Saramago e Lanzarote, um vulcão entre vulcões - TVI

Saramago e Lanzarote, um vulcão entre vulcões

Uma ilha de luto por um filho que se extinguiu

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Os aviões que aterram em Lanzarote desdobram-se em duas longas curvas no ar antes de se fazerem à pista. Pela janela oval, que rasga a fuselagem, entra de rompante uma pergunta para quem chega à ilha pela primeira vez: «Onde é que estão as árvores?». A colecção de promontórios cónicos que se ergue do mar está despida. Depois, de forma menos imediata, surge outra questão: «Por que razão escolheu José Saramago este pedaço de terra inóspito para se inspirar?».

Aqui, numa casa erguida sobre pedras negras, escreveu desde o «Ensaio sobre a Cegueira» a «Caim», passando por «Todos os Nomes», «A viagem do Elefante» e outras obras emblemáticas, como «As Intermitências da Morte». E foi até à morte que Saramago decidiu ficar aqui. A julgar pelo resultado da obra, a escolha não podia ter sido melhor. Talvez mais do que as latências da lava, a musa tenha sido «A Casa». Mais do que o edifício de muros brancos, de onde partiu esta sexta-feira, que tem esta inscrição gravada à entrada, a casa que ele disse que era sua. «A Pilar, minha casa», escreveu na dedicatória do livro em que a morte de repente deixou de matar.

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Na estrada que leva do aeroporto a Tías - a localidade onde viveu nos últimos anos o único prémio Nobel da Literatura Portuguesa - outro José, menos dado à palavra, diz ao repórter que já levaram o corpo do seu homónimo para Portugal. «Mas em Lanzarote decretaram três dias de luto», diz o taxista, para dar conta do apreço local pelo escritor e tentar emendar o desconhecimento da sua obra. «Sabe, eu romances não leio muitos». Depois olha em redor. E abre um gesto largo com o braço, quando se lhe fala da impressão que causa a chegada Lanzarote: uma beleza nua e negra, como aquelas raparigas de ar triste que encerram nele o segredo do seu magnetismo. «É a minha terra. Aqui vem tudo de fora. Até a água para beber. Mas é bonito», diz José. E aponta para o local atrás de onde se escondem os vulcões. Garante que lá borbulha lava.

Esta sexta-feira, um outro vulcão, que se fazia ouvir e ler desde este lugar remoto, apagou-se. Consumiu-se no local onde um outro táxi nos deixou. Pilar del Rio não está. Está só «A Casa». Uma casa vazia, com uma rua deserta pela frente. Sem ninguém a quem perguntar que conte algo sobre quem a deixou. Atravessa-se a rua e entra-se na biblioteca onde José Saramago trabalhou nos últimos anos. É um oásis no desértico Lanzarote. Ordenado e sereno. Com uma secretária simples de tampo de madeira, que sustenta alguns objectos. Livros, uma impressora, um elefante em miniatura, um busto estilizado de Camões. Sobre um dos braços da cadeira repousa uma manta vermelha. Foi assim que ele a deixou.
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