"Se um rapaz é abusado por uma mulher não é vítima. Teve sorte" - TVI

"Se um rapaz é abusado por uma mulher não é vítima. Teve sorte"

É um dos mitos que a Associação Quebrar o Silêncio tenta combater há três anos. Tantos quantos tem de existência. A associação nasceu para ajudar homens vítimas de abusos sexuais. Já deu apoio a 251. Só em 2019, quase uma centena pediu-lhes ajuda

“Chamo-me Miguel, tenho 50 anos e sou um sobrevivente.”

Miguel faz questão de usar o nome verdadeiro para relatar a viagem que iniciou há um ano, “em direção à paz”. Foi só nessa altura que resolveu pedir ajuda para ultrapassar um fantasma que o assombrava há anos.

Tem 50 anos. “O primeiro abuso deu-se quando eu era muito novo, tão novo que não me lembro da idade, mas estava naquela idade em que as crianças têm que se deitar cedo. Estava numa pequena aldeia, onde havia por essa altura uma festa. Quando lançaram os foguetes eu comecei a chorar com medo e assustado. Por isso um primo meu, na altura adolescente, foi deitar-se comigo, segundo ele para eu não ter medo. Passado poucos minutos fui completamente maniatado por ele, a partir daí só sentia dor que contrastava com a voz calma dele a dizer que não fazia mal, que estava tudo bem”, conta, num testemunho divulgado na página da Associação Quebrar o Silêncio.

“Se era normal porque é que doía ao ponto de me fazer chorar? Não me lembro quantos dias permaneci com os meus pais na aldeia. Mas a partir daí, ele e outro primo meu todos os dias me faziam a mesma coisa. Por fim lá foram dizendo que se contasse a alguém, eles diziam que tinha sido eu a pedir, e que os meus pais iam ficar muito zangados comigo. (…) Pouco tempo depois um desses primos foi viver a convite dos meus pais, para nossa casa. Escusado será dizer o que veio a acontecer todas as noites. Com a agravante que quando o outro primo nos ia visitar eles revezavam-se. Aí a chantagem mudou, diziam que contariam a todos os meus amigos se eu não deixasse.”

Miguel diz que tinha tanto medo que, quando anoitecia chegava a desmaiar. Tentou contar aos pais, mas era repreendido por eles cada vez que tentava: “Era impossível tão boa pessoa fazer-me mal.”

Miguel corresponde ao perfil que é possível traçar das vítimas que pedem ajuda à Quebrar o Silêncio: foi vítima de abusos várias vezes, durante um largo período de tempo e por várias pessoas.

Além dos dois primos rapazes, também outra prima e, quando já tinha 12 anos, duas mulheres com quem trabalhava abusaram dele. Acreditou no que lhe diziam: a culpa era dele.

Hoje, Miguel tem uma filha e está a libertar-se do passado. Mas, até há bem pouco tempo, ele perseguiu-o e arrastou-o para um passado de drogas, álcool e autodestruição.

Oito pedidos de ajuda por mês

Miguel é um dos 251 homens que já pediu ajuda à Quebrar o Silêncio. Só em 2019, a Associação ajudou 99 homens e 75 familiares ou amigos de vítimas.

A maior parte dos homens que nos procuram o abuso ocorreu há 20, 30, 40 anos. E é importante perceber que este trauma continua presente. O impacto e a consequência na sua vida continua presente. (…) Às vezes perguntam-nos “vale a pena mexer no passado, remexer numa coisa que está tão distante?". Mas a verdade é que não está tão distante assim. Porque se estivesse distante e arrumado não lhes estaria a afetar tanto a vida atualmente”, revelou Ângelo Fernandes, fundador da associação, numa entrevista à TVI.

A grande maioria dos pedidos de ajuda (64%) chega por escrito, através de email, redes sociais ou do formulário disponibilizado na página da associação. O tempo para ponderar ajuda à tomada de coragem para dar o primeiro passo.

Por cada homem que nos procura, quantos homens continuam silenciados. Tem sido um número para nós crescente, mas também sabemos que há muitos homens que ainda não se sentem seguros ou não se sentem com força para procurar apoio, porque nós vivemos numa sociedade que não é recetiva à ideia que o homem também pode ser vítima de violência sexual”, defendeu Ângelo Fernandes.

Além do peso da violência e dos abusos, estes homens têm de carregar o peso dos mitos que a sociedade lhes impõe.

“O maior mito é realmente que os homens e os rapazes não podem ser de todo vítimas de violência sexual. Esta é a grande ideia errada e nós temos, cada vez mais de trabalhar para informar as pessoas que um em cada seis homens é vítima de alguma forma de violência sexual. (…) A maior parte dos casos o abusador conhece a vítima e mantém uma relação de proximidade. A maior parte dos casos ocorre dentro da própria família. Temos de começar a perceber que os abusadores são conhecidos das vítimas”, alertou o responsável.

Se um rapaz ou um homem for abusado por uma mulher, não é a maior parte dos casos, mas também acontece, nem sequer é abuso. A vítima teve sorte.”

Não, não teve sorte. E este é mais um mito a combater.

Cada história que é contada traz coragem para outras vítimas e esperança no futuro para outras tantas. “É possível recuperar do trauma. Ultrapassar o trauma e conseguir ter então uma vida que não é mais afetada pelo trauma da violência sexual”, sublinha Ângelo Fernandes.

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