Repórter TVI: A seita do fim do mundo - TVI

Repórter TVI: A seita do fim do mundo

A história de uma profecia que já custou a morte a, pelo menos, 22 pessoas - nove polícias e 13 fiéis seguidores

José Julino Kalupeteka, líder de uma seita adventista e senhor de reconhecidos dotes oratórios, conseguiu convencer milhares dos seus fiéis angolanos de que o Mundo há-de acabar ainda este ano de 2015. E com esta profecia acabou por gerar a maior confusão, que redundou em mortos, feridos, acusações e detenções. Muita gente vendeu casa, gado e terras ao desbarato, dentro da mais pura lógica de fé: se o Mundo vai acabar, de nada valem os bens materiais. 

Dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia, o pastor Kalupeteka, 52 anos, pai de 8 filhos, decidiu formar a sua própria seita. Chamou-lhe "A Luz do Mundo". Seduziu milhares de adventistas na sua província-natal, o Huambo, e decidiu transformar em "templo ao ar livre" o Monte Sume, pequena montanha perto da aldeia onde nasceu, no chamado Sector Quilómetro 25, exactamente a 25 quilómetros da Caála, sede do município.

Ao longo de vários anos, Kalupeteka ditou as suas regras, algumas com óbvios aspectos antissociais. Por exemplo: não aceitar o Censo populacional, não deixar as crianças da seita frequentarem a escola, proibir a ingestão de frescos, bolachas e congelados; quanto a carnes e peixes, só se devem comer os animais que se viram matar ou pescar. Por causa destes comportamentos, registaram-se vários confrontos entre os fiéis de Kalupeteka e a polícia, no início de 2015, nas províncias do Bié e de Benguela. Os fiéis da seita, os "kálus", são considerados por muita gente como fanáticos, teimosos e inflexíveis. Mas Kalupeteka viu mais longe: anunciou o fim do Mundo. Uma profecia que já custou a morte a, pelo menos, 22 pessoas - nove polícias e 13 fiéis seguidores.


16 de abril: o dia fatídico     


No princípio deste ano, Kalupeteka foi intimado, inclusive por carta, a ir prestar declarações às autoridades, na Caála. Recusou. Os sobas da região, autoridades tradicionais com prestígio e poder, tentaram servir de intermediários com a Polícia Nacional e com a Justiça. Segundo o soba da Aldeia do Km 25, Kinta Mandjolo, Kalupeteka fez finca-pé e não quis sair do seu feudo do Monte Sume."Ele já tinha recusado o Censo.Depois, rejeitou a carta para ir à Caála", conta o soba. Tito Cassule, Procurador da República no Huambo, uma das províncias mais importantes do país, explica que, face aos acontecimentos e às recusas do líder da seita, a polícia foi encarregada de ir ao Monte Sume executar um mandado de captura. 

No último dia 16 de Abril, os acontecimentos precipitaram-se. Estava marcado um congresso da "Luz do Mundo" para os dias seguintes. Muitos fiéis vinham então a caminho, desde as províncias do Bié, Huíla, Benguela, até de Luanda. No acampamento, segundo o Procurador da República, não estariam mais de 250 pessoas, incluindo os guardas-costas e os seus mais fiéis seguidores, a começar por um grupo de mulheres. Um grupo de 11 elementos da polícia, incluindo o superintendente-chefe da polícia da Caála, Comandante Catumbela, e o chefe da Polícia de Intervenção Rápida do Huambo, intendente Luhengue Joaquim José, subiram ao Monte Sume para executarem o mandado de captura. Dos vários oficiais, alguns até mantinham relações cordiais com Kalupeteka. Não há testemunhos precisos ou fidedignos sobre o que aconteceu exactamente naquela altura. A verdade é que 9 dos 11 polícias, incluindo as cinco altas patentes, foram mortos à paulada e à catanada quando se preparavam para deter o líder da seita. Nas imediações, o resto do contingente policial apercebeu-se do que estava a acontecer e avançou monte acima. Na confusão, 13 homens seguidores do líder foram mortos a tiro, reconhecem as autoridades policiais e judiciais. Homens, mulheres e crianças fogem para a mata e para as aldeias vizinhas. Foge também  Kalupeteka, acompanhado por um dos filhos, os guarda-costas e os principais colaboradores, mas o líder é detido no dia seguinte numa aldeia vizinha. 


Dízimo: negócio de milhões      


Estes acontecimentos, que provocaram mortos e feridos ao longo de duas horas de fugas, perseguições e correrias, transformaram-se rapidamente num acontecimento nacional e até internacional. A UNITA e outras organizações de Oposição falaram logo a seguir em "centenas de mortos", de "massacre" e até de "genocídio". Um grupo de deputados o Parlamento Europeu, onde se inclui a deputada Ana Gomes, e um porta-voz do escritório da ONU para os Direitos Humanos, anunciaram ir pedir um inquérito internacional aos acontecimentos. O governo de Angola garantiu que as investigações estavam em curso e as instituições a funcionar. O Procurador da República no Huambo disse em Julho que ainda não foi feito um pedido formal nesse sentido. A verdade é que, acalmados os ânimos e refeitos os cálculos lógicos da quantidade de vítimas, foram decrescendo o tom das acusações e o número de mortos.
     
