Quando os filhos são armas de arremesso - TVI

Quando os filhos são armas de arremesso

Criança (Reuters)

Alienação parental é uma realidade. Acontece e acontece mais do que devia. No caso dos divórcios litigiosos é quase sempre uma certeza. Apesar de alienação parental não ser um crime previsto na lei, os casos extremos podem, na verdade, ser crime

A alienação parental “não é um mito, é uma realidade”. Pais que usam os filhos como “arma de arremesso” ou “bola de ping pong”, quase sempre em divórcios litigiosos ou quadros de violência doméstica. Apesar de não ser um crime tipificado na lei, a justiça está atenta e pode ser, muitas vezes, enquadrada dentro da própria violência doméstica, maus-tratos contra menores e até, em casos extremos, sequestro de menores.

“A alienação parental, embora a designação de alienação seja muito infeliz - porque remete para alienados e conceitos do princípio seculo passado - é uma realidade”, afirma à TVI24 o psiquiatra Álvaro Carvalho, diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental.

E o que é a alienação parental? “Prende-se com uma disputa – a expressão parece um ato falhado mas é real - sobre a posse dos filhos, num processo de separação, litigioso ou não”, acrescenta o psiquiatra.

Em casos de alienação parental, de que tipo de consequências para as crianças estamos a falar? “Nós sabemos que para o amadurecimento sadio de cada criança é muito importante a relação com os progenitores, mas perante um ambiente turbulento e conflitos permanentes é muito difícil que uma criança tenha um enquadramento emocional adequado”. E por isso, para este médico especialista, os quadros de alienação parental “vão afetar e muito” os menores envolvidos.

E como? “Por um lado, mesmo que a mãe seja considerada vítima, o facto das crianças se aperceberem e as crianças apercebem-se de mais do que muitas vezes imaginamos (…) Mesmo que não assistam a situações de agressão – algumas vezes ouvem, outras apercebem-se que a mãe não está bem - isto cria-lhes um sentimento de insegurança”.

Até nas situações em que “se identifiquem com a mãe vítima” nasce “um sentimento de insegurança, (...) por considerarem que a mãe devia ter tomado uma posição mais cedo. Ou seja, não os devia ter exposto tão demoradamente à situação de violência”.

Mas não só. “Por outro lado, quando não apontam o dedo, é frequente verificar que passam a ter uma imagem menos satisfatória sobre a pessoa da mãe. Mesmo que fiquem com a mãe e que haja a confirmação de comportamentos violentos por parte do progenitor masculino. Essa situação não é isenta de consequências para as crianças”.

Divórcios litigiosos e alienação parental estão quase sempre juntos? “Sim. Nos divórcios litigiosos é muito frequente haver alienação parental. E até nos divórcios com acordo dos progenitores e guarda conjunta é preciso uma grande estabilidade para a criança”.

E como a criança deveria ser a preocupação central de todos os envolvidos, o psiquiatra dá um exemplo: “Sobretudo para miúdos pequenos a continuidade do espaço físico não é irrelevante. Há pais que se separam a bem e conscientemente tem preocupações de que, por exemplo, os miúdos tenham um quarto com mobília igual nas duas casas. Os adultos nem sempre valorizam a aparência (…) e em miúdos pequenos, não havendo esta preocupação, também pode haver perturbação decorrente da situação”.

Os números e “as percentagens significativas” ainda nos fazem acreditar que este “é mais um problema no feminino do que no masculino”. Para Álvaro Carvalho, na alienação parental, “na maioria das vezes, a mãe é a vítima”. Mas isto é em teoria já que “na prática também se encontram casos em que há mães alienadoras. Há mães, por exemplo, que acusam os pais de abuso sexual”.

E podem estas crianças crescer e desenvolver ambientes familiares estáveis? “É muito variável. As coisas que são marcantes não se esquecem, podem ficar adormecidas, mas não se esquecem. Toda e qualquer situação conflituosa que perturbe uma estabilização do desenvolvimento infantil é potencialmente relevante. Aqui, estando comprometidos os progenitores, a relevância ainda é maior”.

Um bom acompanhamento psicológico poderia fazer a diferença? “Isso é um facto e aí confrontamo-nos com as nossas limitações. Em termos de serviços públicos para a infância e para a adolescência temos as limitações conhecidas, em que há pouquíssimos médicos, designados pedopsiquiatras”.

Álvaro Carvalho assume o problema, que também está na sua alçada como diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, e reconhece a ajuda preciosa de associações “que acompanham e prestam este apoio gratuitamente. Como, por exemplo, a Associação das Mulheres contra a Violência, que tem feito um trabalho notável neste âmbito”. 

Por que é a expressão 'alienação parental' é polémica? “Habitualmente há uma correspondência automática entre esse conceito e o chamado Síndrome de Alienação Parental e esse, de facto, mais do que um mito, é um equívoco”.

O conceito, criado por Richard A. Gardner no início de 1980, não cumpriu as regras exigidas e nunca foi provado de forma aceite pela comunidade científica, explica Álvaro Carvalho durante uma entrevista à TVI24 sobre tema. Na realidade, segundo o diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, o próprio Gardner será uma personagem polémica:

“Teve uma história de vida muito complicada, acabou por se suicidar. Chegou a defender o abuso sexual. Terá desenvolvido esta tese, para defender alguém seu conhecido, envolvido num processo de alienação. Tinha uma perspetiva quase misógina, porque considerava as mulheres sempre culpadas de todas estas situações…“

Há crime em casos extremos

Não sendo um crime previsto na lei, a alienação parental pode ser crime em casos extremos. O advogado Paulo Sá e Cunha falou com a TVI24 sobre como se liga este conceito à Justiça.

