Covid-19: prós e contras de uma terceira dose da vacina - TVI

Covid-19: prós e contras de uma terceira dose da vacina

Equidade, eficácia ou maior risco de efeitos secundários. Quais as dúvidas de mais uma dose?

A Direção-Geral da Saúde (DGS) está a avaliar a necessidade de administração de uma terceira dose das vacinas contra a covid-19 desenvolvidas pelas farmacêuticas Pfizer, Moderna e AstraZeneca. Perante isso, a task force de vacinação já está pronta e a planear a inoculação de 100 mil pessoas, que serão definidas consoante critérios de maior risco, nomeadamente doentes imunodeprimidos, que correm maior risco de desenvolverem doença grave.

Mas a administração de uma terceira dose, que já foi anunciada por alguns países, e está mesmo a ser aplicada em Israel aos maiores de 60 anos, levanta várias questões científicas e éticas.

Desde logo existe a questão da equidade. Com mais de meio ano de administração de vacinas (a primeira dose foi dada no Reino Unido no início de dezembro de 2020), começam a saltar à vista as desigualdades entre países. Se tomarmos como exemplo Portugal ou Dinamarca (dois dos países mais avançados na vacinação), ambos têm já perto de 70% da população totalmente vacinada (segundo o website OurWorldinData).

Em sentido contrário, no longíquo Ruanda, apenas 20% das pessoas receberam a primeira dose, havendo 8,2% da população completamente protegida, segundo dados do website OurWorldinData. Não é caso único em África, muito menos no mundo. Aqui bem mais perto, na Bósnia e Herzegovina, menos de 20% da população tem uma dose. Mesmo se virmos em todo o mundo, apenas um terço da população recebeu pelo menos uma dose, o que contrasta com grande parte da União Europeia, Estados Unidos ou até alguns países da América do Sul e Ásia.

Os países que mais vacinam
País Percentagem totalmente vacinada
Malta 92,6%
Islândia 74,82%
Singapura 74,14%
Emirados Árabes Unidos 74,1%
Uruguai 71,03%
Seicheles 70,9%
São Marino 69,87%
Chile 69,44%
Dinamarca 69,33%
Qatar 68,78%
Portugal 67,46%

Isso mesmo tem vindo a ser dito pela Organização Mundial de Saúde, que ainda há uma semana condenou o reforço vacinal em alguns países quando há outros sem população imunizada. Esta situação foi prevista pelo programa Covax, que tenta angariar vacinas para os países mais pobres, mas que não está a conseguir resolver todos os problemas.

Assim, coloca-se uma questão: até que ponto podemos dar terceiras doses nos países mais desenvolvidos se grande parte do mundo ainda luta para conseguir as primeiras?

Para Miguel Prudêncio, investigador no Instituto de Medicina Molecular, este é o grande contra que se coloca atualmente à administração da terceira dose, até porque, aponta, ainda não existem evidências claras dessa necessidade.

Até agora a proteção tem-se mantido. A proteção das duas doses é duradoura até ao ponto em que a conseguimos monitorizar. As vacinas têm mantido eficácia contra as formas mais graves da doença", explica, em conversa com a TVI24.

A favor da terceira dose, e em algo diametralmente diferente do argumento explicado acima, está o facto de Portugal ter asseguradas doses suficientes para cumprir o plano que já está a ser delineado pela task force.

Mas a equidade volta a ser pensada, até porque, como lembra Miguel Prudêncio, os dados ainda não apontam claramente a necessidade da terceira dose: "Há o risco de estar a chover no molhado", com a administração de um fármaco desnecessário, e que podia ser aproveitado para outras pessoas.

A ser necessária, essa mesma terceira dose poderá ser importante para proteger os grupos de maior risco, nomeadamente os doentes imunodeprimidos, que correm um maior risco de desenvolver doença grave, e cuja eficácia da vacina é menos duradoura.

Prós e contras da terceira dose
Prós Contras
Proteção dos doentes mais vulneráveis Equidade
Portugal já tem asseguradas as doses necessárias Anticorpos diminuem, mas vacina pode proteger na mesma

A importância da memória celular

Desde que saíram os primeiros estudos sobre as vacinas da covid-19 que a palavra mais ouvida foi "eficácia". Quanta tinha e durante quanto tempo, questionava-se. A dúvida mantém-se, mas há um outro conceito fulcral em imunologia de que pouco se tem falado, e que pode ser decisivo na luta contra a pandemia.

A memória celular consiste numa espécie de aprendizagem feita por parte do sistema imunitário humano, e que permite ao corpo combater um vírus para além do tempo em que é suposto durar a eficácia da vacina.

Na prática, e como explica Miguel Prudêncio, numa simplificação do processo, existem duas células importantes nesta ativação: as células B e as células T. Enquanto as primeiras servem como uma espécie de defesa, as segundas vão ser o ataque. Juntas, funcionam como uma fábrica, que pode colocar as máquinas a rolar assim que necessário.

