rua chegavam os sons do estalar dos foguetes, da música do baile e das vozes alegres do povo em festa, ‘Pedro’ foi abusado sexualmente durante dias por dois familiares próximos.

Como eu tinha cinco anos, tinha de ir para a cama muito cedo e houve um familiar que me levou, supostamente para me acalmar, por causa do barulho da festa. Nessa altura, fui completamente manipulado por ele e deu-se o primeiro abuso. (…) Nós ficámos mais uns dias nessa localidade e acabou por haver outro abusador. Os dois em simultâneo”, contou à TVI24, numa entrevista realizada por Zoom.

'Pedro' foi um dos mais de 370 homens que pediram ajuda à Associação Quebrao o Silêncio, que apoia vítimas masculinas de abuso sexual. Só em 2020, a Quebrar o Silêncio recebeu 120 pedidos de ajuda. São 12 homens por mês a pedir socorro para ultrapassar um passado ou um presente que os atormenta. Dados a que a TVI teve acesso em primeira mão. 

Agora, ‘Pedro’ está em processo de cicatrização emocional e é capaz de falar abertamente sobre o que lhe aconteceu. Só pede ocultação da identidade, garante, porque quer proteger a mulher e, sobretudo, a filha, ainda criança.

A criança “estragada”

Filho único, de um casal humilde, 'Pedro' vivia numa casa modesta na Grande Lisboa.

Quando as férias na aldeia terminaram, voltou para a capital com os pais. Mas os abusos não ficaram para trás. Como numa espécie de partida pregada pelo destino, um dos abusadores veio para a capital, à procura de melhores condições de vida. Ficou alojado em casa dos pais de ‘Pedro’ e passou a partilhar o quarto com ele.

VEJA TAMBÉM:

O pesadelo, que a criança achava ter terminado, só se adensou. Tinha medo da noite que chegava. Tinha medo de ir dormir. Tanto medo que começou a ter desmaios após o jantar.

Eles diziam-me que estava tudo bem. Mas era evidente que era extremamente desagradável, desde a dor à forma como eles escondiam aquilo. Pareceu-me mal. Só que a manipulação do abusador não tem limites. Começou com ameaças, que contavam aos meus pais, contavam aos meus amigos… fazia parte da manipulação deles. Eu sabia que estava mal. (…) Contei aos meus pais e ninguém acreditava e eu fiquei sem saída.”

Para os pais de ‘Pedro’, o familiar era impoluto, sem mácula, incapaz de fazer tal atrocidade. Já ‘Pedro’ era uma criança introvertida, diferente das outras, a quem chamavam de “estragada”. “Diziam que uma pessoa como ele... como é que era possível? Aquilo eram tudo invenções da minha cabeça”, conta, ainda com mágoa.

“Decidi que mais ninguém me havia de tocar”

‘Pedro’ não condena os pais: “Era a formação que tinham”. Mas a falta de acolhimento por parte de quem tinha o dever de o proteger destroçou-lhe a pouca autoestima e abriu portas a novos abusos, que escondeu, sempre, de uma forma cada vez mais profunda.

Era uma prima minha que eu adorava na altura. Eu tinha uns 13 anos e, numa dessas deslocações à terra, ela abusou de mim. Depois foi um colega de trabalho, porque eu comecei a trabalhar muito cedo, os meus pais tiraram-me da escola com 12 anos e eu comecei a trabalhar nessa altura. Fui abusado por duas mulheres e um homem no meu local de trabalho.”

Até que ‘Pedro’ disse “basta”: “Aos 15 anos, decidi que mais ninguém me ia tocar. Aprendi a lutar. A última tentativa de abuso, parti o braço ao agressor.”

Foi a última vez que o seu corpo foi violentado. Mas a alma, essa, tinha feridas abertas, em carne viva. Refugiou-se no desporto, mas não foi suficiente. Veio o trabalho nos estabelecimentos noturnos. Vieram as drogas e o álcool.

Eu tinha de apagar. Quando chegava a casa sozinho, não conseguia estar dentro da minha cabeça. Era demais para mim. Então usei álcool e drogas, porque eu tinha de apagar aquilo da minha cabeça. Eu saía da noite ileso, mas quando chegava a casa, tinha de apagar. Porque sozinho não conseguia viver com aquilo.”

