"Estamos de mãos atadas, a ver as pessoas morrer" - TVI

"Estamos de mãos atadas, a ver as pessoas morrer"

  • CM
  • 10 abr 2019, 08:31

Médico luso-venezuelano avisa que a crise da saúde na Venezuela é mais grave do que se pensa

Um médico luso-venezuelano alertou que a crise da saúde na Venezuela é mais grave do que se pensa e os profissionais sentem-se de "mãos atadas" para prestar cuidados aos doentes.

A crise da saúde no país é mais grave do que as pessoas pensam. Perdemos até a medicina preventiva, que é, na hora da verdade, o que mais vale", disse à Lusa José Gomes Pereira, um dos médicos que atende a comunidade portuguesa local.

José Gomes Pereira falava à margem da assinatura, por videoconferência, de uma carta-compromisso, entre o Governo de Portugal, o Centro Português de Caracas, a Associação Civil Amigos de Nossa Senhora de Fátima, da localidade de Los Teques, a sul de Caracas, e a Casa Portuguesa do estado de Arágua, para a prestação de cuidados de saúde à comunidade portuguesa local.

O neurocirurgião afirmou que na Venezuela há casos graves de desnutrição e não há "medicamentos para crianças, tratamentos imunológicos". As consequências vão ser visíveis "dentro de alguns meses e nos próximos anos", sublinhou.

Temos um atraso, do ponto de vista da saúde, de 40 anos. Aqui fazíamos operações de toda a índole, hoje não temos como fazer as operações mais simples. Estamos de mãos atadas, a ver como as pessoas morrem e isso é doloroso", frisou.

Orgulhoso de poder fazer "algo pela sua gente", José Gomes Pereira insistiu que a assinatura do protocolo e o apoio de Lisboa é "muito importante" porque vai permitir ajudar muitos portugueses.

O médico advertiu que, na região de Los Teques, há portugueses que, além de medicamentos, "precisam de ajuda para fazer exames médicos", dando como exemplo as dificuldades para fazer uma ressonância com contraste por não se conseguirem os químicos necessários no país e por ter um custo muito elevado.

José Gomes Pereira explicou que, ao abrigo do compromisso agora assinado, começou a atender portugueses há um mês no Centro Médico Docente El Paso, em Los Teques, num processo que passa por fazer diagnósticos, verificar medicamentos requeridos e elaborar relatórios que são entregues no consulado.

O processo demora entre mês e mês e meio e os medicamentos chegam todos individualizados, com o nome e contatos do paciente", frisou.

Já identificou várias doenças cardiovasculares, neurológicas, casos de demência senil e de Alzheimer, mas também do quadro endocrinológico e problemas oncológicos.

Por outro lado, o cônsul honorário de Portugal em Los Teques, Pedro Gonçalves, que assinou a carta-compromisso pela Associação Civil Amigos de Nossa Senhora de Fátima, destacou que desde o início do projeto "a comunidade portuguesa está muito agradecida".

Temos quase 30 mil portugueses, que trabalham na agricultura e floricultura, muitos deles com necessidade de medicamentos e que vão agora beneficiar desta ajuda", frisou.

Segundo Pedro Gonçalves, "há muitos jovens" luso-descendentes que já "abandonaram o país" e também portugueses de "55, 60 e mais de 70 anos, que têm muitas necessidades" de atenção em matéria de saúde para doenças do "coração, glicemia e outras".

O mais grave é que não há medicamentos. As pessoas vão às farmácias e não conseguem os medicamentos", disse.

Segundo o cônsul honorário em Los Teques, "a inflação que na Venezuela é de 2 milhões por cento" está também a impossibilitar os portugueses de conseguir medicamentos e fazer tratamentos.

Com a inflação, os medicamentos ficam duas a três vezes mais caros do que no estrangeiro e os salários não dão nem para comprar um comprimido diário para o coração. Antes as preocupações eram a insegurança, agora os alimentos e também os medicamentos."

Em Lisboa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, que assistiu à cerimónia de assinatura da carta-compromisso, declarou que o Governo português não tem registo de mortes de cidadãos nacionais em consequência da falência do sistema de saúde na Venezuela, mas admitiu que possam ter ocorrido.

Centro Português de Caracas destaca apoio de Portugal

O presidente do Centro Português de Caracas afirmou que Portugal deu um "grande passo" ao assinar na terça-feira um acordo com várias instituições luso-venezuelanas para prestarem cuidados de saúde aos portugueses, mas advertiu ser necessário mais ajuda de Lisboa.

O alerta foi dado por Juan Ricardo Ferreira, presidente do Centro Português de Caracas (CPC), uma das organizações que se comprometeram a atender os doentes portugueses, com consultas e medicamentos.

