Covid-19: assim luta o maior hospital do país contra a pandemia - TVI

Covid-19: assim luta o maior hospital do país contra a pandemia

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  • publicado por Andreia Miranda
  • 9 abr 2020, 09:17

No hospital Santa Maria, em Lisboa, tudo foi mudado para que se fizesse face ao surto que assolou Portugal e o mundo. Apesar das mudanças para maior segurança de profissionais e utentes, há "doentes estão muito assustados”

A vida corre contra o tempo nos cuidados intensivos do Hospital Santa Maria, onde estão os doentes mais graves com covid-19, exigindo um acompanhamento constante dos profissionais de saúde, que, apesar da adversidade, conseguem manter a serenidade e o espírito de equipa.

A entreajuda e o esforço dos médicos e enfermeiros no apoio a estes doentes foram testemunhados por uma equipa de reportagem da agência Lusa que teve a oportunidade de entrar naquela unidade depois de passar por um rigoroso processo de fardamento e de desinfeção.

Nos cuidados intensivos do Serviço de Medicina Intensiva do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) não podem entrar telemóveis. Todos os pedidos de medicamentos, equipamentos, de reforço de médicos ou enfermeiros são feitos por um serviço de rádio para garantir a máxima segurança.

Alguns doentes estão isolados num quarto, outros dividem uma sala com várias camas com o distanciamento necessário. Todos estão entubados, ventilados, e com o ritmo cardíaco monitorizado, através de um aparelho que apita à mínima alteração e alerta o enfermeiro, que assiste logo o doente.

Todos os doentes são homens, a maioria com idades mais avançadas. Entre eles está o primeiro paciente com covid-19 internado no Hospital Santa Maria há mais de 20 dias.

“Ainda está entubado, ventilado e tem um percurso clínico” prolongado, mas que “reproduz o que tem sido divulgado e partilhado pela comunidade médica e que, no fundo, é a experiência que temos tido em vários países relativamente a esta doença”, disse à Lusa o diretor do Serviço de Medicina Intensiva, João Miguel Ribeiro.

O doente está na casa dos 50/60 anos e não tinha doenças prévias significativas, o que ilustra a preocupação que existe na comunidade médica de que esta patologia, “embora claramente afete faixas etárias mais elevadas”, pode também “ganhar expressão” em doentes relativamente novos e sem comorbilidades, sublinhou.

O risco de contagiosidade e infecciosidade desta doença implicou uma “exigência acrescida” por parte dos serviços médicos, das estruturas hospitalares e da própria comunidade, disse o médico.

Foram criadas zonas de contenção nos hospitais e a necessidade de os profissionais usarem equipamentos de proteção especial que, no caso dos cuidados intensivos, obriga a um ritual rigoroso.

Antes de entrarem, os profissionais têm de despir a sua roupa, que fica guardada num balneário improvisado. De seguida, vestem um fato médico e colocam o equipamento de proteção: bata, óculos, viseira, touca, dois pares de luvas e coberturas para o calçado.

Já devidamente equipados e desinfetados, os elementos da equipa, maioritariamente enfermeiros, entram na unidade onde começa um árduo trabalho para salvar os doentes.

A Lusa pôde assistir à colocação de um doente em posição de “decúbito ventral” para melhorar a sua oxigenação que obrigou a um verdadeiro trabalho de equipa.

No final, uma enfermeira precisou de abrir por segundos uma janela para respirar o ar vindo da rua e quebrar a pressão que às vezes se sente naquele espaço, onde se luta pela vida, mas onde também impera a serenidade e a camaradagem entre a equipa.

À saída do turno, o ritual de retirar o equipamento ainda é mais exigente, porque por cada peça retirada é preciso desinfetar as mãos.

No dia da reportagem da Lusa, segunda-feira, estavam internados 20 doentes com necessidade de cuidados intensivos,

“Este número tem sido constante nos últimos dias, embora em absoluto não reflita a dinâmica dos internamentos”, disse João Miguel Ribeiro, acrescentando: “Temos tido oportunidade e a felicidade de poder transferir os doentes, porque melhoraram, para a enfermaria”.

Em média, são admitidos um ou dois doentes por dia no serviço, que continua a ter doentes sem covid-19, com doenças de diversos foros que também dependem destes cuidados.

Segundo João Miguel Ribeiro, o serviço ainda tem capacidade de resposta e o CHULN está a trabalhar “ativamente para crescer essa reserva”, contando ter esta semana mais dez camas, totalizando 56.

Ainda não há profissionais em sobrecarga porque o serviço antecipou essa realidade: fez “um trabalho de preparação e de formação” e neste momento “não há nenhuma evidência de saturação ou de sobrecarga física ou psicológica”.

“Agora sei que essa realidade, com a manutenção e até com a intensificação da expressão deste surto pandémico, vai ser inevitável e, portanto, em certa medida isso é uma realidade que também não vamos conseguir escapar”, concluiu o médico.

