Sócrates contesta decisão do CSM sobre distribuição da Operação Marquês - TVI

Sócrates contesta decisão do CSM sobre distribuição da Operação Marquês

Pode ler aqui a carta enviada pelo antigo primeiro-ministro

José Sócrates enviou uma carta ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) a contestar a decisão do órgão sobre a distribuição do processo da Operação Marquês.

Diz o CSM que não há factos novos sobre a distribuição do processo, depois de o juiz Ivo Rosa ter pedido a investigação dessa mesma distribuição, num processo entregue ao juiz Carlos Alexandre.

O antigo primeiro-ministro não concorda com esta visão, e quer ter acesso aos relatórios. José Sócrates considera que é o principal lesado da distribuição manual do inquérito do processo Marquês e pede, em carta a que a TVI teve acesso, ao CSM que lhe forneça os relatórios que levam os magistrados a manter a posição de que não houve irregularidades nesse procedimento, em setembro de 2014.

Para José Sócrates, o facto de o juiz Ivo Rosa ter extraído a certidão considerando a distribuição nula e ilegal já é suficiente, além da abertura do inquérito por parte do Ministério Público.

Ao longo de meia dúzia de páginas, o antigo primeiro-ministro justifica porque considera que a "atribuição manual" não é legítima, ou que o argumento de que a distribuição não era necessária não tem fundamento e que é falso que o sistema estivesse inoperacional. 

Leia na íntegra a carta do antigo primeiro-ministro ao órgão disciplinar dos juízes 

Ao Conselho Superior de Magistratura

Senhores Conselheiros,
Excelências, 

A nossa correspondência parece não ter fim. Todavia, não vejo alternativa a insistir e desta vez a fazê-lo publicamente. Nas semanas que antecederam a decisão instrutória do processo marquês protestei junto desse Conselho pelas declarações públicas do Senhor Presidente que se referiam a matérias em discussão no processo judicial. Considerei particularmente grave a sua declaração relativa à distribuição do processo no dia nove de setembro de 2014 e sobre a qual afirmou que “isso já ficou esclarecido: para mim não há nenhuma violação do juiz natural”. Julgo que todos concordaremos que esta declaração é totalmente ilegítima. Com efeito, não compete ao senhor Presidente do Conselho Superior de Magistratura fazer sugestões públicas relativas a matéria processual em discussão nos tribunais.  Agora, estando em curso um processo criminal, o Conselho volta a pronunciar-se para afirmar que não encontrou “...factos novos que levassem a rever ou modificar a anterior decisão...”. 
 
Com o devido respeito, e sob reserva de melhor análise dos fundamentos de tal posição pública, posso identificar pelo menos três factos novos, a saber: 
a) um Tribunal declarou a distribuição nula e ilegal
b) está aberto um inquérito criminal na sequência da extração de uma certidão; 
c) o tribunal de instrução verificou e documentou que uma anterior afirmação desse Conselho - a de que a distribuição foi “manual por não poder ser eletrónica dados os problemas de funcionamento que determinaram o encerramento do CITIUS em Setembro de 2014” – não corresponde à verdade. 
 
Parecem-me ser factos novos bastantes para que não possam ser imediatamente afastados por lacónicos comunicados de imprensa. As questões envolvidas são bastante sérias e não serão resolvidas a golpes sumários de sintéticas declarações públicas que nada explicam. Neste sentido, e na qualidade de principal lesado de um direito fundamental e universal inerente ao Estado de Direito a que se chama de juiz natural, solicito ao Conselho que me seja facultado o referido relatório inicial, bem como o relatório que o complementou e do qual resulta a conclusão de não se terem apurado “quaisquer factos novos”. O que está em causa objetivamente é a grave suspeita de que poderá ter existido uma viciação intencional da distribuição do processo e da escolha de um juiz que, como todos os portugueses puderam ver, exibiu na comunicação social as suas pré-compreensões, os seus preconceitos e as covardes insinuações que fez relativas ao processo que acompanhava na qualidade de juiz. Fê-lo com toda a complacência do sistema. Essa complacência deve cessar imediatamente. Sem pretender retirar conclusões apressadas, mas a benefício da transparência das instituições, é de toda a relevância e importância que possam ser esclarecidas e respondidas as seguintes questões objetivas que, sucintamente, enuncio a seguir. 
                                           
A “atribuição manual” não é legítima. 