A ‘Inês’ que salvou ‘Pedro’ da “sua cabeça”

‘Pedro’ passou por várias relações. Todas prejudicadas pelo passado que teimava em atormentar-lhe o presente.

Eu nunca fui muito correto com as outras pessoas, porque o amor não era recíproco. As pessoas podiam gostar de mim de uma forma, mas eu não conseguia sentir esse amor da mesma forma que elas sentiam. E como eu era uma pessoa que me tornei mais dura e mais fria, havia uma grande discrepância na relação. (…) Atrevo-me a dizer que era até se calhar mau e demasiado duro para essas pessoas.”

Também ‘Inês’, com quem vive uma relação há 10 anos, chegou a sentir os efeitos dessa dor. Como é que amava tanto aquele homem e não lhe era “suficiente”? Foram oito anos de tortura. Até que ‘Pedro’ resolveu contar-lhe parte da história.

Acho que foi um alívio, por mais estranho que pareça. Havia uma razão. Durante o tempo que estávamos juntos, eu sentia que o Pedro não estava a 100%. (…) Eu não conseguia entender porque é que eu não chegava, não era suficiente para ele se sentir bem. Quando finalmente eu soube a razão, tornou-se mais fácil entender o problema, a dor e ajudá-lo. Foi bom saber que havia uma razão concreta, que não tinha exatamente a ver com a nossa relação, nem com aquilo que sentíamos um pelo outro. Que era algo externo, mau, terrível, que lhe tinha acontecido, mas que havia forma de estarmos juntos, bem, a 100%”, confessa ‘Inês’.

Foi ela quem o incentivou a pedir ajuda. Foi ela quem o conduziu até à Quebrar o Silêncio. Sabia que o fardo era demasiado pesado para carregarem sozinhos e era necessária “ajuda externa”, “de quem sabe”.

O email que ficou um mês guardado nos rascunhos

‘Pedro’ escreveu um email a contar a sua história. Demorou um mês a enviá-lo à Associação Quebrar o Silêncio. Um mês inteiro em que imperou o medo, o ceticismo, a dúvida.

Eu nunca tinha dito nada disto a ninguém. Andei uma vida inteira a lutar e a criar um personagem para que ninguém soubesse e, de repente, estou a fazer um email para mandar a desconhecidos. (…) E um dia carreguei na tecla do “enter” e o mail foi. Pior do que isso: a Quebrar o Silêncio, o Ângelo, respondeu-me um dia depois. O pânico aumentou totalmente.”

Não dormiu nos dias que mediaram a resposta de Ângelo Fernandes, diretor da Quebrar o Silêncio, e um encontro marcado para falarem pessoalmente. “A viagem que fiz até à associação pareceu-me uma viagem até ao Algarve”, revela.

Mas foi. Recebeu ajuda e acompanhamento dos técnicos da associação que, há quatro anos, ajuda homens e rapazes vítimas de abuso sexual. Assegura que foi o melhor que fez por si: “Hoje consigo viver. Consigo ser pai.”

A ferida tornou-se cicatriz

Com um sentido de humor refinado e apurado confessa que até já permite que a filha se afaste dele “uns 10 metros”. ‘Inês’ contraria: “meio metro, vá…”.

Agora ‘Pedro’ é feliz. Já não precisa do humor sarcástico para dar vida à personagem que criou e esconder dos outros a infância que lhe estragaram. Agora “é um humor saudável”. Não está curado, mas já não tem as feridas em carne viva. “Não quer dizer, e isto que fique bem claro para os sobreviventes, que o problema desaparece. Deixa é de ser uma ferida e passa a ser uma cicatriz. E é bom que não desapareça e que nós possamos olhar para essa cicatriz para nos lembrarmos que conseguimos sarar as feridas”, alerta.

Ainda se cruza com os agressores. Recentemente esteve frente a frente com eles no funeral da mãe. Não tem nada para lhes dizer: “Não vale a pena. Eles nunca iam compreender o mal que me fizeram e a maior vitória foi minha, que consegui vencer.”

‘Pedro’ e ‘Inês’ contam a sua história com um único propósito: “Se o meu testemunho levar um só homem a pedir ajuda, já valeu a pena.”

Um dia, quando a filha tiver idade para saber toda a história por eles, prometem mostrar o rosto e revelar os nomes verdadeiros. “Para mostrar que vale a pena pedir ajuda”, sublinha ‘Inês’.

Continue a ler esta notícia

EM DESTAQUE