Cabul, “primeiro estranha-se, depois entranha-se” nos militares portugueses - TVI

Cabul, “primeiro estranha-se, depois entranha-se” nos militares portugueses

  • BC
  • 24 dez 2019, 10:12

Contingente português em Cabul, no Afeganistão, tem por missão fazer proteção ao aeroporto Hamid Karzai

“Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, a frase publicitária de Fernando Pessoa sobre a Coca-Cola, tornou-se numa espécie de divisa dos militares portugueses no Afeganistão, mas aplicada ao frio, à poluição, ao cheiro a fumo em ambiente de “guerra”.

O primeiro impacto à chegada, em Cabul, à base da NATO da missão Resolute Solution (RS) no aeroporto Hamid Karzai, ou HKAIA – os militares utilizam muito as siglas para comunicar –, pode resumir-se no movimento quase incessante nas ruas e no cheiro. Um cheio intenso a fumo que se entranha no nariz e nas roupas.

É a poluição causada pela queima de madeira e tudo o que arda, de plástico a lixo, para aquecer as casas na capital afegã e em redor. Estima-se que vivam na zona, encravada nas montanhas, a 1.900 metros de altitude, entre cinco a sete milhões de pessoas, muitas em condições precárias, sem luz, sem saneamento, sem aquecimento.

O sargento Vitor Pereira, na sua segunda missão em Cabul, explicou à Lusa como se ambientam os soldados, fazendo uma adaptação militar ao ‘slogan’ de Fernando Pessoa e que é também usado em conversas com outros membros do contingente português.

Existem três fases. Primeiro estranha-se, depois entranha-se e, por fim, conseguimos viver normalmente. O início é muito complicado: o ambiente, o ar. Depois conseguimos viver o nosso dia-a-dia e cumprir as nossas funções sem qualquer dificuldade”, descreveu.

Uma das mulheres - há 15 no grupo de 213 militares -, a sargento de informações Lígia Rocha, já é a segunda vez que está num “teatro de operações”. E, por isso, encarou a adaptação “com normalidade”, embora o pior seja mesmo as saudades da família.

A vida do dia-a-dia, de segunda a domingo, é feita de incertezas e tensão e as missões estão definidas.

O contingente português em Cabul, a quarta rotação de seis meses da força nacional destacada, tem por missão, desde novembro, fazer a proteção ao aeroporto Hamid Karzai, na capital do Afeganistão, através de uma força de reação rápida. E até a segurança de visitas VIP à base, como aconteceu com o Presidente português, no domingo.

Paralelamente, na parte da capacitação, como lhe chamam os militares, há portugueses a dar formação aos afegãos, na escola de forças especiais e de artilharia.

São também portugueses a fazer a vigilância de torres para controlar movimentos da pista do aeroporto para a zona da base militar, em três turnos de oito horas cada – dois soldados de cada vez.

E se na base entram semanalmente 1.000 a 1.500 pessoas, na sua maioria militares das mais de 20 nações da RS, é por soldados e oficiais que são recebidos e controlados no PRC (acrónimo de centro de receção de pessoal, Personal Reception Center, em inglês).

Na descrição de um oficial, esta e outras missões de responsabilidades do contingente português são uma forma de soldados e oficiais jogarem na “primeira divisão” e verem como e o que fazem as forças armadas dos Estados Unidos, Alemanha ou Reino Unido.

A missão da RS, sublinhou um oficial português à Lusa, não é de “bota no chão”, ou combate aos talibãs e outros grupos “insurgentes” – esse é feito pelos afegãos e pelas tropas dos Estados Unidos que não estão naquela base –, mas sim de suporte à estabilização do país.

As saídas “à cidade” em dia de folga não existem e outras são raras. Na descrição feita à Lusa por militares destacados, isso só acontece quando algum oficial tem reuniões “fora” ou há necessidade de escoltar uma comitiva. Como acontece com os oficiais a dar formação às forças afegãs.

Quando as estradas estão “negras” – o nível de ameaça é grande - a saída ou é cancelada ou o transporte é feito por helicóptero, uma espécie de “táxi” aéreo entre bases. E há mais bases em Baghram e Kandahar, antigo refúgio de Osama Bin Laden, líder da Al Qaeda, morto em 2011 pelos Estados Unidos, no Paquistão.

O perigo espreita lá fora. Mesmo os blindados com a bandeira de Portugal - um país que não é um alvo tão visado pelos “insurgentes”, como acontece com os Estados Unidos - quando saem da base, são, por vezes, apedrejados ao passar na rua, afirmam militares portugueses ouvidos pela Lusa na base.

Mas a missão dos portugueses é, essencialmente, na base de HKAIA. Os turnos são de oito horas, com poucos dias de descanso, quase sempre passados no mesmo local.

E aí, nas horas de descontração, a rotina pode passar pelo ginásio, uma enorme tenda com ar condicionado onde há máquinas de corrida para evitar exercício no exterior devido à poluição.

Há um mercado de produtos afegãos, um McDonald’s, pizzaria, um restaurante libanês, joalharias, lojas de produtos militares, cabeleireiro de homens e mulheres. Ou a Casa de Portugal, onde é possível beber uma “bica”.

Continue a ler esta notícia