Segundo a lei em vigor a distribuição dos processos deve ser “realizada por meios electrónicos, os quais devem garantir aleatoriedade no resultado...”. No dia 9 de Setembro de 2014, nem uma coisa nem a outra aconteceu – nem foram utilizados meios electrónicos, nem foi realizado sorteio.  

Ora, a exigência legal de sorteio por meios electrónicos oferece uma dupla garantia: ao cidadão, o seu direito ao juiz natural; ao sistema judicial a integridade do processo. O primeiro ( o sorteio) assegura que o individuo terá o juiz que lhe calhar em sorte; o segundo( o meio electrónico) regista os atos processuais e salvaguarda o sistema de  manipulações com vista a escolhas arbitrárias de juízes. A chamada “atribuição manual”, que o tribunal diz ter realizado, não só é uma expressão sem cobertura em nenhum texto legal, como parece um simples expediente usado para que o juiz não fosse sorteado mas escolhido arbitrariamente. É aliás difícil perceber o duplo critério com que o Conselho trata as mesmas “atribuições manuais”- com  acusações disciplinares no caso do Tribunal da Relação e com sumários  arquivamentos no caso do Tribunal Central de Instrução Criminal.  

 2-A tripla explicação é falsa e contraditória 

Várias instâncias, entre as quais o próprio Conselho Superior de Magistratura, têm insistido numa tripla explicação para o que ocorreu. Nenhuma delas tem fundamento. 
A primeira explicação é que não havia razão para ser feita nenhuma nova distribuição na medida em que esta já teria sido feita em 2013, quando o processo foi pela primeira vez remetido ao Tribunal para a prática de atos jurisdicionais. 
A segunda é de que no dia 9 de Setembro de 2014 não teria havido distribuição electrónica, como a lei ordena, pelo facto de o sistema eletrónico Citius não estar operacional. 
A terceira é a de que a “atribuição manual” resultou de orientações transmitidas pela senhora Juíza, Presidente da comarca de Lisboa e que mais tarde foram homologadas por esse Conselho. 

Devemos olhar para as três explicações, uma a uma. No entanto, uma nota prévia é necessária para dizer que não escapa a ninguém que as explicações, dadas em conjunto, se revelam contraditórias entre si- afinal, se se afirma que não deveria haver lugar a distribuição porque ela já teria ocorrido em 2013, porque razão se invoca também a indisponibilidade do sistema electrónico, em 2014? Sendo válido o primeiro argumento, o segundo não seria necessário. O que acontece, na verdade, é que o conjunto das explicações confunde mais do que esclarece. Vejamos os três argumentos, como disse, um a um.

3- O argumento de que a distribuição não era necessária não tem fundamento 

O primeiro argumento usado é a de que a distribuição (ou, melhor dito, a atribuição, já que o tribunal funcionava nessa altura com um juiz único) realizada em 2013 continuaria válida em 2014 e seguiria válida até que o processo entrasse numa nova fase de instrução.  Ora, esse argumento não tem o mínimo de sustentação na lei., Acontece que no dia 1 de setembro de 2014 entrou em vigor uma nova lei de organização do sistema judiciário e um novo regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais. O TCIC deixou de ter apenas um juiz para passar a ter dois. E, se a lei decidiu que o Tribunal deveria ter dois juízes no seu quadro, a partir daí, a partir de 1 de setembro, os processos que chegassem ao tribunal deveriam ser distribuídos entre os dois magistrados de acordo com a lei em vigor, isto é, por sorteio eletrónico. Qualquer outra forma de atribuir e dividir os processos entre os dois juízes seria não só ilegal como também lançaria a justificada suspeita sobre o sistema judicial de permitir que no seu interior se proceda à escolha de juízes de acordo com a vontade das instituições estatais de investigação.  A suspeita é maior no caso concreto: trata-se de um tribunal em que, durante mais de uma dezena de anos , um juiz único lidou com um único departamento de investigação. Nestes casos, como se sabe da sociologia das organizações e da simples experiência de vida, a proximidade excessiva, durante anos a fio, torna mais frequentes os fenómenos clássicos de perda de autonomia, de cumplicidades espúrias e mesmo de captura de funções.  