Tudo mudou no Santa Maria

O dia-a-dia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, modificou-se para acolher os infetados com o novo coronavírus e para poder continuar a prestar assistência com segurança aos outros doentes que precisam de ser operados ou fazer tratamentos como quimioterapia.

Os longos corredores e as salas de espera do hospital, outrora cheios de doentes e familiares que os acompanhavam, estão hoje praticamente vazios, à exceção de alguns serviços como o de oncologia e as urgências que todos os dias continuam a receber doentes.

Para os proteger, foi necessário tomar medidas, nomeadamente no Serviço de Oncologia, à porta do qual estão afixados vários avisos onde se lê: “Se teve tosse, febre, sintomas respiratórios não entre neste espaço” e “não entre sem ter passado pela triagem na oncologia piso 2”.

"Precisámos de tomar medidas de proteção para evitar que houvesse infeção de doentes que pudessem contagiar outros doentes aqui no Serviço de Oncologia”, disse à agência Lusa o oncologista Luís Costa.

O diretor do serviço explicou que as prioridades foram evitar a contaminação de doentes, de funcionários e “fazer tudo aquilo que é preciso para tentar curar os doentes que têm cancro, uma doença que habitualmente é mais letal do que a covid-19”.

Foram tomadas medidas como colocar um vidro na zona de atendimento para diminuir a possibilidade de contágio, o uso obrigatório de máscara e lavagem das mãos, e as consultas de revisão por teleconsulta.

Contudo, há doentes que precisam de continuar a ir ao hospital e são muitos. A sala de espera do serviço continua cheia, bem como o espaço onde fazem a quimioterapia.

“Temos cerca de 20 mil tratamentos por ano” e alguns podem mesmo curar, daí a necessidade de os manter. “Não queremos mortes colaterais pelo covid-19, queremos que os doentes façam o tratamento que têm de fazer”, defendeu.

Para reforçar a proteção, há uma entrada própria para os doentes oncológicos no piso 2, independente do resto do hospital, e todos passam por uma consulta prévia de rastreio.

“Se houver alguma queixa suspeita, o doente não sobe ao hospital de dia e vai fazer o teste à covid-19”, disse, contando que nas últimas três semanas foram detetados dois casos positivos.

Desde a publicação da norma da Direção-Geral da Saúde, todos os doentes oncológicos passaram a fazer o teste antes de iniciarem o tratamento.

Para Luís Costa, é preciso “manter sensatez, calma e determinação para que tudo corra bem”.

“Esta pandemia vai passar e vai continuar a haver muitos doentes oncológicos a necessitar do nosso apoio”, afirmou, considerando que “é fundamental” que continuem a ser tratados e operados a “tempo e horas”, porque “a haver erros nesta fase, não se vão dar conta deles nos próximos meses, mas só daqui a uns anos e a memória às vezes é curta”.

Também o Serviço de Urgências do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte sofreu transformações, tendo sido dividido em dois, para doentes com e sem covid.

Para o conseguir, abdicou-se de estruturas físicas, como a urgência de oftalmologia, otorrino, psiquiatria e da sala de aerossóis, contou Carlos Neto, enfermeiro chefe deste serviço.

Desde a pandemia, o Serviço de Urgências polivalente teve “uma queda significativa” no número de doentes, passando de uma afluência média diária de 500 a 600 doentes para 200 “nos dias piores”, disse a diretora do serviço, Anabela Oliveira, lembrando, no entanto, que cerca de metade eram falsas urgências.

Anabela Oliveira disse recear que alguns doentes não vão por medo ao Serviço de Urgência, que “está muito dedicado ao tratamento e orientação para doentes covid”.

O Serviço de Medicina II também sofreu transformações para internar doentes covid. O que mudou essencialmente foram os equipamentos e os procedimentos que os profissionais tiveram de interiorizar, segundo a enfermeira Conceição Barroso.

“Os enfermeiros estão habituados a um controlo de infeção, mas neste momento é um bicho desconhecido com um comportamento que ninguém estava a controlar muito bem”, o que levou a uma reaprendizagem, contou a enfermeira chefe do serviço.

O serviço tem capacidade para 21 doentes, tendo ultimamente havendo sempre entre três a cinco vagas. Alguns doentes já tiveram alta como um casal espanhol que os bombeiros levaram à Galiza.

Segundo a médica internista Marisa Teixeira da Silva, o doente mais novo tem 58 anos e o mais velho 90, sendo o tempo médio de internamento de 14 dias.

“Temos tido doentes que têm tido curtos períodos de ventilação mecânica e que voltam para nós com recuperação favorável e têm tido alta e outros em que a situação por falência orgânica se complica mais e têm internamentos mais prolongados em cuidados intensivos”, rematou.

A propósito de profissionais infetados, Marisa Teixeira da Silva disse que, até agora, só houve uma pessoa infetada que contactou inicialmente com um doente sem proteção.

