Mães Interrompidas: Filipe perdeu três mães em quatro anos - TVI

Mães Interrompidas: Filipe perdeu três mães em quatro anos

Episódio 2: Com apenas sete anos de vida, “Filipe” perdeu a família biológica, a família de acolhimento e a mãe adotante. Já Alcina veio para Portugal devido ao problema de saúde do filho e acabou por ficar sem ele. Será que o sistema defende sempre o supremo interesse da criança? Em 2008, havia 918 famílias de acolhimento. Em 2016 eram apenas 261. Um número que não pára de diminuir

As organizações internacionais de defesa dos direitos das crianças consideram que as famílias de acolhimento devem ser a opção a prevalecer quando uma criança é retirada aos pais. As instituições de acolhimento devem ser a última opção. Mas em Portugal o número de famílias de acolhimento é muito reduzido e quase 89% dos menores acabam nas instituições.

Não eram pessoas criminosas, nunca o tinham tratado mal, nunca tinham tido uma negligência grosseira.”

Ana (nome fictício) recebeu em sua casa, durante 19 meses, Filipe (nome fictício) de três anos e meio. Era uma família de acolhimento ligada à instituição Mundos de Vida.

O Estado coloca como opção o acolhimento familiar… sabe quanto é que pagam a uma família de acolhimento? 350 euros. É mesmo para desmotivar que alguém queira ser família de acolhimento”

350 euros é muito menos que os mil euros que uma criança pode custar ao estado numa instituição.

O caso de Filipe estava nas mãos da CPCJ de Penafiel. Os pais eram separados e com carências económicas, mas nunca falharam uma visita.

Segundo Ana havia um laço forte com a avó paterna e a mãe, a quem o menino chamava “a minha princesa”

Havia ligação à família biológica (…) eu sei muito bem que uma família de acolhimento não pode adotar, nem eu pretendia adotar a criança, mas que poderia dar um apoio àquela família e não havia necessidade de haver corte, de ele ir para adoção”

Na cabeça de Ana o rumo da adoção não fazia sentido e mais valia Filipe ficar consigo.

Por isso, escreveu ao Ministério Público e ao juiz do Tribunal de Penafiel dando conta da sua disponibilidade em cuidar da criança até regressar à família biológica ou mesmo atingir a maioridade. Tudo sem encargos para o estado. Depois das cartas, Ana ainda esteve em tribunal. 

A juíza atendeu-me de uma forma informal, ao balcão. Ela chamou a criança e de dentro do balcão também lhe perguntou se ele gostava de mim, se queria ficar comigo e ele disse que sim”

Além da reforçada certeza de que Filipe gostava de si, Ana ganhou esperança no futuro, confessa.

O tribunal está a pensar seriamente dar-lhe a guarda, mas ainda iremos comunicar com a família alargada, não se põe de parte a adoção, mas provavelmente ser-lhe-à entregue a guarda da criança eu confesso que saí de lá aliviada”

Nada correu como imaginado e, em 2014, a esperança perdeu-se para sempre.

Passado pouco tempo começaram logo a pedir-me fotografias, mandaram-me ir à instituição para falar sobre o caso. O que quiseram perguntar foi que tipo de brinquedos é que o menino gostava”

Três dias, três encontros e Filipe já não regressou à família de acolhimento.

Mal vi a família adotante, achei a senhora uma pessoa muito debilitada fisicamente. Era uma pessoa que tinha dificuldade em andar, uma pessoa muito curvada. Mais tarde soube que era uma pessoa reformada por uma doença terminal. Soube também que passados dois anos de ter a criança…morreu"

Depois do sucedido, Ana quis integrar as listas para adoção. 

De tudo o que teve de preencher e entregar, o atestado médico de robustez física fê-la, novamente, repensar o caso.

Aos três anos e meio foi retirado à família biológica, aos cinco afastado da família de acolhimento e aos sete perdeu a mãe adotante. Tudo em nome da defesa e proteção da criança.

O advogado Gameiro Fernandes considera que muitas vezes era fácil resolver algumas questões levantadas pelas assistentes sociais.

E tira-se crianças porque não têm sapatos adequados à época e institucionalizam-se essas crianças, a pagar mil euros numa instituição, quando era mais barato comprar um par de sapatos seguramente”

De Cabo Verde para Portugal

Alcina veio de Cabo Verde para Portugal na esperança de salvar o filho de dez anos. Chegou em abril de 2017, ao abrigo de um acordo internacional na área da saúde. Apenas falava criolo e tinha dificuldade em perceber português.

Para tratar da saúde do meu filho que tem um problema renal”

Passou dias, meses no Hospital D. Estefânia com o Rui (nome fictício). Pouco tempo após chegar, descobre que estava grávida.

