“Muros são aviso das guerras que estão para vir” - TVI

“Muros são aviso das guerras que estão para vir”

  • Paulo Delgado
  • 24 nov 2016, 17:01
José Jorge Letria

Histórias dos muros, antigos e recentemente prometidos, constroem o novo livro de José Jorge Letria. Que deixa um alerta para o que sempre significaram e deixam adivinhar. Sem que Portugal se possa considerar a salvo

"Muros - Os Muros Que Nos Dividem" é o título. José Jorge Letria, 65 anos, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, apresenta as histórias do que levou os homens, ao longo do tempo e por todo o planeta, a erguer barreiras entre si. E porque pretendem continuar a fazê-lo.

A Grande Muralha da China, as Muralhas romanas de Adriano e Antonino, que mudaram a paisagem do norte da Grã-Bretanha, o Muro de Berlim têm lugar neste livro. Tal como as barreiras que se erguem na Palestina, as que se pretendem construir na Hungria e as que estão prometidas nos Estados Unidos.

Numa interrupção da poesia e dos “livros para crianças” que têm sido a sua imagem de marca, José Jorge Letria apresenta agora um “livro esteticamente bonito, mesmo falando de um tema áspero”. Que o incomoda e obriga a prestar “um testemunho pessoal de preocupação crítica, enquanto cidadão que sempre esteve envolvido nos combates de cidadania”, como salientou em entrevista ao TVI24.

O livro "Muros - Os Muros Que Nos Dividem" é lançado esta quinta-feira, apresentado por Nicolau Santos, “um amigo e grande jornalista de Economia, que tem usado o espaço onde escreve para divulgar poetas e a poesia”.

Qual é a ideia deste livro?

A ideia é um pouco distante no tempo. Não foi motivado nem pelas eleições nos Estados Unidos, nem pelo Brexit. Foi resultado da minha observação como cidadão, como homem, como jornalista, que fui durante mais de 30 anos, daquilo que se está a passar no mundo. Verifiquei que cada vez há mais muros, com uma função e um objetivo muito semelhantes aos que presidiram à construção de outros muros na antiguidade, nomeadamente a Muralha da China, a Muralha de Adriano e a Muralha da Antonino. O objetivo é sempre o de proteger património, proteger pessoas, impedir pessoas de sair e impedir pessoas de entrar.

Estive duas vezes no Muro de Berlim, estive na Muralha da China e percebi que nesta época da vida da Europa e do mundo, os muros estão a ter um papel renovado e reforçado que acentua a agressividade, a suspeição, o distanciamento físico e também moral entre as pessoas e isso transformou-se num poderoso elemento simbólico da nossa contemporaneidade.

O leitor vai então encontrar a história de cada muro?

Peguei em cada um dos muros, conhecidos e menos conhecidos, através de um trabalho de investigação que fiz. Não sendo eu um investigador histórico, sendo um observador com formação no domínio das relações internacionais tentei contar o essencial da história de cada um desses muros, situando-os no contexto histórico, geográfico, humano, geoestratégico para que as pessoas que não os conhecem perceberem melhor do que estamos a falar.

Mas não encontramos no livro um elogio aos muros?

Nunca!

Há então uma reflexão?

O que digo logo no texto de abertura - e devo dizer que encontrei um poema no Cancioneiro de Fernando Pessoa sobre os muros, que muita gente não conhece – é que pretendo explicar o que são os muros, para que servem e a componente genericamente negativa do ponto de vista da relação humana, da relação comunitária. Explico como surgiram, depois conto a história de cada um dos muros acentuando naturalmente os aspetos negativos: os mortos, as vítimas, a começar pelo processo de construção, como aconteceu na Muralha da China, em que morreram centenas de milhares de pessoas com fome, com frio. Fui contando as histórias dos muros, caso do Muro de Berlim, onde estive duas vezes, um nosso contemporâneo e que faz parte da história europeia do pós-guerra e é um símbolo físico da guerra fria.

É fundamental as pessoas perceberem como surgiram os muros e que danos causaram à relação entre homens, mulheres e comunidades.

"Mais do que nunca é preciso construir pontes e não muros"

Há novos muros na Hungria, que pretende fazer mais um na fronteira com a Sérvia, e um outro prometido nos Estados Unidos…

São dois muros sobre os quais adiantei tanta informação quanta tinha disponível. Em relação ao projeto do muro nos Estados Unidos baseei-me naturalmente em afirmações que se estavam a produzir em plena campanha de Donald Trump. Portanto, tenho um capítulo dedicado ao muro com o México, com a reação dos mexicanos, do presidente mexicano. Em relação ao muro da Hungria, é um processo que acompanhei enquanto jornalista, que agora não exerce a atividade jornalística. Estive na Hungria há poucos anos e percebi o agravamento da situação politica, com a viragem profunda e agressiva à direita, com uma extrema-direita populista. Portanto concentrei-me também neste muro que é um muro que vai marcar muito o endurecimento e o aumento da agressividade a leste, relativamente aos seres humanos e contra os elos de solidariedade que devem ligar quem precisa.

Há razões válidas para estes novos muros?

