Madeira: moradores não esquecem o dia em que perderam tudo - TVI

Madeira: moradores não esquecem o dia em que perderam tudo

Moradores recordam as histórias e as memórias que foram apagadas pela força impiedosa das chamas que consumiram na totalidade 177 edifícios, deixando 51 famílias sem casa

Basília Barreira percorre as divisões da sua casa, consternada e em silêncio, pois ali não resta nada e o chão que pisa é o telhado que se abateu na sequência dos incêndios que fustigaram a Madeira.

Eu nasci aqui e esta casa diz-me muito. Tem a história da nossa família. As recordações que nós tínhamos estavam nesta casa. E, agora, é como chegar a um sítio que não diz nada. Nós temos a ideia da nossa casa aqui, na nossa cabeça, mas chegamos? Está a perceber? Não tem nada", desabafou à agência Lusa.

Basília Barreira, 50 anos, viveu com a família (o marido e dois filhos) naquela casa, no Caminho do Lombo, freguesia do Monte, Funchal, até terça-feira, 9 de agosto de 2016, dia em que o fogo, vindo das zonas altas, atingiu o local e destruiu tudo.

Eu saía nesse dia do serviço às nove [21:00] e o meu marido saía às onze da noite. Só quem estava era a minha filha Catarina e o meu filho Afonso. E eles, então, é que presenciaram mais de perto", explicou, realçando que, quando se apercebeu da gravidade da situação, já nada pôde fazer.

Mesmo com a casa completamente arrasada, Basília Barreira passa os dias por ali e, à noite, regressa à residência dos familiares que lhe dão abrigo. Curiosamente, um anexo, que servia também de garagem, não foi atingido, embora tudo ao redor tenha ficado queimado.

O nosso instinto foi sair só com aquilo que tínhamos vestido e pensar ‘pronto, a situação vai-se resolver’", contou Catarina, de 22 anos, filha de Basília Barreira, realçando que a situação ficou descontrolada a partir do momento em que o lume lhes apareceu “mesmo à frente".

Catarina explicou que ela e o irmão se mantiveram dentro de casa, com as portas e as janelas fechadas, acompanhando o evoluir dos acontecimentos pela televisão, até que se aperceberam de grande agitação na vizinhança.

E aí, saindo de casa, comecei a ver toda a gente aqui, os vizinhos a descer por ali abaixo, nos carros, a chorar", relatou, sublinhando que não deu tempo para mais nada a não ser fugir.

O fogo ganhou proporções descomunais, estimulado pelos ventos fortes e a elevada temperatura ambiente, a rondar os 38 graus.

Basília Barreira e o marido puderam, finalmente, regressar a casa por volta das 23:00 e, vendo que o anexo estava intacto, pensaram que a casa teria escapado.

Mas, depois, vi claridade lá dentro e então percebi que era lume", recordou com mágoa, acrescentando: "Consumiu tudo, tudo, tudo. Não restou nada. É uma coisa que não tem explicação".

Umas centenas de metros mais acima, na Travessa dos Poços, Rui Nóbrega, de 60 anos, encontrava-se a descarregar material de construção, com a ajuda do filho mais novo, para recuperar as partes da casa que o fogo destruiu, sobretudo ao nível do jardim e do portão.

Mesmo ao lado, um vizinho ficou só com a roupa que tinha vestida.

Quando o fogo atingiu a zona, Rui Nóbrega correu para casa da mãe, a pouca distância, onde passou a tarde e a noite a deitar água por todo o lado.

Os meus filhos é que ficaram em casa. Depois eles tiveram de caminhar, porque já não podiam com o calor e o lume", contou, lembrando que outros familiares tiveram mesmo de fugir para a zona do porto do Funchal, numa noite em que o fogo chegou ao centro histórico da cidade.

No entanto, Rui Nóbrega recusa lamentar-se e pedir ajuda às entidades oficiais.

Ajuda é para aqueles que não têm nada. Esses é que precisam de ser ajudados. Há pessoas com crianças e não têm nada. É bastante triste. Eu vou-me desenrascando. Já estou meio habituado às dificuldades", disse.

Depois, apontando para o Caminho do Lombo, lançou um desafio: "Já desceu este caminho ali? Convinha descer, porque por aí abaixo é que está uma desgraça. Se descer, vai ver a tristeza que está por aí abaixo. Tem muita gente sem nada."

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Os incêndios que na segunda semana de agosto atingiram a Madeira afetaram sobretudo o concelho do Funchal, onde fizeram três mortos e um ferido grave, centenas de desalojados e deslocados, bem como prejuízos em bens públicos e privados avaliados pela câmara municipal em cerca de 61 milhões de euros.

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