Covid-19: consultor português da OMS defende menos restrições em nome da imunidade de grupo - TVI

Covid-19: consultor português da OMS defende menos restrições em nome da imunidade de grupo

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  • Publicada por ALM
  • 14 jun 2020, 09:55
Coronavírus

Médico assume limites no combate aos efeitos desiguais do vírus

Portugal teria condições para aliviar restrições no combate à pandemia de Covid-19, restringi-las a grupos de risco e construir imunidade de grupo, considera o médico português Nelson Olim, consultor da WHO Academy, da Organização Mundial de Saúde.

A tendência deste vírus é de se tornar endémico. Esta é a única forma de a médio e longo prazo se criar uma imunidade de grupo. Neste momento, há um certo exagero nas medidas tomadas do ponto de vista do distanciamento, das máscaras, das luvas e da circulação dentro de espaços. A questão – e é preciso ter noção do preço a pagar – é que estamos a atrasar em muito o adquirir da imunidade de grupo que nos iria proteger a todos”, afirma à Lusa o clínico, ressalvando ser a sua visão pessoal e não uma posição da Organização Munidal de Saúde (OMS).

De acordo com o cirurgião especialista em medicina de catástrofe e responsável pela coordenação da aplicação móvel WHO Academy, desenvolvida pela OMS para agregar a informação sobre a pandemia para os profissionais de saúde, o país arrisca-se a enfrentar uma segunda vaga do SARS-CoV-2 quase nas mesmas condições em que enfrentou a primeira.

“O facto de estarmos a atrasar esta imunidade de grupo faz com que uma possibilidade de segunda vaga vá na mesma atingir uma população que ainda não criou imunidade, portanto, uma população que se vai comportar mais ou menos como foi atingida há dois ou três meses”, assinala, frisando: “A imunidade ganha-se pela exposição a pequenas quantidades do vírus e esta é a forma como a espécie humana evoluiu nos últimos milhares de anos”.

Embora reconheça não ser epidemiologista ou especialista em doenças infecciosas, Nelson Olim entende que a minimização de uma eventual segunda vaga passaria por reconhecer este momento da pandemia como “uma boa altura para abrandar estas medidas” de restrição e permitir uma maior circulação do vírus na sociedade, reservando uma proteção especial apenas para aqueles que se inserem em grupos de risco.

Os grupos de risco devem continuar a ser protegidos, pelo menos enquanto não houver uma vacina ou um tratamento. Acho que as medidas básicas de proteção, nomeadamente a lavagem das mãos, são mais do que suficientes para impedir a propagação em grande escala, mas acho que deveríamos aliviar o resto. Quanto mais atrasarmos [a criação de imunidade], maior o impacto económico e social”, refere.

Sem uma imunidade de grupo visível, face à pouca exposição da população portuguesa ao novo coronavírus, Nelson Olim adverte também que será quase impossível o cenário de uma vacina até ao final deste ano, apesar dos múltiplos esforços internacionais nesse sentido.

“Não há forma de acelerar o processo, precisamos do tempo para perceber se daqui a seis meses os anticorpos ainda lá estão. Será muito difícil, quase impossível, ter qualquer coisa que se pareça com uma vacina até ao final do ano”, avisa, apontando maiores esperanças noutra direção: “Acredito mais num tratamento eficaz com fármacos que já existem e que entretanto são identificados como podendo ser utilizados, porque esse, sim, é um processo mais rápido.”

A este nível, a hidroxicloroquina e o remdesivir têm sido os mais frequentemente referenciados na imprensa internacional, apesar das reservas já levantadas sobre os reais benefícios e potenciais consequências do uso do primeiro fármaco. No entanto, o consultor da OMS realça que há mais possibilidades em cima da mesa.

“Há ensaios clínicos a decorrer não só com esses dois medicamentos, mas também com outros medicamentos. Há uma plataforma de ensaios clínicos que é gerida pela OMS e estarão até mais de uma centena de ensaios clínicos a decorrer neste momento com estes e com outros medicamentos”, revela o clínico português, ressalvando que tanto a hidroxicloroquina como o remdesivir “não são soluções milagrosas”.

Além dos efeitos da pandemia de covid-19, Nelson Olim tem também se debruçado sobre o combate à pandemia da desinformação, através da coordenação da aplicação móvel WHO Academy, lançada há cerca de um mês e que já foi descarregada em 205 países e territórios. Embora tenha sido criada para os profissionais de saúde, é também acessível ao público em geral, que pode aqui encontrar todas as informações validadas e disponíveis no momento.

