Aprender a mendigar - TVI

Aprender a mendigar

Vender postais na rua

Um relato na primeira pessoa. João viveu meses terríveis no curso de preparação para voluntariado. Foi obrigado a vender postais para poder ir para África. Conseguiu chegar à Zâmbia, mas «não há nada de caridade ali»

João ofereceu-se como voluntário em 1996. Esteve na escola Den Reisende Høgskole pertencente à organização Humana (UFF na Noruega), num curso de «preparação para o voluntariado» de seis meses.

As primeiras três semanas foram passadas em alegria. «Deu-me grande satisfação conhecer toda a gente, executar os trabalhos necessários, até pagar o curso em avanço, e assinar um contrato com a escola comprometendo-me a recolher fundos para a organização num montante previamente estipulado».

João vivia com o grupo, com voluntários entre os 15 e os 55 anos, num velho edifício no fim de uma estrada no alto de uma montanha norueguesa, a 18km da estrada nacional, a uma hora de Lillehammer. «Sem jornais, sem revistas, sem... apenas um computador com uma ligação à Internet controlada pelo director da escola».

Havia ainda um trabalho psicológico, feito diariamente. Um questionário semanal repetitivo era apresentado aos voluntários. «Toda a gente mente. Que mentiras disseste esta semana?», era uma das perguntas de que João se recorda. Mas há outra questão que ficou gravada na memória deste português: «Empty your bucket» (Esvazia o teu balde). Expressão utilizada frequentemente significando «diz-nos tudo»).

As discussões com os directores da escola eram usuais e os argumentos com os alunos podiam ir «dos gritos, insultos até a ameaças de diversas formas».

O pior, conta João, é que «o curso de preparação» girava em torno da venda de postais e na obrigação de se «atingir o objectivo de vendas assinado em contrato». Caso contrário, «não estaríamos preparados para ir para África».

Mas objectivos não estavam a ser atingidos, recorda João. «Cada acção de angariação de fundos exigia que: partíssemos à boleia centenas de quilómetros para as cidades destino. Não percorrendo todo o caminho num dia, tínhamos de dormir na beira da estrada e seguir novamente à boleia na manhã seguinte. Nas cidades, durante o período de venda de postais, tínhamos de pedir em igrejas ou escolas, por um tecto para nos abrigar durante a noite. Em supermercados e padarias, mendigávamos por alguma comida».

O grupo vendia postais nas ruas das 9 da manhã às 18 e das 19 às 22h, de porta em porta. «Abordando toda a gente que passasse, sendo por vezes maltratados por pessoas que conheciam a reputação da organização. À chegada ao abrigo conseguido, tínhamos de contar o dinheiro conseguido por cada um».

«No final de cada dia, telefonávamos para a escola para dizer ao director quanto dinheiro tinha conseguido cada pessoa». O que era uma drama: «Alguém que angariasse um montante abaixo do estipulado pela organização tinha de telefonar ao director da escola para discutir o porquê de tal situação e como fazer para a melhorar. Frequentemente a discussão acabava com lágrimas derramadas por exaustão física e psicológica».

Quando terminava este período de angariação de fundos, percorriam de novo as mesmas centenas de quilómetros de regresso ao alto da montanha na Noruega.

Duas semanas antes da partida para África, João recorda que houve «baixas» na equipa. «Como resultado da opressão sofrida durante os seis meses, dois dos nossos companheiros entraram em depressão nervosa. Uma, fechando-se no seu quarto, tornou-se incapaz de desenvolver qualquer tipo de actividade. O outro declarou-se incapaz de aguentar a responsabilidade que pensava ir ter em África».

João conseguiu chegar até à Zâmbia, onde adoeceu por diversas vezes. «O tal seguro de que falavam e que, supostamente nós pagaríamos com as propinas, nunca chegou a funcionar. Enviávamos as contas médicas para a companhia de seguros e nunca recebemos qualquer resposta».

Sobre a Zâmbia e o trabalho que é feito com os mais pobres deste país de terceiro mundo, João só pode dizer que «são maltratados e negligenciados. Não há nada de caridade ali».
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