“Regulado na lei, eu creio que não existe. A figura da alienação parental é falada doutrinalmente, na psicologia e na sociologia, mas não é ainda regulada. Aquilo que existe é o princípio, em matéria das relações familiares e das relações de parentalidade. Existe o princípio da convivência parental. Portanto, a alienação parental será o oposto a isto. Ou seja, tudo aquilo que se traduza no afastamento, na subalternização, no amesquinhar de um progenitor em relação ao outro”

E em situações extremas? Quando um progenitor afasta o filho do outro progenitor fisicamente? “Isso é um crime previsto na lei. É sequestro de menor, ou rapto de menor. Porque pode entrar noutro domínio. A alienação parental em sentido próprio é, de facto, afastar ou prejudicar de alguma maneira o normal convívio entre os filhos e os progenitores”.

E num divórcio litigioso quando, por exemplo, um dos progenitores faz acusações ao outro denegrindo a sua imagem? A lei vê o ato como alienação parental?

“Sim, porque no fundo, são atos que afastam, podem afastar e até podem traumatizar o próprio processo de formação de personalidade do menor. Podem também afastar ou levar a afastar a tal convivência normal entre os filhos e os pais”.

Paulo Sá e Cunha não tem dúvidas que apesar da lei não prever a alienação parental como crime, "tudo é uma questão de grau":

"Se esse tipo de comportamento se verificar de forma intolerável, reiterada, obsessiva… Imagine que há um pai ou uma mãe que está separado do outro e por diversas formas, constantemente, atua de modo a perturbar psicologicamente o menor relativamente à figura do outro progenitor… Isto pode, inclusivamente, entrar no domínio da violência psíquica sobre o menor e ser considerado, em si mesmo, um crime de violência doméstica”.

Mas há outras coisas que preocupam o advogado, tendo sempre em mente que a prioridade nestas situações devem ser as crianças. Se a violência doméstica e os maus tratos contra as crianças estão previstos no Código de Processo Penal, é o Código Civil que faz a regulação do poder paternal. Um facto que às vezes faz diferença e pode “massacrar duplamente” os menores.

Crianças podem ser ouvidas duas vezes em processos paralelos

”Ou seja”, explica Paulo Sá e Cunha, “uma das coisas que se podia aperfeiçoar eram formas de aproveitar meios de prova que passem pela intervenção da criança num processo e no outro. Já está previsto, no que respeita a declarações para memória futura prestada pelo menor no processo-crime. Neste caso, está previsto que elas podem valer no processo tutelar civil. O contrário é que não está previsto”.

“Mas há muitas outras coisas. Se se tiver que fazer uma perícia de personalidade, para saber se o menor pode depor, se aquilo que está a dizer de alguma forma foi contaminado por um progenitor ou por outro. Tudo isto, no fundo, são exames que podem ter um carater traumatizante e podiam ser feitos uma única vez. Isso a lei não prevê”, exemplifica. Apesar de admitir que às vezes as perícias “são usadas” nos dois processos que correm paralelos há sempre o risco de as crianças “fazerem duas perícias”.

Só que a lei falha noutros pontos quando estes processos decorrem em paralelo. De um lado corre um processo-crime por violência doméstica, do outro um processo de regulamentação do poder paternal. Imagine-se que há medidas de coação decretadas por um tribunal.

“Os pais não podem contactar um com o outro, o agressor não pode contactar com a vítima, mas, no entanto, continua a ser pai ou mãe e existe um filho ou filhos comuns”

Este é um problema que se coloca muitas vezes na prática. Como se resolve? “Essas situações têm que se resolver muitas vezes através da mediação. Não é mediação num sentido próprio. Por exemplo, as crianças são entregues, ao pai ou à mãe, por uma terceira pessoa. Ou o pai ou a mãe vão buscá-los a um lado que não seja a residência da vitima”.

Quando estas medidas de coação dos processos-crime se transformam em penas assessórias, após uma decisão do tribunal e uma condenação, a situação agrava-se: “Nem sempre há uma coordenação clara e perfeita entre uma instituição e outra”.

“Tem havido até muitas propostas de alteração legislativa que visam aligeirar, de maneira a que mal exista uma situação de violência doméstica a correr perante o Ministério Público, isso seja participado oficiosamente ao Ministério Público competente da área de família e menores"

Ou seja, desta forma, os responsáveis pela resolução do poder paternal poderiam, de forma antecipada, "procurar ou tomar a iniciativa de promover a regulação de responsabilidades parentais, incluindo alterar uma decisão já existente, em razão das necessidades de proteção da vítima que decorrem, depois, do processo de violência doméstica”.

E aqui, Paulo Sá e Cunha deixa outro alerta. “O crime de violência domestica também pode ser praticado sobre as crianças”. O ato não é exclusivo entre progenitores. “Pode ser de pai e mãe para filho/filhos; ou de pai ou mãe para filho/filhos”.

Paulo Sá e Cunha considera que ainda se pode fazer mais, mas “há domínios, como o domínio das relações íntimas, entre as pessoas no âmbito familiar, que devem constituir um espaço o mais livre de direito possível. Não deve haver uma intromissão muito opressiva”, porque, na sua opinião, “regulação excessiva (…) numa relação privada, pessoal, pode ser mais contraproducente”.

Procurar o equilibro, tratar cada caso, como um caso. Da justiça deve esperar-se um olhar mais sensível e atenção quanto aos direitos das crianças e das vítimas.
 

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