"Não tinha fé que estivesse viva": Fátima reencontrou a mãe 30 anos depois - TVI

"Não tinha fé que estivesse viva": Fátima reencontrou a mãe 30 anos depois

  • Henrique Magalhães Claudino
  • 5 fev 2020, 22:08

Através de uma carta e de várias mensagens no Whatsapp, Fátima Duarte, residente na Maia, conseguiu encontrar a mãe que já não via há 30 anos.

O primeiro traço que salta à vista no rosto de Fátima Duarte são as maçãs do rosto. Salientes, ampliam o olhar da mulher de 41 anos com uma história de vida que atravessa dois continentes. Nasceu em África mas vive há décadas em Portugal, para onde veio com o pai. 

O meu pai sempre viveu comigo. Morreu em minha casa”, diz, enquanto tenta reviver a manhã que lhe mudou a vida. Foi no início de janeiro deste ano: Fátima fazia arrumações em casa, em Valongo, quando desembrulhou um retrato do pai e recordou o momento em que, nove anos antes antes, se despedira dele pela última vez.

Ficou taciturna. Célia, a namorada do filho Tiago, de 19 anos, estava com ela e sentaram-se as duas na sala. A jovem reparou no olhar distante de Fátima e perguntou-lhe o que se passava.

 

 

Fátima Duarte tem 43 anos e vive na Maia

 

 

Ela agarrou na mão de Célia e disse-lhe: “Parece que vivi duas vidas diferentes. O meu pai era português, mas viveu no Zimbabwe 44 anos. Foi lá que conheceu a minha mãe. Na altura, ela tinha 24 anos e ele tinha 64”. 

Fátima nasceu no Zimbabwe e morava com o pai numa pequena quinta. A mãe, Zodwa Zikhali, vivia numa tribo zulu, na região de Gumtree, e trabalhava como doméstica em várias casas.  

Quando eu nasci fui criada pelo meu pai, mas estava todos os dias com a minha mãe. Quando vinha da escola a pé, tentava sempre passar por aquela tribo para ver a ela e à minha avó”, diz.

No décimo primeiro aniversário, o pai de Fátima pediu autorização à mãe dela para a trazer para Portugal durante três anos.

Era para aprender a cultura portuguesa, a nossa língua. Porque eu não sabia falar português”, afirma Fátima

 

A infância de Fátima no Zimbabwe

 

 

A minha mãe estava muito reticente, não queria que eu me fosse embora. Lembro-me de a ouvir a dizer: ‘Fátima, não vás’. Mas, entretanto, a minha mãe acabou por ceder”, relembra Fátima, adiantando que o seu pai não deixou que elas se despedissem.

O dia em que partiram para Portugal está gravado imaculadamente na memória de Fátima. Recorda-se de ver a mãe a entrar no portão no fundo da quinta. “Tinha dois caminhos, um para pessoas e outro para carros. Nesse momento, o meu pai arrancou com o carro e eu estava colada ao vidro de trás a dizer adeus à minha mãe”.

Fátima e o pai foram morar para o município da Maia. 

Inicialmente, custou-me imenso. Porque eu cresci e tive uma infância sem mãe. Foi muito complicado, especialmente porque não sabia falar português. Eu só sabia falar com o meu pai em inglês, mas ele já era uma pessoa de idade e não conseguia dar-me a atenção de que eu precisava na altura”, diz Fátima enquanto tenta impedir que as lágrimas corram pela pele mulata. “Custou-me muito”, continua, “chorei várias vezes e pedi ao meu pai para me ir embora, mas ele recusou”.

 

 

A correspondência entre Fátima e os amigos no Zimbabwe

 

 

A troca de cartas com a mãe e com os amigos no Zimbabwe era das poucas coisas que lhe davam algum reconforto. 

Mas, a certa altura, as cartas que enviava começaram a ser devolvidas com a mensagem “morada incompleta”.

Vou ser sincera. Houve um ponto em que desisti. Porque eu não tinha fé que a minha mãe estivesse viva. Não sabia para onde é que eu me havia de virar. Desisti”, recorda Fátima. 

À procura de Dorory

Ao ouvir as palavras de Fátima, a namorada do filho quis ajudar e propôs um plano: “Ela teve a ideia de procurar os nomes no Facebook. Eu disse-lhe, ‘achas, Célia? Por Facebook não dá. Lá no meio da tribo eles lá têm Facebook”, conta entre risos. 