“Vivemos numa época em que qualquer pessoa é livre de escrever o texto que quiser e publicá-lo ‘online’, onde vai ser visto por milhares de pessoas, portanto, não há forma de combater a desinformação. A melhor forma de combater é recomendar que se procure a informação apenas nos sítios credíveis: a OMS e a DGS”, explica, sentenciando: “A pandemia da desinformação é, apesar de tudo, mais fácil de combater do que o vírus propriamente dito”.

Médico assume limites no combate aos efeitos desiguais do vírus

Estudos recentes sobre o impacto social da Covid-19 apontam para mais consequências junto das classes desfavorecidas, mas  Nelson Olim atribui a situação às sociedades e admite limitações no combate às desigualdades.

Em entrevista à Lusa, o médico português, cirurgião especialista em medicina de catástrofe e responsável pela coordenação da aplicação móvel WHO Academy, desenvolvida pela OMS para agregar a informação sobre a pandemia para os profissionais de saúde, apela para a cautela na interpretação dos estudos e reitera que “o vírus não conhece quem tem ou não dinheiro no banco”, propagando-se em função da proximidade.

Num bairro onde há menos densidade populacional, melhor saneamento e mais acesso a cuidados de saúde, o surto vai ter uma propagação diferente. Não há nada que a Direção-Geral da Saúde ou a OMS possam fazer, uma vez que estamos a falar de desigualdades sociais que não são da responsabilidade destas organizações, têm a ver com a forma como a sociedade está estruturada e como as políticas sociais são postas em prática”, alerta.

Sublinhando que os casos surgem onde mais se efetuam testes e que “a única desigualdade que há é a que temos na sociedade, onde existem mais pessoas com menos recursos”, Nelson Olim analisa o caso português e as supostas desigualdades sociais associadas ao vírus para defender que o país até “será um dos melhores exemplos” nesta área, face ao “acesso gratuito ao Serviço Nacional de Saúde”, ao contrário de outros países.

“Aquilo que a OMS e as direções-gerais ou ministérios da Saúde nestes países podem fazer é tentar mitigar esse efeito, criando centros de tratamento mais próximos dessas populações e fazendo campanhas direcionadas para estas populações, mas é o máximo que se pode fazer. Não será a OMS - nem a DGS - a mudar as desigualdades sociais que já existem em Portugal ou em qualquer outro país”, nota.

Confrontado com a evolução recente da pandemia em Portugal, que expôs um novo aumento de casos confirmados de Covid-19 nas últimas semanas de desconfinamento, sobretudo na região de Lisboa e Vale do Tejo, que concentra a grande maioria dos diagnósticos de infeção pelo novo coronavírus, o clínico português relativiza a dimensão do problema, considerando os números “perfeitamente normais” à luz da estratégia adotada pelas autoridades nacionais.

“Enquadra-se ainda dentro daquilo que eram os modelos inicialmente previstos. Todas as medidas que foram tomadas foram no sentido de achatar a curva e transformar o pico num planalto”, explica o consultor da OMS, acrescentando: “Não estamos a erradicar o vírus e nem nunca foi essa a intenção; a intenção foi atrasar e isso quer dizer que vamos esticar isto no tempo. Aquilo que está a acontecer neste momento era perfeitamente previsível”.

Por outro lado, Nelson Olim lembra que “morrem todos os dias em Portugal pelo menos 20 pessoas com complicações de doenças respiratórias, independentemente da Covid-19”, vincando os riscos de estabelecer comparações com outros países, como Espanha, que passou por uma situação mais crítica e agora apresenta números mais reduzidos de mortalidade.

“É errado comparar as mortalidades neste momento de vários países, uma vez que os métodos utilizados para identificar e notificar os casos são diferentes. Em Portugal, contabilizamos quem morre por Covid-19 e com Covid-19”, afirma Nelson Olim, que explica que o país regista a morte de um doente com a infeção mesmo em estado assintomático, algo que não ocorre em todos os países.

E apesar de rejeitar uma classificação sobre o mérito de determinadas abordagens estatísticas em relação a outras, deixa um elogio ao método adotado em Portugal.

Provavelmente, estamos a notificar mais e melhor do que a maioria dos países ao nível europeu. Isto faz com que, obviamente, as nossas estatísticas pareçam piores, mas, na verdade, se calhar estamos mais próximos da verdade do que outros países. Acho que nos dá uma visão mais alargada e, eventualmente, mais realista da disseminação do vírus”, finaliza.

Em Portugal, morreram 1.512 pessoas das 36.463 confirmadas como infetadas, de acordo com o boletim mais recente da Direção-Geral da Saúde.

A pandemia de Covid-19 já provocou mais de 427 mil mortos e infetou mais de 7,7 milhões de pessoas em 196 países e territórios, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP.

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