As contradições e os esquecimentos de Manuel Delgado no caso da Raríssimas - TVI

As contradições e os esquecimentos de Manuel Delgado no caso da Raríssimas

Em entrevista à TVI, o secretário de Estado da Saúde demissionário, que foi consultor da instituição, foi confrontado com documentos novos que o puseram em xeque e acabaram por levar a que se demitisse do Governo. Manuel Delgado viu desmentidas as afirmações de que nunca interferiu na gestão ou teve conhecimento das dificuldades da Raríssimas e disse mesmo que não acha imoral ter sido pago com subsídios do Estado, desviados dos apoios dados a crianças com doenças raras. O ex-governante foi ainda confrontado com uma relação pessoal com a presidente da Raríssimas, com quem viajou várias vezes

Manuel Delgado, o secretário de Estado da Saúde que esta terça-feira se demitiu do cargo, e que foi consultor da associação Raríssimas, que está a ser investigada por gestão danosa, foi esta terça-feira posto em xeque numa entrevista à TVI, que se revelou cheia de contradições e que acabou por levar a que abandonasse as funções no Governo.

Manuel Delgado, que foi contratado em 2013 como consultor, saberia que a situação da Raríssimas, divulgada numa reportagem da autoria da jornalista da TVI Ana Leal, era insustentável do ponto de vista financeiro e que lhe seriam pagos três mil euros por mês com os subsídios do próprio Estado, destinados a apoiar crianças com doenças raras. Como consultor recebeu um total de 63 mil euros.

Na entrevista que foi gravada esta terça-feira, às 12:00, poucas horas antes de ser conhecida a demissão, e transmitida esta noite no “Jornal das 8”, o governante afirmou à jornalista Ana Leal que, como consultor, a sua função consistiu numa colaboração técnica na área de organização e serviços de saúde na Casa dos Marcos, nunca tendo tido conhecimento ou participado em decisões referentes ao financiamento e à gestão da instituição, mas acabou por ser confrontado pela jornalista com documentos novos que o puseram em xeque e que não corroboravam o que estava a afirmar.

Email com balancete alertava para dificuldades

Questionado logo no início da entrevista sobre a gestão da instituição, Manuel Delgado foi categórico a afirmar que não participava nas decisões referentes à Raríssimas.

Nunca. Não. Até porque seria indelicado da minha parte tentar intrometer-me em alguma coisa para a qual não fui convidado. Eu não fui convidado para fazer a gestão da Raríssimas”.

Perante a referência da jornalista ao ex-tesoureiro da Raríssimas, Jorge Nunes, que “lhe fez chegar balancetes”, o secretário de Estado não desarmou:

Não. Não. Nunca me fez chegar balancetes nenhuns”.

A jornalista confrontou então o secretário de Estado da Saúde com um email datado de julho de 2014, enviado a Manuel Delgado pelo então tesoureiro da Raríssimas, em que Jorge Nunes agradecia a opinião do governante e consultor no sentido de ser invertida a situação em que a Casa dos Marcos se encontra e onde referia, por exemplo, um saldo negativo de mais de 300 mil euros.

Eu, por acaso, não me lembrava disso”, disse Manuel Delgado.

Passando o documento para as mãos do entrevistado, a jornalista insistiu: “O senhor não pode dizer que não tem conhecimento”. E reforçou: “Aliás, o senhor já deve ter visto isto porque é a isto que eu me estou a referir, precisamente”.

Na resposta, Manuel Delgado não recuou: “Estas matérias não competiam ao meu trabalho. Opinar, nem ter qualquer tipo de intervenção, porque não foi para isto que eu fui contratado. Eu nunca dei opinião sobre isto. E, aliás, disse isso ao Dr. Jorge Nunes”.

A jornalista voltou a insistir: “Mas o senhor tinha dito que não tinha tido conhecimento. Afinal, teve conhecimento”.

