Linguagem inclusiva: falar para todxs, ou "desrespeito" pela Língua Portuguesa? - TVI

Linguagem inclusiva: falar para todxs, ou "desrespeito" pela Língua Portuguesa?

  • Beatriz Céu
  • 17 out 2021, 09:00
Linguagem inclusiva visa promoção da igual visibilidade de todas as identidades de género

A adoção de uma linguagem inclusiva na Língua Portuguesa é vista como uma forma de promover a igualdade, mas há quem alerte para o risco de "dificultar" ou até "ridicularizar" a comunicação

A adoção de uma linguagem inclusiva, promotora de diferentes identidades de género, tem vindo a ser discutida em vários pontos do mundo, sobretudo em Espanha, onde a questão causou polémica, por posições distintas entre o governo e a Real Academia Espanhola (RAE).

A ex-vice-presidente do executivo, Carmen Calvo, defendia a introdução de uma linguagem inclusiva na Constituição espanhola, algo que foi rejeitado por aquela instituição, responsável pela regularização linguística dos países com língua oficial espanhola.

De acordo com a RAE, não há motivos para modificar a Constituição espanhola, pois a utilização genérica do género masculino “não pressupõe qualquer discriminação sexista”.

Associações defendem discurso inclusivo na Língua Portuguesa

Em Portugal, porém, as associações promotoras dos direitos das mulheres e dos direitos LGBTQI+ não partilham da mesma opinião.

Para a presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, Ana Sofia Fernandes, a linguagem inclusiva é “uma comunicação livre de estereótipos, o que implica eliminar expressões sexistas”, associadas ao uso genérico do masculino.

Embora esta questão assuma particular importância para as mulheres e para a comunidade LGBTQI+, a adoção de linguagem inclusiva, explicou, visa a promoção da visibilidade de todas as identidades de género e orientações sexuais.

Por essa razão, Daniela Bento, que integra a direção da Associação ILGA (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo), classifica o discurso inclusivo como “uma linguagem que recebe todas as pessoas da mesma maneira”, pelo que não deve ser visto como um mero “detalhe” para minorias.

A introdução da linguagem inclusiva não passa apenas pela neutralização do discurso; na verdade, “a especificação dos sexos é, muitas vezes, fundamental para promover a igualdade entre mulheres e homens”, sobretudo num contexto social assente na desigualdade, explicou Ana Sofia Fernandes, em declarações à TVI24.

Um exemplo disso mesmo é a desigualdade salarial, que “afeta sobretudo as mulheres”, adiantou a responsável. Neste caso, “a linguagem não deve ser neutralizada, mas sim clara em relação ao sujeito do qual estamos a falar”, sublinhou.

“[O discurso inclusivo] pode implicar a neutralização da linguagem, mas também implica a igual visibilidade ‘delas’ e ‘deles’. Não é um processo automático; é um processo que implica reflexão, e isso é essencial numa sociedade que quer promover a igualdade para todas e para todos”, defendeu.

As várias alternativas ao uso génerico do masculino

Existem várias formas de adotar uma linguagem inclusiva, explicou a responsável da ILGA, acrescentando que todos os dias surgem novas “alternativas”, propostas por pessoas de todo o mundo.

Algumas sugerem a utilização da letra “X” ou de um “@”, em vez de “a” ou “o”, associados ao género feminino e masculino, respetivamente. Há quem utilize também as letras “e” ou o “i”, por não estarem associados a qualquer género. Assim, em vez da palavra "amigos", a linguagem inclusiva sugere, por exemplo, a alteração para o termo "amigxs", "amig@s", ou "amigues". 

Utilizando esta sugestão num exemplo do dia-a-dia, um e-mail corrente enviado pela sua empresa poderia começar com a frase "olá a todxs", ou "olá a tod@s", em vez do habitual "olá a todos", que utiliza o genérico masculino.

Estas propostas não são, contudo, uma solução viável para Lúcia Vaz Pedro, formadora para a área da Língua Portuguesa e consultora permanente do portal Ciberdúvidas, que considera que, “para se respeitar a igualdade de género, não é necessário reinventar a gramática”.

“A língua portuguesa é tão versátil, é tão rica, tão maleável e tão capaz de se adaptar a todas essas circunstâncias, que não tem necessidade de se reinventar”, defendeu.

Além disso, a especialista receia que a adoção desta linguagem ultrapasse a “normativa” estabelecida na Língua Portuguesa, correndo o risco de ter de se “mudar todas as regras”.

