Revista «Análise Social» suspensa devido a «linguagem ofensiva» - TVI

Revista «Análise Social» suspensa devido a «linguagem ofensiva»

Graffiti do ensaio visual do investigador Ricardo Campos levou à suspensão da revista «Análise Social» por conter «linguagem ofensiva»

Polémica entre o diretor do Instituto de Ciências Sociais e o diretor da publicação cinquentenária devido a ensaio visual com graffiti que satirizam políticos e representantes do capital

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A revista Análise Social foi suspensa terça-feira pelo diretor do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, José Luís Cardoso, por conter um ensaio visual com «linguagem ofensiva». A publicação, cuja edição online já se encontrava disponível, estava a ser impressa na tipografia quando a ordem foi dada e esses exemplares agora «serão destruídos», adiantou o diretor do ICS à TVI24.

 

O ensaio visual intitulado A luta voltou ao muro, da autoria de Ricardo Campos, é de «mau gosto e uma ofensa a instituições e pessoas que eu não podia tolerar», justifica o diretor do ICS, que transfere o discurso dos graffiti para o discurso do autor. Além disso, esclarece ainda, o ensaio funciona como ilustração e «não passa pelo processo de avaliação científica», ao contrário das restantes reflexões académicas contidas no número 212 da Análise Social, que foram «submetidas à avaliação pelos pares».

 

Para o diretor da Análise Social, João de Pina Cabral, está em causa «um gesto de censura». O antropólogo, atualmente a lecionar na Universidade de Kent, na Inglaterra, explicou por e-mail à TVI24 que foi informado segunda-feira pelo diretor do ICS da decisão de «retirar de circulação» o mais recente número desta revista, que se publica trimestralmente desde 1963.

 

«Na minha qualidade de Director cessante (que se responsabilizou por três anos e meio da produção da revista) discordo profundamente deste ato, que associo a um gesto de censura», declarou.

 

Questionado diretamente se esta suspensão não significava uma censura, o diretor do ICS foi taxativo: «De modo algum! Trata-se apenas de garantir uma imagem de dignidade […] Estou seguro da bondade desta decisão, que não representa qualquer ato de privação de liberdade».

 

 

João de Pina Cabral contesta a suspensão porque «o ensaio visual em causa contém fotos de grafitti de rua da zona de Lisboa que refletem a frustração popular que se vive em Portugal contra as políticas de ‘austeridade’ atualmente em vigor na União Europeia, sendo acompanhado de um texto de Ricardo Campos [sociólogo que estuda estas manifestações gráficas] onde se elabora uma breve genealogia desta forma de expressão».

 

Mas para o diretor do ICS, «não estamos a falar de um blogue mas de uma revista que é uma referência». E, sendo propriedade do Instituto, considera que tem o direito a suspender a publicação.

 

 

O antropólogo social, que ainda dirige a revista que passará para as mãos do investigador José Manuel Sobral na sua próxima edição, recorda que «existe mesmo uma volumosa e respeitável tradição nas ciências sociais de estudar e preservar as formas públicas reprimidas de manifestação de insatisfação popular». João de Pina Cabral está, aliás, convencido de que «a preservação e publicação de material desta natureza não fere em nada a seriedade científica da revista».

 

O autor do ensaio visual que esteve na origem da suspensão da revista Análise Social contesta decisão do diretor do Instituto de Ciências Sociais, que considerou que a publicação continha uma «linguagem ofensiva». Para Ricardo Campos,  é um «ato de censura».  «Mau gosto? Aquilo não é uma revista de decoração, é uma revista científica. Não me parece que o objeto de estudo em si sejam menos dignos dos cientistas sociais», contesta o autor do ensaio visual, que lembra o tempo em que vivemos: «Passam 40 anos do 25 de abril e deve haver liberdade de autonomia para as pessoas em todas as matérias».

 

 

Mas, afinal, do que trata este polémico ensaio que fez parar as rotativas tipográficas? Em «A luta voltou ao muro», o autor contextualiza historicamente a escrita não autorizada nos muros, os graffiti, e faz notar que «nos últimos anos parece ter despontado nas paredes uma nova vontade de comunicação política».