Traduzindo, o corpo humano aprende a defender-se do vírus, e vai reagir assim que entrar em contacto com ele, algo que pode surgir até muito tempo depois da vacina, e que depende de vírus para vírus. No caso do sarampo, por exemplo, ficamos protegidos para toda a vida com a toma de uma única vacina. Em sentido contrário, com a gripe, é necessária a administração de uma vacina todos os anos aos grupos de risco.

No caso da covid-19, explica Miguel Prudêncio, é necessário esperar para ver: "Uma redução da proteção é a única forma real de saber a efetiva proteção das vacinas. As quantidades de anticorpos irem diminuindo não é, por si só, indicativo de uma perda de imunidade".

A verificação real da eficácia e a monitorização do aparecimento de casos em pessoas vacinadas ao longo do tempo é um parâmetro", acrescenta.

Como saber a quem dar a terceira dose

Alguns países anunciaram o reforço da vacinação a pessoas com base na idade, mas outros seguem o critério dos grupos de risco, direcionando-se particularmente para as pessoas que têm algumas doenças e condições suscetíveis de desenvolverem uma forma grave da doença.

Para Miguel Prudêncio, este é um caminho que faz sentido, até porque parece ser claro que a eficácia diminui primeiro nas pessoas com estas condições que nas pessoas mais saudáveis.

Se vier a ser necessária uma terceira dose por perda de eficácia, a acontecer, vai acontecer primeiro nos mais frágeis", afirma.

Neste ponto, volta a entrar em análise a monitorização dos dados que vão sendo conhecidos sobre as infeções e a evolução da doença nas pessoas vacinadas. Assim, os estudos e testes serológicos de pouco servirão, uma vez que o seu objetivo é aferir a eficácia e a duração da mesma.

O que os testes serológicos fazem é medir os níveis de anticorpos produzidos após a vacina ou a infeção. Antigem um pico e depois decaem, como em qualquer vacina. Não significa que percamos a possibilidade de produzir mais anticorpos", reforça Miguel Prudêncio.

Há mais riscos associados a uma nova dose?

Poucos meses depois de arrancar a vacinação, surgiram vários problemas relacionados com os produtos da AstraZeneca ou da Johnson & Johnson. Relatos de casos de coágulos sanguíneos associados a estas vacinas fizeram disparar alarmes, e chegaram mesmo a levar Portugal a suspender a sua administração.

Pouco tempo depois, a Agência Europeia do Medicamento viria confirmar a existência de uma correlação entre a toma desta vacina e os casos identificados, mas reforçaria a confiança no produto, destacando que os benefícios ultrapassavam largamente os riscos.

Mais tarde, e sanando toda a questão, a administração destas vacinas seria desaconselhada a mulheres com menos de 50 e 60 anos (nos casos de Janssen e AstraZeneca, respetivamente).

Com uma terceira dose, esse risco não aumenta. A opinião é de Miguel Prudêncio, que admite faltarem estudos sobre os efeitos secundários, mas afirma que "o comportamento das vacinas não vai mudar".

A probabilidade [de haver um aumento do risco] é baixíssima", afirma.

Quem já anunciou a terceira dose

Alemanha anunciou uma terceira dose para os mais idosos e para os grupos vulneráveis a desenvolverem doença de risco.

Áustria anunciou uma terceira dose para todos os vacinados cujo esquema vacinal tenha sido completado há mais de seis meses. Será válido para residentes de lares de idosos, pessoas com mais de 65 anos e pessoas com comorbilidades.

Bélgica vai vacinar com terceira dose entre 300 a 400 mil pessoas, que serão administradas a pessoas imunocomprometidas, um pouco imagem do que está a preparar a task force portuguesa.

Eslovénia está a dar a terceira dose a pessoas vulneráveis, um grupo que inclui pessoas que fizeram transplantes de órgãos, doentes imunossuprimidos e pacientes com doenças crónicas.

Estados Unidos vai ser diferente: a partir de 20 de setembro, todas as pessoas vacinadas há pelo menos oito meses vão receber uma terceira dose, com a prioridade a ser dada a profissionais de saúde e a utentes de lares, uma planificação idêntica à primeira fase do plano de vacinação, e que requer milhões de doses, o que volta a colocar em foco a questão da equidade.

França recomendou, esta terça-feira, uma terceira dose da vacina contra a covid-19 para todas as pessoas com mais de 65 anos.

Hungria está a dar terceiras doses a quem quiser, desde que tenha tomado a segunda dose há pelo menos quatro meses.

Israel foi dos primeiros países a começar a vacinação contra a covid-19, e foi sem surpresas que também foi o primeiro a avançar para uma terceira dose. Naquele país do Médio Oriente o reforço já é dado aos maiores de 60 anos, numa decisão anunciada ainda em julho.

Lituânia anunciou uma terceira dose para os doentes imunodeprimidos, com a administração da injeção a ser dada 180 dias depois da segunda.

Luxemburgo está a dar uma terceira dose às pessoas imunodeprimidas, e não planeia, para já, alargar essa vacinação.

Reino Unido anunciou uma terceira dose consoante fases, começando pelos mais frágeis e idosos.

Sérvia recomenda especificamente a terceira dose a pessoas imunodeprimidas e aos mais idosos.

Suécia está a dar terceiras doses aos doentes que podem desenvolver uma forma mais grave da doença.

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