Para Lúcia Vaz Pedro, “há outras formas legítimas de combater o machismo”, nomeadamente a utilização de paráfrases com nomes sobrecomuns, isto é, nomes com um só género gramatical para designar pessoas de ambos os sexos, como “criança”, “pessoa” ou ídolo”.

O recurso à voz passiva também pode ser uma forma de contornar o uso do masculino genérico, acrescentou, apontando para o seguinte exemplo:

“Em vez da frase ‘o eleitor deve colocar uma cruz somente numa quadrícula’, podemos dizer ‘uma cruz deve ser colocada apenas numa quadrícula’, e, desta forma, omite-se ‘o eleitor’ ou ‘a eleitora’.

Estas sugestões estão, aliás, incluídas no "Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública", publicado pela Comissão para a Igualdade e Cidadania (CIG), em 2009. O guia dá vários exemplos de como adotar uma linguagem mais inclusiva na Língua Portuguesa, nomeadamente o recurso a nomes sobrecomuns, tal como sugerido por Lúcia Vaz Pedro. 

Assim, o manual propõe, entre outros exemplos, que se utilizem paráfrases que permitam a inclusão dos dois sexos, feminino e masculino. Deste modo, em vez de se referir a alguém como "os interessados" ou "os requerentes", poderá dizer "as pessoas interessadas" ou "a pessoa que requer".

Uma outra opção diz respeito ao uso de coletivos ou nomes que representem instituições ou organizações. Assim, em vez de se dizer "o diretor", sugere-se a utilização de "a direção", ou, em vez de se referir ao "Exmo. Sr. Presidente do Conselho Directivo", sugere-se a designação "à Presidência do Conselho Directivo".

Para a especialista Lúcia Vaz Pedro, “é preciso saber dar a volta às situações”, o que implica, por sua vez, “saber manusear a Língua Portuguesa”, uma lacuna que, na sua perspetiva, é cada vez mais evidente na sociedade.

Discurso inclusivo pode dificultar comunicação?

Lúcia Vaz Pedro admite que uma eventual introdução da linguagem inclusiva na Língua Portuguesa poderá dificultar a comunicação, e até ter efeitos contrários no que diz respeito à representatividade.

“Acho que em vez de facilitar [a comunicação], a ia dificultar, além de ridicularizar algumas situações, porque, por via de tentarmos incluir, estamos a discriminar. Eu sei que muitas vezes há ventos de mudança e há situações em fase de transição, mas não é o caso. Aqui há um total e absoluto desrespeito pela Língua Portuguesa”, defendeu.

Apesar das diferentes posições quanto a possíveis alternativas para a adoção de um discurso inclusivo, a especialista de Língua Portuguesa e as responsáveis da PpDM e da ILGA convergem na ideia de que “as pessoas estão mais atentas” e mais “sensíveis” a esta questão, sobretudo as gerações mais jovens.

Escolas e associações ativistas são contributo importante

Ana Sofia Fernandes reconhece que “as escolas têm tido um contributo significativo” nesse sentido, uma vez que os manuais escolares já incluem, por exemplo, “imagens que promovem a igualdade”. Por isso, a presidente da PpDM diz não ter dúvidas de que “há uma geração que já está a crescer imbuída neste espírito de igualdade”.

Mas, para Daniela Bento, o ativismo também assume particular importância na sensibilização da sociedade para um discurso mais inclusivo. Apesar da “resistência” de algumas gerações, a responsável reconhece que as mudanças não ocorrem “de um dia para o outro”, pelo que é necessário começar por “criar hábitos”.

“Dentro da ‘bolha’ do ativismo, conseguimos ter algum sucesso no entendimento desta necessidade de linguagem inclusiva. Mas, fora desta bolha, as pessoas não entendem o porquê da mudança de linguagem”, lamentou.

Nos últimos anos, vários esforços têm sido feitos no sentido de um adotar uma linguagem mais inclusiva na Língua Portuguesa, nomeadamente ao nível das instituições, como o Conselho Económico e Social (CES), que publicou em maio deste ano um manual que “apresenta alternativas ao uso do universal masculino”, bem com vista à “inclusão de todas as pessoas” em documentos institucionais.

Para a presidente da PpDM, a adoção deste manual por parte de um organismo do Estado “é um sinal” de uma maior “abertura” da sociedade portuguesa para com esta questão, e o futuro, acredita, será de uma maior inclusão por via linguagem.

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