Primeiro biógrafo de Che Guevara oferece biblioteca a Cascais - TVI

Primeiro biógrafo de Che Guevara oferece biblioteca a Cascais

  • Paulo Delgado
  • 31 jan 2017, 00:00
Fidel de Castro era um "ator", um "sedutor" e um "produto jesuíta"

Embaixador Fernandes Fafe celebra os seus 90 anos a doar milhares de livros que o acompanharam pela vida. Na qual, a América Latina esteve sempre presente. Com capítulos onde se inclui até uma “rocambolesca” visita a Cuba com Mário Soares, antes do 25 de Abril

O livro "De Cuba al Terzo Mondo" é apenas um dos milhares que lhe passaram pelas mãos. E no caso, até foi escrito por si, José Fernandes Fafe, sob o pseudónimo de David Alport. Muitos anos antes de se tornar embaixador e ser o primeiro a representar em Havana, o revolucionário Portugal saído do 25 de Abril.

Esta terça-feira, na Casa da Horta da Quinta de Santa Clara, a Biblioteca de Cascais recebe todos os seus livros. Uns bons milhares.

Não sei ao certo quantos são. Quando mudei de casa, comecei a dar livros. Posso ter dado uns mil. Teria talvez uns seis mil, portanto, serão uns cinco mil”, refere José Fernandes Fafe em conversa com a TVI24.

O município de Cascais explica-se como destinatário da biblioteca do diplomata e escritor, nascido no Porto, em 1927.

Vivi em Cascais uns vinte a trinta anos, nos anos 60 e anos 70. Nunca li e comprei tantos livros como nessa altura. A minha biblioteca deu um salto quantitativo e qualitativo”, refere a fundamentação que o embaixador vai expressar, na sessão pública marcada para as 18:00.

Aprovada por unanimidade pela Câmara, a doação tem também uma justificação acrescida, relacionada com a produção literária do próprio José Fernandes Fafe.

Durante o tempo que vivi nesta vila, escrevi alguns livros. Três ou quatro. Para mim, é uma boa produtividade, que deve estar relacionada com a consagrada qualidade de vida de Cascais”, acrescenta a nota.

Um dos livros então escritos foi a biografia do guerrilheiro argentino Che Guevara, que se tornou um ícone da revolução cubana, nos idos de 60. Seria publicada em Itália, para galgar as impossibilidades colocadas em Portugal pela censura.

“Se o senhor é trotskista vai ficar-me com um ódio…”

Estamos no ano de 1959. Fidel, Raul, Che e os barbudos cubanos tinham chegado ao poder. De férias, José Fernandes Fafe viajava para perto, materializando um gosto e curiosidade precoces pela América Latina.

Fui primeiro ao México do que a Paris, veja lá”, conta o embaixador, relembrando, com normal boa disposição e risos, o rastilho que o levaria a olhar a emergente revolução cubana: “Se o senhor é trotskista vai ficar-me com um ódio de morte, porque tudo começou, por mero acaso, na casa do Siqueiros”.

À época, David Alfaro Siqueiros, pintor, um dos mais reconhecidos muralistas mexicanos já regressara há anos do exílio no Chile. Para aí fora, após a acusação de uma primeira tentativa de assassinar Leon Trotsky, um dos heróis da Revolução Soviética, perseguido por Estaline.

No México, o exilado Trotsky relacionara-se fortemente com vários pintores de então: Diego Rivera e, mais ainda, com a sua mulher Frida Kahlo. Seria assassinado em 1940. Siqueiros voltou depois.

Eu estava a ver uma casa com a minha mulher, a casa era muito bonita e aparece-nos um daqueles brutamontes, segurança, a perguntar: “O que é que o senhor quer?”. Aí apareceu um senhor, que era o Siqueiros. Convidou-nos a entrar. E num outro dia convidou-me para um pequeno-almoço”, relembra o embaixador.

Foi um pequeno-almoço que lhe iria abrir o apetite para digerir a então recente revolução cubana. Por conta de um dos presentes, com quem José Fernandes Fafe trocou ideias sobre o assunto e que o tentou convencer que “era uma das coisas mais importantes que se estava a passar na América Latina”.

Vai ser mais importante do que a revolução mexicana!, disse-me ele. Confesso que não acreditei muito, mas aguçou a minha curiosidade. E a certa altura percebi que era diferente”, relembra o embaixador.

David Alport? “A PIDE não investigou…"

Em 1967, Ernesto Guevara era abatido na Bolívia. O irrequieto Che voltara à guerrilha, após ter abandonado um talvez burguês cargo de ministro da Indústria de Cuba. Não sem antes, em Argel, nesse mesmo ano de 1965, ter criticado a política externa soviética.

Foi a sua última viagem a África. O Guevara fala como ministro da Indústria, numa reunião de países do Terceiro Mundo, e sem citar a União Soviética, faz um ataque à União Soviética”, relembra José Fernandes Fafe que se dedicava já a acompanhar a questão cubana.

Che morreu em outubro. E surgiu o desafio a José Fernandes Fafe.