A doença mais temida por doentes graves em Santa Maria

Ansiedade e pânico são os sentimentos expressos pela maioria dos doentes com covid-19 que chegam às enfermarias do Hospital Santa Maria, um medo partilhado por pacientes com doenças como o cancro, que confessam aos médicos temer morrer desta infeção.

“Os doentes estão muito assustados”, já tinham com que se preocupar e agora têm mais este receio, disse à agência Lusa o diretor do Serviço de Oncologia do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), Luís Costa.

O oncologista contou que a última doente que tinha observado “começou a chorar porque estava com medo da covid-19”.

“A senhora tem uma doença grave em estado avançado, que precisa de apoio, precisa de ajuda, e acho que tem muito mais probabilidades de vir a morrer de cancro do que morrer por covid”, lamentou Luís Costa.

Este medo também é transmitido pelos doentes infetados pelo novo coronavírus (SARS-Cov-2) quando são internados no Santa Maria, que além de ter um atendimento específico para estes casos, mantêm as outras atividades assistenciais, mas reduzidas aos doentes oncológicos, às urgências e às cirurgias inadiáveis.

“A maioria dos doentes que recebemos vêm em pânico, com níveis de ansiedade elevadíssimos, porque só o próprio nome covid-19 os deixa completamento em pânico porque associam logo a infeção grave, a morte”, disse à agência Lusa Ana Filipa, enfermeira do Serviço de Medicina II.

Quando são internados, os doentes expressam “ansiedade e medo”, uma preocupação que aumenta quando lhes são explicadas as normas a que vão estar sujeitos, como “estarem confinados a um quarto” e não poderem nem ir à casa de banho, contou.

Para aliviar a carga emocional dos doentes, o centro hospitalar conseguiu angariar ‘tablets’ para fazer videochamadas com a família, o que os põe em contacto com o mundo exterior e faz com que não se sintam tão isolados.

Esta preocupação é extensível aos familiares que todos os dias ligam para o hospital porque que não podem ver o doente durante todo o internamento e receiam não se poder despedir caso este não sobreviva, “o que é muito difícil também para o luto”, contou a enfermeira Ana Filipa.

Mas esta carga emocional também é vivida por quem lida diariamente com estes doentes, como contou a assistente operacional Paula Silva, que teve de mudar todas as rotinas no hospital desde a pandemia, começando pelo fardamento e equipamento que tem de mudar sempre que entra nos quartos e passa “a linha vermelha” traçada no chão que divide o espaço do serviço.

Esse processo exige tal disciplina que em cada parede do serviço está pendurada uma folha A4 com os 10 procedimentos que têm de ser seguido para a “remoção do ‘kit’ de cuidados básicos”.

“O desafio é ter de estar constantemente a mudar de roupa” e permanecer no quarto "enquanto o doente toma o pequeno-almoço e faz a sua higiene”, contou Paula Silva.

A agravar esta situação está a saudade que os profissionais sentem da família. “Tenho duas filhas e como o meu marido também está a trabalhar tenho de as manter em casa dos avós, porque embora tenhamos todos os cuidados, temos receio, porque não sabemos se podemos ser portadores de alguma coisa”, lamentou.

“Eu temo por mim, mas também pelos meus pais”, disse, por seu turno, Ana Filipa, acrecentando que, apesar de cumprir todas as indicações em termos de controlo de infeção, “é um descanso não estar na mesma casa que eles, que são um grupo de risco”.

Esta situação é também complicada de gerir para a médica internista Marisa Teixeira da Silva: “Passamos neste momento mais tempo no hospital do que em casa e a maior parte está separada ou isolada dos familiares de maior risco e alguns dos filhos”.

“É muito complicado gerir isso tudo, eles estão com receio por nós e nós também vamos sempre um bocadinho angustiados por pensar que é mais um, dois, três ou quatro dias que vamos ficar sem os ver e sem os poder abraçar, principalmente os filhos (…) alguns ainda muito pequeninos que não compreendem porque é que não os abraçamos”, lamentou a médica.

Para Marisa Teixeira da Silva, os portugueses “têm de ajudar” nesta missão, ficando em casa, para que “ela termine e corra tudo bem para todos”.

“Estas medidas são essenciais ou não conseguimos controlar [a doença] como temos estado a fazer até agora”, dando uma resposta adequada a todos os casos.

Este apelo também é feito pelo oncologista Luís Costa: “As pessoas têm que ser responsáveis, tem que ficar em casa e evitar contagiar outras pessoas” para que se possa “resolver isto de uma vez por todas”.

Em Portugal, segundo o balanço de quarta-feira da Direção-Geral da Saúde, registaram-se 380 mortes, mais 35 do que na véspera (+10,1%), e 13.141 casos de infeções confirmadas, o que representa um aumento de 699 em relação a terça-feira (+5,6%).

O país, onde os primeiros casos confirmados foram registados no dia 02 de março, encontra-se em estado de emergência desde as 00:00 de 19 de março e até ao final do dia 17 de abril, depois do prolongamento aprovado na quinta-feira na Assembleia da República.

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