Baseio-me numa frase de Bill Clinton proferida durante a campanha eleitoral. Acho que sintetiza muito do que está no nosso espírito hoje quando falamos de muros. Ele disse que mais do que nunca é preciso construir pontes e não muros. Eu adoto e identifico-me com esta frase.

Acho que o que vai fazer com que haja paz no mundo é a nossa capacidade de nos batermos por pontes e não por muros. Porque os muros dividem e isolam e as pontes criam veios e vias de comunicação.

Também é certo que vivemos numa época complicada, em que a Europa está fragmentada, a União Europeia está dividida e mais enfraquecida ficou ainda com a decisão britânica do Brexit. Que enfraquece a União Europeia e enfraquece a Grã-Bretanha. O Brexit é um muro! Havendo ou não um muro em Calais, é um muro entre a Grã-Bretanha e a Europa da União, entre os britânicos e o resto dos europeus continentais.

No final do século XX, vimos cair vários muros. Hoje, vemos reerguê-los. O que significa isto?

Isso significa, no meu ponto de vista, que a vida e a história do mundo pioraram. Ultrapassámos a fase da guerra fria com a ilusão perigosa, errónea de que ia haver uma pax americana e não mais haveria confrontos e guerras. Estamos a verificar agora que esta euforia invasiva e expansiva do capitalismo globalizado criou exatamente o contrário: veio acentuar o fosso profundo e obsceno entre os ricos e os pobres. Os ricos tornaram-se muito mais ricos e os pobres, muito mais pobres. E sabemos ao longo da história que o ser humano sempre que foi agredido, insultado pela miséria, pela exclusão, pelo banimento, ergueu sempre os braços para se defender e para transformar a realidade, com ou sem componente ideológica.

Muros "são um alerta, uma ameaça de guerra"

Há preocupação da sua parte com a construção de novos muros?

Nós sabemos que estes muros não só impedem as pessoas de circular livremente de um lado para o outro, mas estão a ser aviso das guerras que estão para vir.

Os muros constituem uma forte bandeira de aviso de que vai acontecer muito pior do que aquilo que já temos. São um alerta, uma ameaça de guerra e são para já a confirmação de que os seres humanos afastados, normalmente não se pacificam. Logo que têm oportunidade, confrontam-se.

Não acha estranho que muros como o de Berlim ou a Muralha da China se tenham convertido em património físico da humanidade? Quase que se tornam obras de arte.

As grandes muralhas da antiguidade, caso da Muralha de Adriano, da Muralha de Antonino alteraram de tal maneira a paisagem e as relações entre povos, entre comunidades, culturas e civilizações que se transformaram em elementos simbólicos da memória coletiva e da civilização. Portanto, quando acabam, a nossa tendência é não só olhar para o lugar e lembrar o muro, mas lembrar a realidade histórica a que ele estava associado.

É natural que estes muros depois sejam lembrados não como barreiras vivas, mas como barreiras simbólicas que recordam os tempos de sofrimento, de trauma, de perda e de afastamento a que os seres humanos foram sujeitos. Não me espanto com isso, Não me sinto agredido e insultado por se tornarem elementos simbólicos. São elementos paisagísticos poderosos que nos fazem pensar na realidade histórica.

Agora, sempre que houve muralhas e muros desta dimensão, por um lado isso evitou grandes confrontos, mas abriu as portas para o agravamento de tensões que deram origem a outros conflitos. O muro não faz a paz mas abre as portas para outras guerras. É isso que eu temo que esteja a acontecer neste momento na Hungria, no México, na Palestina, na Cisjordânia.

Há forma de inverter essa situação?

Espero que o bom senso, a sensibilidade, o amor pela paz, a capacidade de diálogo, a própria cultura e a arte – que são pontes e nunca muros - ajudem as pessoas comunicar e a entender-se.

Nunca comunicámos tanto como hoje. Mas também, por outro lado, nunca estivemos tão distantes uns dos outros do ponto de vista da partilha de afetos e de razões para estarmos em paz.

Portugal: "nunca sabemos onde os muros surgem"

Podemos esperar um livro militante?

Não proponho soluções, saídas alternativas. A única coisa que digo é que os muros existem e nunca são um bom sinal. São sempre sinal de alarme e de alerta. É só isso a minha militância. Dizer que sempre que eles aparecem perto de nós, todos estamos ameaçados à beligerância, à confrontação.

Encontra hoje muros também em Portugal?

Vivemos num país que não tem uma grande tradição bélica, de confronto, de zanga. Em Portugal, não há muros visíveis, não há muros, digamos, intransponíveis, não há muros que separem civilizações, culturas, religiões. Vivemos numa sociedade que está pacificada e apaziguada num claro contexto da vida e vivência democrática.

Mas nada nos garante que o agravamento desta situação europeia, sobretudo com o norte separado do sul, com o leste cada vez mais afastado do ocidente, ninguém nos garante que não possam surgir condições para haver muros.

Não digo que Portugal vá ter muros daqui a dez, vinte ou trinta anos, mas nunca sabemos onde os muros surgem. Creio que se falássemos com os húngaros há 15 ou 20 anos, eles não iriam falar do muro que têm hoje. E também grande parte dos americanos que votaram neste ato eleitoral não devem querer um muro com o México.

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