Eles me disseram que iam dar alta, já não podia estar mais no hospital e disseram-me que casa da minha tia ele não podia ficar. Tinha que ficar numa casa onde não tem muitas pessoas. Qualquer gripe que uma pessoa tem, pode passar para ele e ele ficar doente”

Alcina acaba por autorizar que o filho vá para uma instituição, por seis meses.

Ele está numa instituição, em Odivelas. Casa Rainha Santa Isabel”

A assistente social do Hospital D. Estefânica sinalizou Rui na CPCJ de Lisboa Centro. O que disseram a Alcina não é o que está escrito no acordo assinado com a mãe.

Porque eles disseram que o meu filho não podia estar numa casa que tem três ou quatro pessoas e porque o meu filho pode estar dentro de uma instituição que tem 13 crianças e ainda tem um cão lá dentro”

Mas no acordo de promoção e proteção do menino, uma das alegações mais graves é a falta de capacidade da mãe em tomar conta do próprio filho. 

Quanto à alegada falta de condições da habitação, a CPCJ de Lisboa nunca visitou a casa da tia de Alcina. Nem sequer a assistente social do hospital o fez.

Devido aos problemas de saúde que enfrentam, há situações em que estas crianças estrangeiras precisam, de facto, de ambientes protegidos. Muitas vezes, acabam por ser encaminhados para instituições com condições especiais como, por exemplo, enfermeiros 24 horas por dia. Não é o caso de “rui”. A instituição onde está é um centro de acolhimento temporário dito normal.

Sara (nome fictício), trabalhou dois anos numa CPCJ e muitas vezes não gostou do que viu e ouviu.

O que acontece muitas vezes é assédio moral com estas famílias e são famílias pobres, que não se sabem defender, que não sabem os direitos que têm, que depois vão aos tribunais sem advogado. Não percebem o que estão a assinar sequer. Quando assinam para os filhos serem retirados não sabem que têm a opção de não assinar, não sabem que têm ‘x’ dias para recorrer da decisão. Não sabem nada e ninguém os informa”

O caso de Alcina é complexo. Ela está no país a acompanhar um filho menor, ao abrigo de um acordo internacional, na área da saúde.  A CPCJ, por exemplo, nunca contactou a embaixada de Cabo de Verde, que só percebe que se passa alguma coisa, quando a instituição onde Rui se encontra, pede dinheiro para os medicamentos do menor.

Isilda Pegado, advogada, não tem dúvidas de que a carência económica é o primeiro ponto a focar.

Têm tanto direito a ter filhos os pobres como os ricos. E se há carências económicas, vivemos numa sociedade da solidariedade e esse é o primeiro ponto onde devemos tocar” 

O acordo entre Portugal e Cabo Verde prevê que o menor tenha todos os tratamentos de saúde garantidos. Seja em internamentos ou ambulatório.

A CPCJ de Lisboa centro exigiu a Alcina que procurasse emprego e encontrasse uma casa com um quarto para o filho, mas ela está no país para acompanhar o filho doente e não tem autorização para trabalhar.

Na verdade, para o estado português ela é quase invisível. Não pode, por enquanto, pedir apoio à segurança social, nem tem direito a advogado oficioso.

Da embaixada de Cabo Verde recebe 170 euros por mês e é esse o dinheiro que tem para ela e para a filha bebé. O limiar da pobreza em Portugal, em 2016, situava-se nos 5.442 euros por ano… 453 euros por mês. Alcina está muito abaixo disso.

As exigências das CPCJ são muitas vezes incompreensíveis, até para quem trabalhou numa.

Depois uma das coisas que eles exigem para as crianças voltarem para casa, é que os pais tenham um quarto para cada um. Para mim isso não é aceitável. As crianças quando estão nas instituições estão no quarto com mais quatro ou cinco. Não era melhor estarem a dormir com a mãe, mesmo que fosse na mesma cama com a mãe?”

Maria (nome fictício) nasceu no Hospital Beatriz Angêlo, em novembro de 2017, e o caso ficou na CPCJ de Odivelas. Onde entretanto foi junto o processo de Rui. Conseguiu ficar com a filha em casa da tia, mas ainda teme que lhe tirem a bebé. À sua espera em Cabo Verde estão mais dois filhos menores, mas Alcina diz que só volta com Rui.

Médica da estefânia perguntou se eu queria ir embora para ter filho em cabo verde e eu disse que não vou para deixar o meu filho aqui em portugal”

Os médicos ainda não determinaram qual o melhor tratamento para Rui e enquanto isso não acontecer, o menor terá de ficar no país.

CPCJ de Penafiel, CPCJ de Lisboa Centro e Segurança Social do Porto não responderam à TVI em tempo útil.

CPCJ de Odivelas confirmou à TVI ter o caso da bebé de Alcina.
 

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