O governante vacilou: “Provavelmente. Mas olhe que nem sei os números que estão aqui. Não me recordo de ver. Até porque é uma matéria tão específica da gestão que eu não liguei nenhuma a isto.”

As viagens mal explicadas com a presidente da Raríssimas

Confrontado na entrevista com viagens que terá feito com a presidente da Raríssimas, em número superior àquelas que inicialmente admitiu ter feito às custas da instituição, Manuel Delgado foi incapaz de dar explicações e negou qualquer relação pessoal com Paula Brito da Costa, que esta terça-feira também se demitiu de funções. À pergunta da jornalista sobre quantas deslocações fez com a presidente para fora do país, o consultor e governante respondeu que foram apenas duas e acabou depois por ser confrontado pela jornalista com pelo menos mais uma.

Viajei uma vez para Burgos, a minha sugestão, porque era importante fazermos uma visita ao único centro europeu que na altura havia para tratamento de doentes raros. E viajei outra vez, penso eu, a um congresso onde fiz uma apresentação, uma comunicação, em Buenos Aires”.

"Apenas isso?", perguntou a jornalista.

“Sim. Sim", respondeu o entrevistado.

Colocado perante o registo de uma ida ao Brasil, em que viajou no mesmo avião que Paula Brito da Costa e em que a viagem foi tratada pela Raríssimas, o secretário de Estado demissionário foi rápido a defender-se: “Viajar no mesmo avião não significa que tenha sido pago pela Raríssimas.”

Mas logo a seguir, Manuel Delgado entrou em contradição. O governante explicou que se deslocava com frequência ao Brasil, numa altura em que tinha na sua atividade privada relações e contactos com empresas naquele país, e, perante a insistência da jornalista, acabou por ceder e admitir que a viagem foi reservada pela Raríssimas.

 Porque eu estava em relação, em contacto com a Raríssimas e pedia, na altura, para eles eventualmente fazerem a reserva. Se calhar porque era mais económico. Não faço ideia porque é que isto foi assim. Provavelmente, foi isso que aconteceu. A Drª Paula Brito da Costa disse que esta viagem feita desta maneira é mais económica”.

A entrevistadora viu-se então obrigada a perguntar se além da relação profissional que Manuel Delgado tinha com a presidente da Raríssimas, alguma vez teve outro tipo de relação. A resposta foi a que seria de esperar.

Não. A minha vida privada não é para aqui chamada”, afirmou o governante na defensiva, visivelmente embaraçado, levando a jornalista a sublinhar-lhe que não se trata de um tema da “vida privada” quando em causa está perceber se, enquanto consultor, foi favorecido durante as suas funções por uma associação que é paga com subsídios do Estado.

“Essa é sua interpretação”, rematou então o governante, naquele que foi o momento mais constrangedor da entrevista.

Imoral é "não receber" pelos serviços prestados

Nos documentos que Manuel Delgado recebeu do tesoureiro da Raríssimas, e a que a jornalista Ana Leal teve acesso, pode ver-se que a situação financeira da instituição é difícil, com 351 mil euros negativos. Nesses documentos, já aparece o encargo com o salário elevado do consultor e ainda da presidente da Raríssimas, Paula Brito e Costa.

Questionado sobre a moralidade de ter sido pago com subsídios do Estado, desviados dos apoios dados a crianças com doenças raras, Manuel Delgado argumentou que o trabalho foi feito e não era legítimo prescindir do pagamento.

Eu tenho um contrato assinado com uma entidade que me contratou para ser consultor e, portanto, eu não vou dizer, eu não o recebo. Essa é a questão central”, defendeu. “Eu sou um prestador de serviços. Acha moral que eu preste um serviço e não seja remunerado por ele depois de um contrato assinado? Acha moral?!”, retorquiu, visivelmente zangado.

Perante a indignação do entrevistado, a jornalista reformulou a pergunta: “Mas acha justo o dinheiro ser desviado de apoio a crianças e adultos com doenças raras para pagar ao senhor como consultor?”

