Acórdão que absolveu autor de violência doméstica coleciona críticas - TVI

Acórdão que absolveu autor de violência doméstica coleciona críticas

  • atualizada às 22:54
  • 23 out 2017, 19:54

Associação de Apoio à Vítima (APAV) considera processo “iníquo e perigoso”. Mulheres juristas lembram que tribunais têm de respeitar a Constituição

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) considera que o acórdão judicial que minimiza a violência doméstica contra uma mulher, decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, é “iníquo e perigoso” porque legitima atos violentos.

A fundamentação subjacente a esta decisão judicial, para além de iníqua, é perigosa, na medida em que, ao manifestar compreensão perante atos violentos tão graves, legitima de algum modo comportamentos futuros de idêntica natureza”, refere a APAV, num comunicado enviado à TVI24.

Em causa está o acórdão que validou a pena suspensa a um homem, autor de violência sobre a ex-mulher, com a justificação do adultério cometido pela vítima.

A APAV frisou que esta decisão é um “fator de risco” que não pode ser subestimado porque não se trata da mera opinião de um cidadão, manifestada num círculo de amigos ou nas redes sociais, mas trata-se do exercício da função jurisdicional por um órgão de soberania do Estado, o que reveste esta situação de “extrema gravidade”.

Condenando “veemente” a decisão do Tribunal da Relação do Porto, a APAV considerou que esta reflete um “total desfasamento face à realidade atual e face a uma sociedade que é felizmente muito menos tolerante a atos de violência”.

O mesmo Estado que, nos últimos anos tem, e bem, investido fortemente na prevenção e combate à violência doméstica, através da adoção de legislação, políticas públicas e práticas cada vez mais promotoras dos direitos das vítimas e menos transigentes perante estas formas de violência, não pode, nem deve, dar ao mesmo tempo sinais contrários, no sentido da minimização e desculpabilização face a este flagelo”, sustentou.

"Tábua rasa não só da evolução social"

Ainda sobre o acórdão da Relação do Porto, a associação entende que recorrer à Bíblia ou ao Código Penal de 1886 para fundamentar a ideia de que o adultério é fortemente censurado pela comunidade e que, consequentemente, esta vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem sobre a mulher.

É fazer tábua rasa não só da evolução social verificada em Portugal nos últimos 40 anos, mas também da trajetória efetuada pelo direito penal português, no sentido de se despir ao máximo de considerações e conceitos de natureza moral, difíceis de operacionalizar porque amplamente subjetivos”, refere o comunicado.

A APAV salienta ainda que o juiz desembargador do processo é reincidente na utilização deste tipo de fundamentação, o que o torna “manifestamente incapaz” de julgar casos desta natureza.

Acreditando tratar-se de uma “infeliz exceção” e que a maioria dos portugueses não se revê nesta “iniquidade”, a APAV observou que esta posição do tribunal é um “preocupante sinal do muito que ainda há a fazer” nesta matéria, quer junto dos operadores do sistema de justiça, quer junto da sociedade.

"Igualdade entre homens e mulheres"

Após críticas de várias associações, também as Mulheres Juristas (APMJ) lembra que "todas as decisões judiciais se devem mostrar conformes aos comandos constitucionais atinentes ao exercício da função jurisdicional, constantes do artigo 202º da Lei Fundamental, mormente os que respeitam à dignidade da pessoa humana".

Do mesmo modo, os Tribunais devem também respeitar os imperativos que decorrem dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português, máxime a Convenção sobre a Eliminação todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – artigo 5º al. a) – e a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul) – artigo 12º -", relembra também o comunicado da associação.

Após a posição expressa pelo Conselho Superior da Magistratura - segundo o qual, "nem todas as proclamações arcaicas ou infelizes assumem relevância disciplinar" -, a APMJ diz agora que " aguardará a decisão a tomar pelo Conselho Plenário" do referido órgão.

Em conformidade, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas expressa a sua determinação em continuar envidar os seus esforços para a promoção e defesa dos Direitos Humanos das Mulheres, designadamente as que são vítimas de crimes", salienta-se.

 

“Naturaliza e desculpabiliza” ações “extremamente violentas”

A Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres também já reagiu, considerando que o acórdão “naturaliza e desculpabiliza” ações “extremamente violentas”.

As consequências deste acórdão da Relação do Porto são, entre outras, a naturalização e desculpabilização destas ações extremamente violentas, levadas a cabo por dois homens com quem a mulher manteve uma relação de intimidade”, refere a Plataforma, numa nota enviada à Lusa.

A plataforma salientou que "é evidente” a violação dos Direitos Humanos das mulheres no acórdão, através do qual o coletivo de juízes entendeu que um determinado comportamento sexual praticado por uma mulher e um homem, no contexto de uma relação extraconjugal, pode ser fundamento legitimador para o comportamento físico, mental e emocionalmente violento por parte deste para com ela.

Não é tanto pela acusação que a plataforma se indigna, mas antes pelo teor do acórdão, sublinhando que os factos a que se reportam são “extremamente violentos e não mereciam tamanha desconsideração”.

“O uso da frase 'mulher honestai por parte do tribunal remete para uma altura onde as expectativas sobre o papel das mulheres na sociedade eram extremamente rígidas, não devendo ser usada atualmente pelos tribunais, por remontar a uma época de enorme desigualdade formal”, observou.

Mudar mentalidades e práticas sociais requer mais do que a existência de leis e políticas, requer a formação das classes profissionais que atuam no âmbito da prevenção, da proteção às vítimas e da criminalização dos agressores, evidencia a Plataforma.

E requer a monitorização da efetivação das leis e das medidas de política e da sua própria aplicação pelos tribunais. Se os tribunais não aplicam a lei devem ser penalizados por isso. Foi o que, no caso em concreto, sucedeu”, observa a plataforma.

 

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