«Quando falo de Saramago fico com os pêlos todos em pé» - TVI

«Quando falo de Saramago fico com os pêlos todos em pé»

No dia em que o corpo do escritor foi cremado, em Lisboa, em Lanzarote, há quem diga que os grandes homens não morrem

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À hora em que Lisboa se despedia de José Saramago, em Arrecife buscam-se os passos do escritor. Junto à marginal, três homens debruçam-se sobre o mar, ao fundo de umas escadas que mergulham no oceano. Um lança mecanicamente um braço para frente. Os outros olham vigilantes para o ponto onde deveria cair uma pedra, se o primeiro tivesse uma na mão. Mas em vez de uma pedra há um anzol com um pedaço de peixe, ligado a um dedo por um discreto fio de nylon. Tentam enganar um polvo que anda por ali. «Perdonen, señores. Alguna vez han visto José Saramago aqui?». Não respondem. Uma voz soa: «Son marroquís, no entienden. Eres Português? Eu falo un poquito de português». Atrás estão Juan Fontes e Juan Antonio García, que sorriem.

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A água azul turquesa, salpicada por alguns barcos, deixa ver o espectáculo oferecido pelos marroquinos. Mas o polvo vence por desistência. Os sin papeles partem sem almoço e incomodados com a atenção. Sem a distracção, os dois canários viram-se de novo para os repórteres portugueses da TVI. Juan García, de 47 anos carregados, trabalhava para o município na limpeza das ruas, antes de ficar desempregado. «La maldita crisis...». E Saramago? «Parecia uma pessoa muito humana. Como quando apoiou aquela rapariga sarauhi. Como se chamava?». Juan não se lembra do nome, mas diz que ficou sensibilizado por ter visto o Nobel junto a Aminatu Haidar, a activista que empreendeu uma greve de fome depois de Marrocos lhe ter confiscado o passaporte, o que a obrigou a ficar retida em Lanzarote.

O canário lembra ainda o carinho que Saramago tinha pela terra. «Ele gostava muito de promover a ilha». «Eu como canário sinto-me muito orgulhoso por ele e tenho pena que tenha falecido». Sobre as cinzas do escritor, ainda está convencido que parte irão regressar para se misturarem com a terra negra do jardim de «A Casa» de Tías. «Se não vierem será uma pena. Acho que era a vontade dele. Metade das cinzas em Portugal, metade aqui. Esta era a ilha dele».

Pele de galinha

Ao lado, Juan Fuentes, de 62 anos - o que sabe um poquito de português -, escuta e assente com cabeça as palavras do amigo. O recepcionista nocturno de um condomínio, solta depois, em espanhol: «Deverá ser triste para ele. Esteja onde estiver, perguntar-se-á: porque é que não estou num sítio e no outro?». Juan viu Saramago algumas vezes por ali e também em alguns actos oficiais. «Encontrei-o ainda numa livraria umas três vezes», acrescenta. E lamenta a irrepetibilidade desses momentos. «Era um homem do povo».

Num artigo publicado no jornal «Canarias7», o jornalista José R. Sánchez, faz o luto em forma de crónica. «Tive a sorte de conhecer José e Pilar del Río pouco depois de chegarem a Lanzarote, meses após a casualidade ter levado o alento de César Manrique, o que nos deixou sem luz. Sem o querer, Saramago converteu-se em, digamos, o novo agitador das consciências insultares». César Manrique é, talvez, o mais ilustre filho de Lanzarote. Arquitecto, pintor, escultor, trouxe de uma passagem por Nova Iorque para a ilha a vontade de «transformá-la num dos lugares mais bonitas do planeta», como confidenciou a um amigo. O seu traço eternizou-se na arquitectura local. A fundação que tem o seu nome, fundida sobre um manto de lava fria, é uma das imagens de marca de Lanzarote.

Juan também recordou a importância da chegada de Saramago depois do trágico acidente de viação, que levou Manrique, em Setembro de 1992, mesmo ao lado da fundação. Com a partida do escritor português, este homem de Lanzarote espera agora «que chegue mais alguém com ideias novas». Mesmo que diga que os grandes homens não morrem. «Saramago está vivo. Ficou muito dele. A mim, olhe como ficam os pêlos quando penso dele». E aponta para o braço em pele de galinha. «Quando falo de Saramago fico com os pêlos todos em pé».
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