Manuel Delgado manteve a posição: “Pagar o quê? Pagar a pessoa que está a trabalhar para montar os serviços e para abrir a casa?”

A jornalista voltou à carga e citou um email enviado a Manuel Delgado pelo tesoureiro da Raríssimas: “Solicitámos ao ministro da Solidariedade e Segurança Social, por intermédio do Fundo de Socorro Social, apoio para equilíbrio financeiro. Foi concedido 15 mil euros. Vou dar instruções para raspar o tacho e pagar-lhe ainda hoje". "Isto é explícito", comentou a jornalista.

Manuel Delgado não cedeu um milímetro: “Eu prestei o trabalho e ia várias vezes à Casa dos Marcos e, portanto, também não é legítimo estar à espera que a pessoa que prestou o trabalho prescinda dos seus honorários”.

“Não acha que isto então é imoral?”, insistiu Ana Leal.

“Claro que não. E até lhe digo mais: em função da situação descrita pelo Jorge Nunes [tesoureiro da Raríssimas], e perante esse episódio desagradável [ter sido pago com recurso ao Fundo de Socorro Social] qual foi a posição que eu tomei?”, perguntou Manuel Mendes.

“Foi receber o dinheiro”, respondeu a jornalista.

“Claro. Estava trabalhado. Estava feito. Também era melhor, não era? Quer dizer, não recebia?! Mas qual foi a decisão que eu tomei? Nunca mais prestei serviços à Raríssimas", sublinhou.

As condições "impostas" para ser consultor

Na entrevista, Manuel Delgado foi ainda questionado sobre as condições que terá imposto quando foi contratado como consultor na Raríssimas. Apesar de ter sido confrontado pela jornalista com um email entre a presidente da instituição e um outro elemento da direção, no qual Paula Brito e Costa afirma que Manuel Delgado aceitou trabalhar para a instituição a troco de uma remuneração de 12 mil euros brutos, carro e seguro de saúde, o ex-governante afirmou que apenas negociou com o tesoureiro Jorge Nunes um vencimento de "três mil euros brutos".

Negociei com o doutor Jorge Nunes os três mil euros brutos. Acho ridículo, isso dos 12 mil euros”, disse entre risos.

“Então a senhora presidente da Raríssimas está a mentir?”, contrapôs a jornalista.

Mais uma vez, a resposta foi categórica: “Eventualmente está. Porque eu nunca acertei valores de 12 mil euros com ninguém (…)”.

A presidente da Raríssimas acrescentava no referido email que era muito dinheiro, mas valia a pena porque Manuel Delgado era PS, um homem de Correia de Campos que poderia colocar a associação na "mó de cima".

Conversa com o ministro

Manuel Delgado disse também na entrevista que pôs o lugar à disposição do ministro da Saúde, que considerou não haver “razões objetivas nenhumas” para o exonerar.

Perante este alarme público, claro que falei com o senhor ministro da Saúde e claro que lhe pus a questão”.

Questionado pela jornalista sobre se pôs o lugar à disposição no seguimento dos factos revelados pela reportagem que foi emitida no sábado, na qual se refere que foi contratado entre 2013 e 2014 pela Raríssimas, com um vencimento de três mil euros por mês, tendo recebido um total de 63 mil euros, o agora ex-secretário de Estado da Saúde confirmou.

“Pus com certeza. É evidente que o senhor ministro, numa atitude que tem a ver com a sua forma de pensar e de estar, e ele próprio tem autoridade para julgar as decisões que toma, disse-me: Não vejo até agora razões objetivas nenhumas para poder pôr em causa o seu lugar”, contou Manuel Delgado.

E se o ministro Adalberto Campos Fernandes não viu, no caráter insólito do envolvimento com a Raríssimas, motivo para exonerar o seu secretário de Estado, foi o próprio Manuel Delgado, que após a entrevista desta terça-feira, não teve margem para ficar em funções.

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