Hoje, Kalupeteka está detido numa prisão do Huambo, suspeito de homicídio qualificado, rebelião, desobediência e outros crimes graves. Chegaram a estar também detidos mais de 80 dos seus seguidores, mas terão sido entretanto libertados cerca de 60.
     
A Associação Mãos Livres, liderada pelo advogado David Mendes, tomou em mãos a defesa de Kalupeteka e da sua igreja. Algumas organizações, a começar pelo partido CASA-CE, com o líder Abel Chivukuvuku, já visitaram oficialmente o local. A UNITA, segundo o procurador Tito Cassule, ainda não esteve oficialmente no Monte Sume. Quanto aos número de polícias mortos, 9, todos estão de acordo, mas ninguém se entente quanto ao número de fiéis mortos. Mas em Angola já poucos falam em massacre.
     
Através da Net e do Facebook, têm sido divulgadas várias fotos de cadáveres, não reconhecíveis, alegadamente tiradas no Monte Sume. Foi divulgada também uma lista de membros de famílias ( que representam 100 pessoas fiéis de Kalupeteka) alegadamente mortas na altura. Em Julho último, a TVI foi ao Monte Sume e visitou várias aldeias dos município da Caála e do Bailundo. Os repórteres chegaram à fala com cinco homens e mulheres que constam da lista, e que estão vivos, bem como todos os seus filhos. Algumas destas famílias, que viviam no Huambo ou na Caála, regressaram às suas aldeias do interior da província e dizem esperar pelo refrescar dos ânimos. A verdade é que muitos deles mantêm a fé em Kalupeteka. 
     
O líder da "Luz do Mundo" criou um sistema organizado de pagamento do dízimo. Alguns dos fiéis que falaram à TVI, mesmo com pouco de seu, sustentam que o pagamento do dízimo é sagrado. "Está na Bíblia!". Aliás, Kalupeteka criou o seu pé-de-meia. Nos bairros de Luanda, segundo uma lista encontrada no Monte Sume, a "Luz do Mundo" recolhia milhões de kuanzas por mês. Só no Sambizanga há registo de mais de 200 mil kuanzas recolhidos num único mês. E a seita estava espalhada por várias províncias, sobretudo no Sul. Na Aldeia do KM 25, a casa de José Kalupeteka é, de longe, a mais imponente da zona. Pelas aldeias, os fiéis da "Luz do Mundo", radicais e cumprindo a regra do silêncio, recusam explicar como é que Kalupeteka explicava exactamente como é que o Mundo ia acabar. Mas todos garantem a sua lealdade ao homem que cantava, encantava e a ia convertendo cada vez mais gente e recebendo cada vez mais dinheiro.
     

Uma chusma de igrejas


Igrejas é o que não falta em Angola. São muitas e muitas centenas de igrejas, cultos, seitas e devoções. Existem seguramente mais de 1200 confissões - católicas, protestantes, evangélicas, adventistas e outras. Começam a aparecer também as mesquitas e as seitas islâmicas dos imigrantes do Golfo da Guiné e do Sahel. Nesta confusão de cultos, apenas 83 confissões estão devidamente legalizadas. 

Um projecto de nova lei sobre a liberdade religiosa está em discussão em Angola e já se instalou a discórdia. Uma das propostas é baixar de 100 para 60 mil o número mínimo de fiéis subscritores para que uma confissão/igreja seja legalizada. O projecto prevê ainda a obrigatoridade de apresentação do registo criminal e a declaração de bens e rendimentos dos seus líderes. Segundo os responsáveis de algumas igrejas, são demasiadas exigências. 
     
O "caso Kalupeteka" veio puxar para a ribalta toda esta discussão sobre as igrejas e a liberdade de culto, num país onde as pessoas são naturalmente receptivas ao contacto com o Além. Sempre com a questão do dízimo bem presente.
     
Para já, o Ministério Público prepara-se para fazer a acusação formal a Kalupeteka e a alguns dos seus principais seguidores. O advogado David Mendes, embora criticando as dificuldades que lhe terão sido postas para ir ao Monte Sume, garante que Kalupeteka "está bem e muito moralizado".
     
Pelas aldeias e cidades, os sobas e os fiéis das várias igrejas, a começar pela "Luz do Mundo" de José Kalupeteka, vão aguardando com mais ou menos serenidade os desígnios de Deus, mas sempre com algum nervosismo a Justiça dos homens.
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