Ainda assim, pesquisaram o nome de todos os familiares na rede social. Nada. “Entretanto lembrei-me de procurar o nome ‘Doroty’”, afirma, enquanto explica que quando tinha 13 anos recebeu uma carta de uma amiga da mãe com esse nome. “ Eu já nem me lembrava dela e nunca valorizei muito aquela carta. Até hoje”, prossegue Fátima. 

Apareceu a senhora e realmente era ela, fui ver a morada e correspondia. Pedi-lhe amizade no Facebook e começámos a falar pelo Whatsapp”, revelou Fátima à TVI24, ainda com a voz tremida.

 

 

A carta de Doroty que ajudou Fátima a reencontrar a mãe

 

Por mensagens, Doroty disse a Fátima que se recordava dela, mas que não sabia do paradeiro da mãe, porque já não estava com ela há vários anos.

Sabia apenas que ela chorava imenso pela filha, porque era a única menina dela”, afirma Doroty que trabalha num hospital a cerca de 35 quilómetros do local onde Fátima nasceu. 

Doroty tentou ver, através dos contactos que tinha no hospital, se alguém tinha estado em contacto com a mãe de Fátima, ou se sabia se ela estava viva. 

O reencontro

Fátima esperou. Até que, no passado dia 20 de janeiro, sentiu o vibrar do telemóvel.

Estava a trabalhar e vejo a luz a acender. Era uma mensagem da Doroty a dizer que eu era uma sortuda, porque tinha conseguido o contacto da minha mãe e ela estava viva, sim”, recorda Fátima, sublinhando que ficou em estado de choque. “Já chorei tanto”, diz, “que naquele momento não conseguia chorar. Parecia que tinha bloqueado”.

 

A mãe de Fátima em Gumtree, no Zimbabwe

 

O coração de Fátima disparou e começou a enviar várias mensagens. “A Doroty disse que no sábado (dia 25 de janeiro) tinha folga e ia tentar encontrar-se com a minha mãe”.

Nesse sábado, Fátima lembra-se de passar o dia inteiro com os nervos à flor da pele. “Será que ela foi? Será que conseguiu encontrar a minha mãe?”.

Entretanto, começo a receber fotografias pelo Whatsapp. Quando eu as abri, vi que era a minha mãe. Porque era a minha cara. E eu já não me recordava da cara da minha mãe. Aí sim, aí chorei, tremi, tudo”, recorda.

 

Doroty escreve a Fátima: "Minha querida, tens tanta sorte. A tua mãe está viva"

 

Quando regressou da tribo, Doroty enviou-lhe o contacto da mãe."Não tive coragem de ligar no dia. Não sabia o que dizer, não tinha palavras”.

Deixou arrefecer os ânimos, ganhou coragem e, no dia seguinte, ligou.

Atendeu-me um senhor que perguntou se eu era a Beauty? Eu no Zimbabwe era conhecida por Beauty, não Fátima, pelo menos até aos 11 anos, até o meu pai me levar para Portugal”, diz.

Fátima perguntou pela mãe e o senhor respondeu-lhe que estava mesmo ao lado dele. Passou-lhe o telefone.

A minha mãe começou a chorar, a dizer que tinha rezado muito por mim e que gostava muito de me ver. Passaram 30 anos e voltei a tratar alguém por mãe. Foi muito estranho”, confessa. 
 

Comecei a sentir aquilo que uma mãe sente"

Sílvia é professora primária e amiga de Fátima. Ao ouvir a história deste reencontro, criou um grupo no Facebook com alguns amigos para angariar dinheiro para satisfazer as necessidades básicas de saúde e alimentação da mãe de Fátima.

“A realidade de um país daqueles é muito dura, por isso a mãe da Fátima encontra-se mal de saúde e passa muitas dificuldades, chega a passar fome”, revela Sílvia. 

 

Fátima só pensa agora em voltar a ver a mãe com os próprios olhos. Já enviou cerca de 100 euros à mãe, que lhe disse que era suficiente para alimentar a família durante mais ou menos duas semanas. Mas ela queixa-se de dores nos rins e Fátima teme que não tenha o acompanhamento médico necessário, até porque os medicamentos são escassos na vila onde mora. 

 

 

Numa das cartas que recebi da minha mãe, lembro-me de ela dizer que se sentia doente com saudades. Só agora que fui mãe é que percebo isso. Até ser mãe, sofri como condição de filha, agora comecei a sentir aquilo que uma mãe sente”, confessa Fátima.

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