 

 

Para Ricardo Campos, que tem como campo de investigação precisamente os graffiti, sobre os quais já escreveu em várias publicações científicas, as paredes de Lisboa enunciam uma «revolta difusa, mas para acicatar o poder político, satirizar a classe partidária e afrontar o status quo».

 

Leia o ensaio do investigador Ricardo Campos que acompanha os graffiti:

 

A luta voltou ao muro

 

A escrita no muro  de forma não autorizada, vulgo graffito, é uma prática antiga. Há exemplos da sua existência que remontam  à antiguidade clássica, na Roma antiga ou em Pompeia. Comum a estas formas de expressão de índole vernacular é a recorrente veia satírica e contestatária das mensagens. A afronta ao poder e aos bons costumes tem encontrado no muro e nas formas anónimas de comunicação um reduto altamente criativo. Especialmente relevantes são os graffiti executados no espaço público, disponíveis para uma incomensurável plateia. A falta de identi- ficação de um destinatário particular torna esta forma de comunicação ainda mais curiosa, assemelhando-se às estratégias comunicativas da pro- paganda política e da publicidade. Ao invés destas, o graffiti é executado pelo cidadão comum, geralmente na obscuridade.

 

Na nossa história  mais recente alguns exemplos históricos  merecem destaque, pela forma como foram marcando os nossos imaginários. Aquilo que atualmente  encontramos  impresso nas nossas cidades não pode ser apartado dessa linhagem histórica. Joan Gari, académico catalão que escreveu uma excelente obra sobre a semiologia do graffiti contem- porâneo, identifica basicamente duas tradições: a europeia e a norte-americana. A europeia teria por característica principal a escrita, em forma de máxima, de natureza poética, filosófica ou política. Exemplo máximo dessa tradição seria o tipo de graffiti que emergiu durante o Maio de 68 francês. Por contraste, a tradição norte-americana está fortemente vincu- lada à cultura de massas e à sua iconografia pop, sendo marcada por uma expressão eminentemente figurativa e imagética.

 

As cidades portuguesas, principalmente os grandes centros urbanos, foram invadidas nas últimas décadas pelo graffiti de tradição norte-americana. Composto por tags, throw-ups e murais figurativos de grandes dimensões, esta é uma manifestação visual que faz hoje parte da nossa paisagem. A globalização deste formato de graffiti significa que, disperso pelo planeta, encontramos  uma  linguagem comum,  com mecanismos de produção e avaliação estética idênticos. A hegemonia desta expressão mural não nos deve fazer esquecer aquela que é a manifestação mural mais marcante da nossa história recente: o mural pós-revolucionário. O período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974 foi marcado por uma profu- são de propaganda política que recorria ao muro como principal suporte. A iconografia de então, em que se destacavam Marx, Lenine ou Mao, acompanhados por representações colectivas do povo, do operariado ou campesinato, cedeu paulatinamente  o lugar aos politicamente inconsequentes tags.

 

Porém, nos últimos anos parece ter despontado nas paredes uma nova vontade de comunicação política. A grave crise económica e social que eclodiu em função das fortes medidas de austeridade impostas pela coligação de governo psd-cds,  parece ter mobilizado os cidadãos para atuarem politicamente à margem dos mecanismos convencionais de expressão da vontade política. As grandes manifestações que se realizaram nos últimos anos, organizadas por associações e coletivos não-partidários são um bom exemplo disso. As paredes parecem, também elas, servir cada vez mais para expressar não apenas uma revolta difusa, mas para acicatar o poder político, satirizar a classe partidária e afrontar o status quo. Através de palavras, de slogans, de murais pintados a aerossol ou através da técnica do stencil, vários são os exemplos destas manifestações que pude recolher nas ruas de Lisboa. As imagens fotográficas que aqui se reproduzem visam, precisamente, retratar esta dinâmica de manifestação popular.

 

Ricardo Campos

Cemri-Universidade Aberta 

 

 

Notícia atualizada com a posição do autor do ensaio visual, o sociólogo Ricardo Campos.

 

 

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