Este país não é para bolseiros - TVI

Este país não é para bolseiros

(arquivo)

Alguns têm dificuldades em sobreviver. E todos querem um contrato de trabalho. Estão fartos de ser precários e não fazem ciência por caridade

É preciso ouvir para acreditar. Vou tentar que lido seja igualmente inacreditável. Falo de bolseiros com bolsas em atraso: à procura de casos, deparei-me com mais do que um artigo pode suportar. As regras do jornalismo dizem para usar os exemplos mais paradigmáticos ou extremos. Mas aqui não há regras. Podem ficar seis meses sem bolsa, dependendo de pais e amigos para sobreviver. E nem podem «desenrascar-se» com outra ocupação enquanto o Estado não lhes paga: assinaram um documento a jurar exclusividade e se falham porque têm fome, a bolsa é retirada.

O cenário é de um «país que não é civilizado», mas Sílvia acreditou nele. Com uma filha pequena e um projeto que universidades internacionais estão dispostas a pagar para ter, mudou-se para os Açores. Procura a cura para o cancro em animais marinhos que vivem ao largo da ilha. Animais que sobrevivem expostos a tóxicos em quantidades mais que suficientes para provocar cancro. Sílvia Lino quer descobrir: se eles sobrevivem, poderíamos nós também sobreviver?

Sílvia é que tem dificuldade em sobreviver: com uma bolsa de doutoramento mista tem de fazer um mês este ano nos EUA e ainda não recebeu a verba para isso. Comprou do seu bolso o bilhete e conta com a família para pagar as despesas na Califórnia, já que a faculdade norte-americana não lhe permite viajar sem que tenha o mínimo para viver. Tendo em conta o tema, a universidade norte-americana estava disposta a pagar-lhe a bolsa na totalidade, se ela levasse a sua investigação para lá. Claro que isso significava perder o controlo das suas descobertas e eventuais patentes, coisa que Sílvia não quer: prefere manter-se em Portugal.

Mas queixa-se que a ciência é precária, mesmo que o seu projeto tenha sido aprovado para quatro anos. Isso não a impediu de ficar seis meses sem bolsa, longe da família, com uma criança. «Vai persistir?», pergunto-lhe. «Não sei. Persisti até agora. Se calhar vou desistir».

O ambiente não é melhor no Minho; Joana Campos é bolseira de doutoramento e sente que tem a mesma proteção que um recibo verde. «No fundo somos falsos recibos verdes, com uma declaração de exclusividade e pagos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, mas sem direito a subsídio de desemprego. E os descontos são voluntários: podemos descontar para o seguro social, e depois a FCT devolve essa verba». Mas isso também não tem acontecido.

O ministro admite um atraso no pagamento das bolsas, depois de os investigadores terem dirigido uma carta aberta a Nuno Crato. Mas o Ministério da Educação alega que os processos de aprovação de bolsas e de verificação de documentos são morosos.

A Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC) sublinha que mais «incompreensível» que o atraso na aprovação é o adiamento dos pagamentos de bolsas cujos processos estão concluídos e aprovados.

A FCT respondeu já a estas acusações, garantindo que há três centenas com projetos por aprovar e que todos receberão com retroativos.

Até lá, é o sufoco. Mesmo para quem tem os vencimentos em dia, mas dificilmente vislumbra o futuro. Marta Monteiro está já numa bolsa pós-doutoramento e depende de renovações sucessivas.

Era preciso que a «legislação protegesse os bolseiros e aqueles que seguem uma carreira de investigação». Marta, especialista em imunologia, gostava de ter um contrato: «Não para sempre, porque devemos ser avaliados. Mas porque é que sentimos que a nossa vida é provisória?»

Todos os bolseiros pedem o mesmo: um contrato de trabalho. É o que o Bloco de Esquerda propõe «para os investigadores científicos em início de carreira, que se encontrem há mais de dois anos integrados em projetos de investigação, e atribuições de prestações sociais na eventualidade de desemprego, doença, parentalidade, desemprego, velhice ou morte».

Parece básico para um investigador que trabalha ao serviço da ciência e do país, mas não é.
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