A assinatura da carta-compromisso “é um primeiro grande passo, mas deve haver mais""Nestas condições, necessitamos de mais ajuda do Governo português. Sabemos que há a diplomacia, que há muitas situações que têm que ser cumpridas previamente, mas o povo necessita de ajuda do Governo português."

Há pessoas aqui a passar fome, doentes, pessoas com cancro e é triste ver essas realidades. Não é só a capacidade aquisitiva, é também a necessidade de ter os medicamentos e (os pacientes) que sejam atendidos. Os médicos estão a ir embora da Venezuela (…) não é só ter o poder económico para ir a um médico, é ter um médico que me atenda antes de ir embora da Venezuela”, afirmou.

Juan Ricardo Ferreira apontou, contudo, para a importância deste acordo e que “o Governo português esteja a olhar para nós, dando estes primeiros passos, que são grandes passos”, sublinhando que o CPC "está de portas abertas" a alianças que beneficiem a comunidade.

Para aceder aos serviços do CPC não é necessário ser associado, basta notificar a data da consulta, explicou.

Segundo o presidente do CPC, também em Caracas "há pessoas em condições muito graves, famílias que estão a comer na rua, do lixo".

Há famílias que não têm onde dormir e nisso estamos a incluir portugueses. Obviamente essa não é a condição dos nossos associados (do CPC), mas tampouco temos uma posição económica elevada, somos pessoas que trabalhamos, que temos negócios, profissionais, para levar a vida", disse.

À margem da cerimónia, o médico cardiologista Nelson Carrilo afirmou à Lusa que será o responsável pelo atendimento aos portugueses, ao abrigo da Carta de Compromisso assinada terça-feira.

Estamos a responder ao pedido das autoridades e do Governo de Portugal para ajudar a população vulnerável portuguesa e prestar cuidados de saúde no Centro Português, principalmente em medicamentos, consultas no âmbito cardiovascular, no tratamento e prevenção de doenças crónicas, como a hipertensão arterial, a diabetes, a prevenção atempada da aterosclerose, o enfarto de miocárdio, entre outras."

A crise económica e social na Venezuela "tem causado uma situação de emergência, um verdadeiro desastre no que são os cuidados de saúde".

Segundo Nelson Carrillo as consultas no CPC vão começar na próxima semana, às quartas-feiras de manhã.

"A situação é difícil e complexa, na Venezuela. Agradecemos o apoio da comunidade internacional e agora do Governo português, comprometemo-nos que os pacientes vão poder contar com os nossos serviços médicos, com a nossa ética e a nossa entrega", sublinhou.

Embaixador em Caracas destaca grande esforço no apoio aos portugueses

O embaixador de Portugal em Caracas, Carlos de Sousa Amaro, considerou na terça-feira que o país está a fazer um grande esforço para ir ao encontro das necessidades dos portugueses radicados na Venezuela.

Gostava de salientar o esforço que os portugueses em Portugal, que o nosso Governo, os nossos dirigentes, os nossos ministérios, nomeadamente o Ministério dos Negócios Estrangeiro e o Ministério da Saúde, têm feito para apoiar os portugueses aqui na Venezuela. É muito importante que os portugueses quer cá, quer noutras partes do mundo e em Portugal, tenham consciência do que estamos a fazer para ajudar a comunidade", disse à Agência Lusa, na capital venezuelana.

No entanto, o embaixador admitiu que o processo de ajuda à comunidade "é complicado"

Nem sempre tão célere quanto gostaríamos, mas os portugueses na Venezuela não estão abandonados. Nós acompanhamo-los muito de perto e esforçamo-nos para ir ao encontro das necessidades, tanto quanto possível. Nós temos recebido já há uns dois anos medicamentos que têm sido distribuídos pelos consulados e que também agora com o apoio dos médicos irão chegar a mais portugueses, nomeadamente aos mais carenciados, aqueles que mais precisam e que não podem pagar porque os poucos medicamentos que existem são muitíssimos caros e é tudo importado."

Por outro lado, explicou que, em 2018, o Governo português avançou com um projeto piloto na área da saúde e que este ano estão já "asseguradas largas dezenas de passagens aéreas para aqueles portugueses que possam ou queiram deslocar-se a Portugal para o tratamento nomeadamente oncológico e para outras doenças mais complexas, que não possam ter um tratamento adequado aqui na Venezuela".

Acompanhado pelo secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, e da secretária de Estado da Saúde, o ministro dos Negócios Estrangeiros assistiu, em Lisboa, por videoconferência para os consulados de Portugal de Caracas e Valência, à assinatura de Carta Compromisso para a prestação de cuidados de saúde à comunidade portuguesa na Venezuela.

O ministro dos Negócios Estrangeiros declarou que o Governo português não tem registo de mortes de cidadãos nacionais em consequência da falência do sistema de saúde na Venezuela, mas admitiu que possam ter ocorrido.