Foi um empregado da Europa-América, que era consultor do dono, o Francisco Lyon de Castro. Começou a batalhar comigo para publicar um livro sobre o Guevara, com um argumento que era sólido: Você já fez o mais difícil! Tem conhecimento das coisas que as pessoas não sabem, o problema dos estímulos, o problema da posição em relação à União Soviética”, recorda.

O desafio foi aceite. Até porque, relembra o autor, “a parte biográfica podia sempre simplificar-se”. E assim foi. O livro foi escrito. “Depois, o problema era o de o editar”.

O Lyon de Castro disse-me: Eu não posso editar isto!”, recorda o autor. A solução foi vender o escrito à italiana Mondadori, que pôs no prelo "De Cuba al Terzo Mondo". De David Alport, um inevitável pseudónimo para fintar a censura e a polícia política portuguesas.

Faltava o autor. Nessa altura estava a ensinar Psicologia e em cima da minha mesa tinha um livro do Allport, um célebre psicólogo americano [Gordon Allport] e um outro livro qualquer de um David. Juntei os nomes e ficou David Alport”, explica José Fernandes Fafe.

O livro saiu poucos meses após a morte de Guevara. Só depois do 25 de Abril de 1974, “De Cuba ao Terceiro Mundo” foi publicado em português. Igual, sem revisões face à primeira versão italiana, que, diga-se, não passou totalmente despercebida por cá.

Houve um jornalista que me mostrou coisas em que a PIDE falava do assunto. Intercetaram uma carta que eu então escrevi a alguém. Queriam saber que era esse Alport. Mas não investigaram nada...”

Com Soares, em Havana, como jornalistas do PC

Durante mais de meio século, Cuba foi como que uma espécie de pedra no sapato dos Estados Unidos. Coube a Obama, no ano passado, começar a descalçar essa bota. Que agora, nem se sabe se não voltará a ficar novamente atacada.

Depois da revolução cubana, Kennedy permitiu a tentativa de invasão na Baía dos Porcos. Um ano depois, em 1962, o apoio soviético mostrou-se em força com a instalação de mísseis balísticos em Cuba. Foram treze dias de crise. O mundo viveu em suspenso, antevendo uma catástrofe de dimensões incalculáveis com uma nova guerra.

No ano seguinte, em 1963, nas páginas da vida de José Fernandes Fafe descobre-se um convite. “De um encarregado de negócios, para mim e para o Mário Soares irmos a Cuba”.

É das histórias mais rocambolescas que me aconteceram. Houve um engano qualquer e tomaram-nos por jornalistas portugueses enviados pelo PC. Só quando nos apercebemos, é que lhes dissemos: Alto lá, nós não temos nada a ver com isso. Convidaram-nos e estamos aqui”, conta.

Foi a primeira e provavelmente a única vez que o antigo presidente português esteve na Cuba de Fidel. José Fernandes Fafe lá voltaria mais vezes, nomeadamente em 1974, como primeiro embaixador de Portugal em Havana, após a revolução do 25 de Abril. Por escolha e indicação do amigo Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros. Que não ficara propriamente convencido com o que vira anos antes.

Em qualquer sítio onde íamos ele dizia-me: “Isto nunca mais vai haver eleições!” Percebeu que aquilo levava uma outra direção”, ri a recordar o embaixador.

Cuba e o Novo Testamento

Carlos Rafael Rodriguez “era o terceiro homem de Cuba”, com quem José Fernandes Fafe tinha uma relação “puramente intelectual”. Por aí e, posteriormente em Havana, pelo encaixe necessário para lidar com a sedução de Fidel passaram os propósitos diplomáticos portugueses de 1974

Os cubanos estavam a apoiar com grande força os movimentos de libertação em África. A ideia era um bocado a de os levar a parar com isso. Convencendo-os que tudo se iria resolver, levando mais ou menos tempo”, explica José Fernandes Fafe.

O tempo foi correndo. Até à independência das colónias portuguesas, especialmente de Angola, para onde Fidel pôs em marcha a Operação Carlota. Uma ponte aérea de apoio que ali manteve os cubanos durante 16 anos, até 1991.

Muito antes disso, José Fernandes Fafe deixou Cuba. Foi depois diplomata no México, em Cabo Verde e na Argentina. Voltou a Portugal, sempre com mais livros. Dos quais agora, só irá conservar consigo, uns 200 a 300.

Tenho aqui todos os dicionários. É uma lógica dos dicionários, uma lógica de trabalho”, esclarece.

Mais tarde, esses livros seguirão o destino dos restantes milhares, que vão já para a biblioteca de Cascais. Tal como outros, que ainda venha a comprar.

Por acaso, o último livro que comprei, não fiquei com ele. Mas ia ficar. É a tradução a partir do Grego do “Novo Testamento”, do Frederico Lourenço. Comprei-o, mas acabei por oferecê-lo, naquelas coisas do Natal”, anota José Fernandes Fafe, que não deixa de sublinhar: “Já voltei a tentar comprar esse livro, mas estava esgotado. Mas hei de comprá-lo.”

 

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