Por outro lado, o argumento parece absurdo se visto na óptica da eficiência do tribunal. Pretender que os processos anteriores se mantivessem no mesmo juiz ( isto é, no Juiz Carlos Alexandre) e que só os novos processos fossem distribuídos entre os dois, conduziria à disparatada situação em que só um dos juízes ficaria com todos os processos enquanto o outro juiz esperaria vários meses sem quase ter ocupação, até que lhe fosse distribuído um número de processos equivalente aos do seu colega, violando, desta forma, a orientação legal de equilíbrio na distribuição de processos entre os juízes.  
  
Finalmente, acresce ainda um facto que arruína de vez esta tese: houve mudança de titular, na fase de inquérito, em vários processos. Na verdade, processos tramitados anteriormente pelo juiz único (o juiz Carlos Alexandre) transitaram, depois de setembro de 2014, para o outro juiz nomeado. A oito de Setembro, por exemplo, o inquérito número 4/13.3GALSB,  que foi desde o seu início, em 2013, acompanhado judicialmente pelo Juiz Carlos Alexandre, mudou de titular para o Juiz João Bártolo. O percurso deste  processo, e certamente de outros que não conhecemos ainda, desfaz completamente o argumento e a explicação. Afinal, este inquérito é - em tudo o que importa para esta discussão - idêntico ao inquérito Marquês: ambos começaram em 2013 e ambos foram tramitados desde essa altura pelo Juiz Carlos Alexandre. No primeiro caso, no dia 8 de Setembro foi distribuído e mudou de titular ; no dia 9 o processo Marquês não foi distribuído e manteve o seu anterior titular. Duplo critério, portanto: um critério para o dia 8, outro diferente para o dia 9;  um critério para os processos “normais” e outro critério para o processo “Marquês”. Em conclusão, a explicação da validade da distribuição de 2013, não é sustentada pela lei, nem se vislumbra um qualquer critério objetivo na prática seguida naquele Tribunal. A suspeita que se mostra manifesta é que esse duplo critério seria determinado ad hoc.  

4- É falso que o sistema estivesse inoperacional

Vejamos agora o segundo argumento apresentado - o da inoperacionalidade do sistema Citius. Segundo esta tese não teria sido possível fazer a distribuição electrónica prevista na lei em razão do colapso do sistema electrónico que se verificou nesses meses de 2014, subsequentes à entrada em vigor da reforma judicial. Este argumento desabou com estrondo depois da resposta do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça recebida nos autos. Ai é referido, com clareza, que os problemas verificados no sistema Citius só incidiram “ sobre tribunais a extinguir e novos tribunais ( comarcas). Ora, sendo o Tribunal Central de Instrução Criminal “um tribunal de competência alargada , o mesmo não foi objeto de qualquer intervenção”. O Instituto adianta ainda, para que não haja duvidas, que não houve, na comarca de Lisboa ( salvo um pedido de alteração de contadores que foi satisfeito no próprio dia) “ reporte de nenhuma impossibilidade de realização da distribuição electrónica” . A resposta é devastadora: o argumento da inoperacionalidade do Citius nunca passou de uma desculpa que parecia verosímil e que, afinal, se revelaria completa e documentalmente errado. 

5- É errónea a invocação das instruções da Senhora Presidente da Comarca. 