"Aumento brutal" de portugueses que procuram o Consulado

O cônsul-geral português na capital da Venezuela afirmou na terça-feira que o número de portugueses que procuram diariamente ao Consulado Geral de Portugal em Caracas "aumentou brutalmente" nos últimos tempos.

Aumentou brutalmente o fluxo de portugueses no consulado. Obviamente o que as pessoas estão a procurar mais neste momento são documentos de identificação, cartão do cidadão e passaporte e aumentaram muitíssimo os pedidos de nacionalidade", disse à Lusa, Licínio Bingre do Amaral.

Questionado sobre os efeitos da crise política, económica e social, e dos cada vez mais constantes apagões elétricos no país, Licínio Bingre do Amaral explicou que tudo isto tem afetado a comunidade.

Tem afetado em termos de diminuição de rendimentos, em termos de obtenção de medicamentos. Há zonas em Caracas que estiveram 24 dias sem água, portanto isto afeta claramente a qualidade de vida da comunidade portuguesa residente na Venezuela", disse.

Segundo o diplomata, "em alguns casos o papel desempenhado pelas associações é muito importante para minorar isso", dando o exemplo do Centro Português de Caracas que "tem tido um papel muito importante para ajudar a melhorar a qualidade de vida dos portugueses".

Licínio Bingre do Amaral explicou ainda que "a nível de energia elétrica o consulado tem um gerador" e "que se não fosse esse gerador não podia estar a funcionar ininterruptamente".

O consulado nunca fechou (as portas), esteve sempre a funcionar, devido ao gerador que temos e agora, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), já autorizou a aquisição de um outro gerador de emergência, para no caso de haver uma falha deste primeiro, porque se prevê que a situação se vá continuar a agravar."

Quando às falhas de Internet, o Consulado tem "um acesso, uma linha especial", mas que, neste momento, as coisas são complicadas", explicou.

O diplomata é da opinião que "a Venezuela sempre foi um grande país de acolhimento que lhes deu (aos portugueses) todo o apoio possível e por vezes em alguns casos, como tudo fluía muito normalmente não faziam logo o registo de nascimento dos miúdos, o registo de casamento".

Neste momento, face à situação geral que se vive na Venezuela, há imensas carências financeiras e económicas, praticamente não há liquidez neste país e hoje em dia a margem de lucro dos negócios é muito diminuída. Há muita dificuldade em arranjar produtos, por exemplo, nós temos conterrâneos que têm padarias e não conseguem arranjar com facilidade farinha. Isto é tudo um dia a dia que se vai fazendo, mas não é normal, não têm a facilidade habitual."

No entanto, "o consulado tenta estar o mais bem informado possível do que se passa".

Novo apagão deixa 23 dos 24 estados do país às escuras

Um novo apagão elétrico voltou a deixar 23 dos 24 estados venezuelanos às escuras na noite de terça-feira, num país onde são cada vez mais frequentes e prolongadas as falhas no fornecimento de eletricidade.

Segundo as rádios locais, o apagão teve início pelas 23:30 de terça-feira (04:30 horas de hoje em Lisboa), tendo chegado a afetar a capital, Caracas, onde a energia foi entretanto restabelecida.

De momento, não há informação oficial sobre os motivos da falha elétrica.

Através da rede social Twitter, vários utilizadores denunciaram apagões nos estados venezuelanos de Arágua, Barinas, Guárico, Vargas, Miranda, Mérida, Táchira, Trujillo, Nova Esparta, Apure, Delta Amacuro, Cojedes, Yaracuy, Zulia, Bolívar, Anzoátegui, Portuguesa, Lara, Falcón, Carabobo, Monagas e Sucre.

A única região do país que parece imune à falha elétrica é o estado de Amazonas, a sul do país, na fronteira com o Brasil.

Na Venezuela são cada vez mais frequentes e prolongadas as falhas no fornecimento de eletricidade: no passado dia 7 de março de 2019, uma falha na barragem de El Guri (a principal do país) deixou a Venezuela às escuras durante uma semana.

Em 25 de março, verificou-se um novo apagão, que afetou pelo menos 18 dos 24 estados, incluindo Caracas, que estiveram às escuras, total ou parcialmente, pelo menos durante 72 horas.

Quatro dias depois, pelo menos 21 estados ficaram sem eletricidade durante 24 horas.

Na última segunda-feira, o novo ministro da Energia Elétrica venezuelano, Igor Gavidia, anunciou que o programa de racionamento de eletricidade no país, iniciado no dia 1 deste mês, "poderá prolongar-se por um ano".

O programa de racionamento prevê que o serviço seja contínuo durante 24 horas apenas dois dias por semana.

 

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