A terceira explicação invoca as instruções dadas ao Tribunal pela Srª. Presidente da Comarca de Lisboa e que, alegadamente, não obrigariam a uma nova distribuição, mantendo a anterior titularidade. Infelizmente, também nada disso corresponde à verdade. Aquelas instruções fazem distinção clara entre processos já em fase de instrução (“os processos de instrução pendentes deverão continuar afectos ao juiz1Dr. Carlos Alexandre”); e os processos ainda em inquérito remetidos pelo DCIAP (“ quanto aos processos remetidos pelo DCIAP, a sua titularidade deve ser definida na data da primeira remessa pelo DCIAP”). Ora, se a Srª Presidente desejasse que o mesmo procedimento fosse seguido nos dois casos (isto é,  manter a anterior atribuição) nunca teria dividido as duas situações em dois pontos distintos nem teria escrito que “a sua titularidade deve ser definida na data da primeira remessa”, o que não deixa outra alternativa de entendimento que não seja a de que se está a referir à primeira remessa depois da nova lei ter entrado em vigor, isto é, depois do tribunal ter passado a ter dois juízes titulares, nova condição, aliás, que justifica a emissão das próprias orientações. Em síntese, as orientações para não proceder a distribuição dizem respeito aos processos já em fase de instrução e não aos processos em fase de inquérito. Para estes a orientação da senhora presidente é de que a lei devia ser cumprida – a titularidade deve ser definida na data da primeira remessa pelo DCIAP. Aliás, qualquer outra orientação seria ilegal. Nenhuma instituição, nem a Comarca de Lisboa, nem o Conselho Superior de Magistratura, têm poder ou competência para colocar a Lei de lado. O sorteio deveria ter sido sempre realizado.  
                                                                                                                                                            6- Em conclusão, a “atribuição manual” é ilegal e injustificável. 

Do que acima expus, resulta absolutamente evidente que a dita “atribuição manual” do processo Marquês no dia 9 de Setembro foi realizado em violação da lei e sem nenhuma razão operacional que o pudesse justificar. Nem a lei foi cumprida, nem o sistema eletrónico estava desativado. E, afinal, teria sido tão simples cumpri-la: um simples sorteio electrónico que demora uns minutos bastaria. O que coloca a questão seguinte: porquê? Todas as dúvidas e suspeições são, a partir daqui, inteiramente legitimas. Na verdade, foi na sequência desta violação das regras legais da distribuição, que se verificaram toda a sorte de abusos cometidos durante a investigação: a detenção abusiva, a prisão para investigar, a sucessiva, escandalosa, cirúrgica e persistente violação do segredo de justiça ao serviço de uma violenta campanha de difamação que se prolongou para além de todos os prazos razoáveis. O incumprimento de regras legais do sorteio, tão simples e tão fácil de realizar, levanta a legítima suspeita de que alguém não quis arriscar um sorteio, de que alguém quis ter a certeza de um certo juiz, daquele juiz, para aquele caso, para aquele fim – um juiz ad hoc. Para ser ainda mais claro, e considerando a posição do Ministério Público, que de forma excessiva e extraordinária sempre defendeu esta forma ilegal de distribuição, a grave suspeita que resta é de ter existido um conluio para que uma das partes escolhesse o juiz da sua preferência. 

São estas, senhores conselheiros, as questões que objetivamente se colocam na distribuição do processo marquês naquele já longínquo dia de 9 de setembro de 2014 e que devem ser plenamente esclarecidas. São elas que justificam o pedido, que agora faço, de acesso ao relatório de inquérito inicial e à avaliação complementar que levou o Conselho a comunicar publicamente, no dia de anteontem, que não se apuraram “ ...factos novos que levassem a rever ou modificar a anterior deliberação do CSM...” Finalmente, e pelas mesmas razões de transparência que já expus, entendo dever tornar pública esta carta, pois estou perfeitamente ciente de que lacónicos comunicados de imprensa sobre uma questão tao sensível do Estado de Direito em geral e dos meus direitos em particular, mais que esclarecer, só têm o efeito perverso de “normalizar” o que não é normal. Pela minha parte, isso não acontecerá. Nenhum problema institucional de abuso e de arbitrariedade se resolverá com silêncio ou fingindo que nada disso existe. O escândalo existe – um tribunal declarou a distribuição do processo marquês nula e com indícios da prática de crime. Sim a distribuição do processo marquês pode ter sido viciada, logo esse. Tenho verificado o enorme esforço de muitos para que não haja escandalizados. E, no entanto, ele existe. O escândalo existe.  

Recebam, Senhores Conselheiros, os melhores cumprimentos
                                                                                                                   José Sócrates

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